sábado, 22 de junho de 2013
sexta-feira, 21 de junho de 2013
Primeira experiência de Pedro Costa no vídeo de alta-definição, “Sweet Exorcism”, calmo e inquieto título em consonância às diversas forças contrárias que ali vão altercar, é cinzelado e fechado a ferro gelado, granito e espectros de vária ordem, que se tocados pelo orgânico existem também na catadura e possessão da morte. Desceu definitivamente, e sem volta a dar, a noite e a treva ao seu cinema e ao seu espaço, ainda mais do que em “O Sangue”, em que o dia e o par permitiam boas fantasias.
Fontainhas, Damaia, Gato preto, são bairros que se vão mencionar, e os planos iniciais serão por lá, onde todos os tempos, terrenos e míticos, já se misturam e soldam ao presente puro. Esse eterno presente que se desenrola com todos os fossos e declives, flashbacks e vigílias. Reconhecemos a galeria que clama por Ventura, como quem berra pelo progenitor, e a esses habituais rufias, órfãos e renegados, Deus e Rainhas, vai-se juntar, perfurando a noite como uma lâmina ou bola de fogo da cor da sua espada, um anjo motard não menos negro do que o resto. Como se vão aglutinar, antecipando já o que se vai passar a seguir, bestialidades que mais do que em comunhão parecem extensão de alguma coisa.
Ainda fora, entre os fundos vindos da Las Vegas de John Ford e os quadros incandescentes derivados de um Rubens, pelas expressões assustadas e pelo enevoamento dessa soturna Zulmira ferida de solidão, estamos instalados no território do medo. Até ao fim mesmo que com espantares doces e momentaneamente apaziguadores. Mesmo que com aquele sorriso de paixão e de elam amoroso igual ao de Straub por Huillet que na pior das fogueiras ainda consegue ousar para uma eternidade, sublime suspensão do terror, máscara à morte, porto seguro. Todos os brancos leites paternais ou todas as inapagáveis humilhações justificadas.
Porque destas referências de cepa dura e ainda com chão, neste que é o filme mais severamente clássico e livre de Costa, vamos entrar nas desmaiantes urgências de Otto Preminger, por entre macas, hipnoses e torcimentos que finalmente o aproximam a Tourneur, essas febres e abandonos sem ciência. Ventura encarcerado num elevador com um moço soldado que lhe pede ajuda e o acusa. Ventura fechado com as suas memórias e fantasmas. Com os seus filhos e os seus cadáveres. “Fechados com os mortos, em silêncio”. Toda a cronologia e todos os mapas se encontram num ponto biforcante e embatem quando a catarse e o irracional irrompem imparáveis. Finados os gritos de liberdade, queixas e preces, a carne e sangue vai-se tornando hirta e cada vez mais calada mesmo que em ebulição, ao contrário daquela estátua que vai ganhando vida. E ambos se confundem, misturam, correspondem-se e afastam-se, em ecos mútuos que iludem o som e a imagem e finalmente o cinema.
Jardim da Estrela, Rua Andrade Corvo, o Hospital Militar, enfim, vão-se fazer tão materiais e feéricos como os outros bairros já citados, tanto no contracampo aos olhares dos vários que estão naquele elevador, como nas frontais tomadas de campo a eles. Num resultado muito mais poderoso do que em “Juventude em Marcha”, pois possuído de uma espécie de efeito boomerang, regressa e fere. O que foi, o que poderia ter sido, orgulhos e desgraças, promessas e traições, velhos e inocentes. Num encerramento atordoante, onde a palavra concentracionário peca por defeito, Costa edifica uma découpage, uma sinfonia alucinatória composta por um coro de vozes do inferno ao céu e dos mártires aos assassinos, que é a cabeça de um homem e o túmulo de milhões deles, na qual a estátua que se metamorfoseia ao monstro, ao mimo ou ao mercenário, se torna ali reverso mas também total verso da liberdade e do espezinhamento. Como nós. São lançadas anátemas, mas também rituais cicatrizantes. Chora-se e canta-se.
“Ventura, lembra-te, tu também és um soldado”.
O elevador, aquela máquina do tempo ou câmara ardente, aquele caixão ultra metálico que se vai carbonizando, até às cinzas, só pode ter descido, descido, descido. O que aconteceu ali foi verdadeiro, não bastou o pressentimento ou a imaginação – e as gigantescas elipses são os lapsos do cérebro e da História- tivemos que ver e escutar os assoladores e os redentores, os mortos a dialogar como os vivos o fazem, tudo isso menos como metáfora ou evocação, mais como um híper realismo figurativo mas sensível das percepções, tremores, desconhecido. Assumindo-se rupturas e pactos e segredos aterradores, a violência insustentável surge na imagem limite do soldado de metralhadora em punho e de coração e ossos lacrimantes, é o grande lamento e paradoxo da inutilidade de tanto barulho e progresso e revolução.
“Sweet Exorcism” é também por isso o mais abstracto dos filmes de Pedro Costa, onde o devaneio terminal surge das três ou quatro coisas de ofício que o realizador faz por inteiro e sem rasteiras. Luz, som, corpos e a sua circularidade interior, modelagem. Que moralmente são ideia, olhar, mundo. Mão obreira e consciência feroz – como quem tem a delicadeza de não melindrar o desvelamento de um cosmo que um século depois ainda permanece velado ou, para fazer jus à poética que tudo assola, enterrado. No final, três planos, estamos a uma luz diurna, mas, e é antigo e se calhar seguro dizer-se: quando se passam certas barreiras, é impossível regressar. Não consigo ainda deixar de pensar que na meia hora que ali passou, Ventura, mais do que em interstícios funestos, tenha já só estado para onde se vai quando nos apagámos. This land is mine + We Can't Go Home Again. Outra galáxia ou extenso vale etéreo de uma bíblia? Salvos ou condenados e respectivos paraísos? Apenas uma visita ao hospital que cura? Só uma câmara assim precisa ampara, salva, escava. Corte abrupto para negro sobre a reacção de pantera. Sem Fim.
domingo, 9 de junho de 2013
O “Doctor Bull” filmado em 1933 por John Ford tem muito a ver com o Mayor Frank Skeffington do “The Last Hurrah”. Se Spencer Tracy era ali, no fim de uma era, apenas o homem dos enterros e das mortes, este Will Rogers, igualmente tão apaziguado e sabido, diz-se mais doutor de vacas e objecto de baixas maledicências alheias do que um verdadeiro homem da medicina. Mas, também como em Hurrah, o enquadramento de Ford ao individuo e ao geral, do grande-plano ao de conjunto, paciente e atento, despojado e preciso, vai mostrar a verdade e a essência que as turbulentas vozes pretendem apagar. Tão solitários mesmo que com tanto barulho por de volta. Solitários como hoje o trabalho sobre as escalas e o timing. Solitários como um James Gray, um Pedro Costa, um Oliveira. O cinema também serve para pôr ordem nisto, eterna balburdia clamante.
Se aquele bom homem diz que quem passou mal a noite foi o paciente que ele tratou e não ele por não ter pregado olho, que só parece ter um único remédio para todos os males e não sabe dizer que não, se esse bom homem passa as horas livres na casa de uma viúva a beber o que nem gosta – antidoto para a solidão - a conversar como na paz dos anjos e a citar poesia e bíblia, bíblica poesia, é porque precisa de um porto seguro na eterna balburdia. É ele quem o diz, e a sua rectidão, mais do que inesperada timidez ou pudor de velha guarda, vão sempre retardar uma união acordada algures.
Já se percebeu, como tanto em Ford, que estamos num mundo dentro do mundo, e ali onde o comboio só se detém para largar carga, onde os avanços não chegam e o insignificante ganha proporções devastadoras, vai ser o local propício para esse inigualável documentarista, na linha de Alan Dwan ou de Fred Wiseman, chegar ao cerne e às oposições eternas que desenham e sobrevivem o arco da humanidade. Para cada coração dourado como o da viúva ou o daquela loirinha dos telefones que é gozada por gostar de se efabular, um milhão de trastes que inventam e deduzem todos os males do bem que jamais poderão entender. Bull não vai pedir desculpas porque o seu coração não reconhece causas tais.
Por isso é essencial o fechamento ali de onde não se sai por nada, para ouvirmos todas as vozes e vermos todos os rostos do mundo que falta. O Ford minúsculo ou cerrado costuma ser o mais transbordante e o que tem mais fora dos campos. Da desconhecida New Winton americana até à minha aldeia Bracarense, o olhar e a cadência de Ford, retardamentos e acelerações, a sua altura e a sua respiração, que me parecem naturais e míticas no mesmo sentido do céu e do solo, têm os mesmos ecoares universais e sui-generis. Longa panorâmica que dá a volta à esfera. Fixa para vibrar mais. A noite onde nasceu uma criança e se perdeu um adulto. O dia em que se herdou uns chinelos e se partiu casado. A fama e o respeito de quem se permaneceu a si. Antes quebrar que torcer. John Ford. “Só há uma maneira de chegar ao mundo, mas mil de sair dele.”
Quero repetir-me, para me lembrar de que uma construção erguida no mais geral, essa Hollywood de certos códigos, dinheiros, normas e tradições rígidas, ainda para mais na Fox de Zanuck e companhia, é onde posso melhor ver e perceber, sentir na pele e lá dentro, toda uma nação, a sua complexidade e riqueza, violência e ternura, como todos os limites e respectivas fundações. Neste caso a américa por Ford, como em tantas outras vezes, como depois ou já aqui a África ou uma certa Irlanda, projectando-se assim para infinitos traçados, toda a terra. Claro que existiram os Lumière, que não são grande exemplo pois já ficcionaram como poucos, mas existiu um Jean Rouch, um De Seta, um Kramer. Esses que tentaram apanhar o fogo e a violência do real em primeiro grau, mas que, se chegaram lá perto ou chegaram mesmo, foi porque se aglutinaram firmemente ao que Ford, ou Griffith, ou Hawks, ou Vidor tinham feito com as suas revolucionárias experiências de vivência e descoberta - …complicado ou impossivelmente genuíno tentar discorrer sobre o que se desconhece ou nem se cheirou; igual aos que escrevem ou pensam ou executam no elevado empirismo de pijama ou de Deleuze. Só lá se vai em consonância à paisagem qualquer e à disponibilidade dos Rogers ou Coopers desta vida; esventrar carnes e almas com a máquina, esventrar milagres, terrores, risos e carinhos que tudo encorpam e enformam.
O exacto oposto da pornografia que se quer passar por acto puro, esse meter a câmara (ou a caneta), que serve e sempre serviu para proteger e para meter em ordem ou sentido, a dificultar e a meter mais pressão nas vidas de quem de tudo precisa menos disso. Assim como a vergar e vilipendiar esta crosta onde pisámos e encostamos e sobre a qual não temos a mínima chance contra, esta terra que nos deu tudo, nos amou e engolirá. Por isso, nada de mais certo do que os clarões de Ford em contraluz a um fundo falso na mais ousada das representações da morte. O gesto e a distância. Tudo o que importa.
Por que raio chamaram ou ainda chamam fascista a quem mais nos suportou? Bendita tradição.
segunda-feira, 3 de junho de 2013
(...) Walsh filma uma aventura bélica que é mais do que uma aventura bélica (como todas, não é? "A mais alta forma do drama é a do homem em perigo", Hawks...). E é assim que este filme pergunta e responde àquele engulho que tantas noites nos atormenta, a "meio caminho das nossas vidas": que é que um gajo anda aqui a fazer, "bicho da terra tão pequeno"?
E, se é verdade que os capitães de Abril viram Objective, Burma! antes de partir para as colónias, terão com ele aprendido a combater, a sobreviver no mato (sei lá, não fui à tropa)... Mas terão, sobretudo, aprendido a ser solidários. E se calhar foi por isso que um dia foram para um monte perto de Évora e redescobriram a resposta que este filme dá à mais nocturna das perguntas: "Um gajo tem que fazer qualquer coisa".
Ó CAMINHO DE VIDA NUNCA CERTO, por Jorge Silva Melo
E, se é verdade que os capitães de Abril viram Objective, Burma! antes de partir para as colónias, terão com ele aprendido a combater, a sobreviver no mato (sei lá, não fui à tropa)... Mas terão, sobretudo, aprendido a ser solidários. E se calhar foi por isso que um dia foram para um monte perto de Évora e redescobriram a resposta que este filme dá à mais nocturna das perguntas: "Um gajo tem que fazer qualquer coisa".
Ó CAMINHO DE VIDA NUNCA CERTO, por Jorge Silva Melo
quinta-feira, 30 de maio de 2013
Um qualquer still de um qualquer velhinho
documentário piscatório? Nada disso, sim a longuíssima quebra do ritmo e da
invisibilidade clássica que qualquer especialista denotaria no extraordinário e
terrífico “Tiger Shark”, do storyteller Howard Hawks. Isolada, essa sequência, seria
uma limpinha e detalhada demonstração de um ofício e de uma coragem, da força
dos homens em situações puxadas. Integrada e montada nessa corrente de amores,
traições e recalcamentos entre Portugueses e outros em San Diego, na América, é
um dos exemplares mais potentes e agudos da amizade masculina a toda a prova,
para os quais a mulher é mais elemento perturbador do que verdadeira paixão de
qualquer um deles. Nada de segundas intenções ou flores de estufa, sempre a
quimera dos afectos em mundos corrompidos. E entre mãos de gancho, fúrias que
escondem verdades essenciais e a tragédia escrita nos altos, não se pode fugir
a sete pés da evidência ou obscuridade para que me alertou João Bénard da Costa
- o lado Hemingway normalmente colado a Hawks, esse lado insinuante, alegórico
e prazeroso mais “Hatari!”, vai negramente cedendo passo, desde a abertura nas
águas profundas, ao lado Faulkner que chegaria mais tarde na sua obra mas nunca
tão fatal como aqui; e ao lado Melville do espezinhamento interior e de
revoltas forças estralhaçadoras e não circundáveis. Por danadas coisas destas, uma
paroxística tragédia que lá nos meios é urdida por uma portuguesa missa que é
então um português fado, encontra-se mais esquecida do que o “Billy Budd”.
Peçam-me um top 3 deste incomparável e eu ponho lá o “Tiger Shark”, sem
problemas de consciência. Aquele workshop de dez minutos de que vos falei ao início
não bazam por nada da memória…em 1932, e na sua terceira obra-prima desse ano,
Hawks continuava a ir de cabeça à natureza do que via à frente.
Dedicados às secções oficiais de quase todos os
festivais de cinema do real. A esses que procuram toda uma vida, filmando
milhões de horas e captando todo o som, o que HH conseguiu naturalmente, sem
foguetes ou blá blá, em mais um trabalhito para pagar a renda. Ou então, de
coração, ao Joaquim Pinto ou aos estoicos da praia da Apúlia que nos seus
limites tantos consolos proporcionam.
quarta-feira, 29 de maio de 2013
Em “The Bellboy”, um dos planos totais que
qualquer filme de Jerry Lewis contém. Resolutamente cósmico, multidimensional,
polifónico, desmultiplicante, imersivo, claro e fantasmático, pedregoso e
aveludado, e por aí vai… Um todo constantemente a meter-se connosco onde a
quarta parede se encontra completamente franqueada. E, se como também quase
sempre, “there wasn´t much story” ou “no story at all”, não consigo imaginar
obra onde a cada cena, a cada momento, a cada trago, aconteça tanta coisa e se
veja e ouça tanto. Seja da carne, da luz, do espaço, do coração, da raiva, do
irracional, do silêncio, do nada, enfim… Poderemos continuar a conversa em
“Smorgasbord”. Dedicado a Baz Luhrmann.
terça-feira, 28 de maio de 2013
segunda-feira, 27 de maio de 2013
Mikio Naruse será desses anciões japoneses que
pareciam trabalhar a matéria cinematográfica como certos pedreiros que deixam
de lado a bruteza e que não são menos estoicos por isso, o mais realista que
conheço, entenda-se, nervosamente realista, libertando a expressão monstruosa
das coisas, para lá ou para cá de cópias conformes ou carbonos, dinamitando
isso, para chegar a outra coisa que deverá ter a ver com a nossa efemeridade
nesta terra e com os embates nela, onde a singularidade nasce de uma construção
paciente no centro do turbilhão, sólida e de uma candura grave que me surge
impossível de definir. Calmamente para se ver melhor toda a mecânica cósmica. E
“Aki tachinu”, de 1960, a obra suprema que lhe vi, onde através dos olhos e da
presença de uma criança que vem do campo para a urbe se sente a violação de uma
ainda possível inocência.
Os primeiros planos são sintomáticos - de
sintomas mesmo, como se qualquer mal ou enfermidade pairasse abstrata, gasosa e
implacável por ali e o filme existisse também para a curar - quando em pleno
outono esse rapazinho sensível e possante sai de um túnel escuro acompanhado
pela mãe, de um fundo para a luz que cega. Sentem-se obviamente perdidos e
ferem-se no olhar e nas percepções. O tal do cinema como circo abandona-se e
desce ao nível deles, disponibiliza-se generosamente, calorosamente, para
tremer com eles, se espantar de medo e das possibilidades e combinações
múltiplas, para um fantasiar calado. Mais apitos de carros para os ouvidos e
poluição para os poros e num terreno mais recatado o miúdo encontra uma menina
da idade dele, mais leve do que a mais leve pluma ou o próprio ar, de um
mistério incandescente. Não se conseguem deixar de olhar, percebe-se que são
inevitáveis, atractivos, reverso ou complemento da Autografia de Mario Cesariny que diz: “ um
é loiro / outro moreno / e nunca se encontrarão”. O preto e o branco
universalizam ou tudo aproximam, mesmo que nunca mais se vissem, já eram um do
outro.
A vida corre como corre em Ozu, em Naruse ainda
mais quotidiana, inevitável, era aqui que queria chegar à bocado. O miúdo
trabalha na loja dos tios, é gozado no seu sotaque, joga basebol e anda à
porrada com os da sua idade, vai de mota pela cidade em chamas na noite
profunda e arrepia-se em baladas por insónias suaves, em momentos de puro
lirismo que doem e abalam porque tão breves – é o segredo desta ferida tão
difícil de captar; a sua mãe trabalha, vende-se, contradiz-se ou até se
humilha, e larga o miúdo às feras. O tempo passa…
…e o miúdo reencontra a menina. Vai bem o
universo. Que não o quer para namorado mas sim para irmão, nesses instantes de
uma doçura tão virgem, tão inaudita, plena e provisória, a que o cinema nunca
mais assim chegou e a que não ouso comparação actual. Colam-se, fogem,
perdem-se. Ela leva-o pela mão às lojas chatas dos centros comerciais mas
também ao topo do mundo, onde lhe promete o mar a que ele só consegue no máximo
efabular, ali no alto do branco mais que branco. Ela é forte como um cepo ou um
adulto viril e zanga-se com pai e mãe por não quererem ter esse outro filho. Mete-o
num carro de outrem e vão efectivamente contemplar a água que nada parece ter a
ver com frio mas sim queimar. “Aki tachinu” é terno, de filigrana e raçudo como
uma revolta ansiada. Uma câmara e temperaturas que se vestem dos sentimentos de
descoberta e rasganço de dois selvagens.
Se no final o miúdo fica sozinho a olhar para o
infinito ou para o vácuo, a circularidade e os ziguezagueares anteriores já
tudo prometeram ou desiludiram, pois Naruse elabora um filme de subidas
brilhantes e descidas opacamente elípticas. Tanto se ascende, tanto se desbrava,
tanto se transforma e se areja, e esse ir para cima dever ter a ver com o
crescimento e com a infância, com o tapete tirado, que no topo se fica
solitário como numa eternidade imóvel ou igual a qualquer Deus de uma odisseia,
e talvez se sinta, nesse nada retardado em que acaba o filme, que nos cimos e
no perder de vista só o essencial grito do homem resgata. E há que descer dos celestiais
e cheirar nos solos antes que nos transformemos nas tais estrelas cadentes de
que Faulkner falou.
quinta-feira, 23 de maio de 2013
Ao invés do típico e coninhas Hélas!, um foda-se!, “Os Sorrisos do Destino”, penúltimo filme de Fernando
Lopes, é uma comédia Hawksiana, ou então uma daquelas sofisticadas americanas
que os maiores clássicos realizaram, e, como estas, tão maltratada, ignorada ou
considerada perfeitamente irrelevante - O Desporto Favorito dos Homens?. A
situação é simples, partindo do eterno triângulo amoroso e do respectivo
encornamento que um dos vértices aplicou a um outro, até consequências
imprevistas ou só ao alcance de alguns.
Ada é a belíssima Ana padrão, neste filme
empertigada e a puxar ao feio, adepta da alta cultura e das escapadelas. Rui
Morrison chama-se Carlos, anda metido nas publicidades e nas imagens, mas é dos
que bebe, fuma e se emociona demais. E o elemento de certo modo perturbador é o
Manuel B. a que o jovem Milton Lopes dá vida, escritor angolano nada parvo. E
se a coisa já poderia estar muito batida, nada para a refrescar e injectar de
candura como a evidência de Fernando Lopes, como em tantos outros personagens
de tantos filmes seus, encarnar agora em Morrison, na fase mais em perda e de
maior comoção da sua pessoa, para expor lições de fidelidade sem dúvida fora de
tempo, lições de amizade, individualismos e companheirismos que não se moldam à
facilidade ou estupidez das épocas ou das manadas.
Encarnações ou sintonias que nos transmitem
coisas como as redes sociais – os telemóveis e as suas sms, o facebook, etc. –
poderem ser a peste de hoje ou o último reduto dos cobardes e dos imbecis. E
não por causa de Carlos descobrir a traição por uma sms chegada do etéreo, isso
seria cair em simplismos, mas obviamente pelo irrisório e pelo picaresco em que
os tais amores ou desamores virtuais estão sedimentados, sendo este o tom e a
moral com que Lopes constrói personagens, diálogos, as formas, numa
complexidade que assoma da aparente leveza geral.
E é preciso ver a cena de sexo entre Ada e
Manuel B. para se perceber, ainda mais do que a permanente invenção de um
realizador ao longo de uma carreira que merece ser sempre redescoberta, como os
contracampos ainda podem servir para espaços diferentes serem ligados e unidos
por olhares e por intensidades, provando que estes velhos arcaísmos mudos são mais
requintados e funcionais do que qualquer desmultiplicador de perspectivas
moderno, muito mais sugestivos, maldosos e dementes.
Porque o que acontece é de abananar: em vez de
termos os processos e as normas esperadas, as zangas do costume e os divórcios
acelerados, o elemento traído atira para a mulher agora dividida os seus
boleros rascas, impõe-nos à altivez de um Richard Wagner a que ousa ligar ao
nazismo, caga na sua perversãozinha e no seu gourmet, caga nos novos-ricos e
marialvas trajados a hugo boss, faz gato e sapato da sua burrice para as
tecnologias e da esperteza dela para isso, mas não é só. Aproxima-se do rival,
pensa em duelos com ele como lá para trás se fazia, talvez em vias de facto,
mas logo esquece isso com sorriso maroto e terno, e ambos comem presunto e
bebem vinho, brindam, fuma-se umas cigarradas, vão em busca do cão perdido,
fazem trinta por uma linha e acabam a dançar sob a lua de todas as ilusões que
mais de um século passado ainda continua a fazer das suas. Estranhíssima
história de amor por que destas já nos desabituámos…E o que será, será. Como
diz a cantiga e como sempre será…
Se Carlos ao contrário de Lopes acaba por ter um
telemóvel e aprender as suas mensagens e segredos, tombando na dita aproximação
social, nesse grande saco de vários bicos, é mais porque escolhe entregar-se à
graça ou ao riso do que à depressão e à tragédia, prefere a bebedeira ao
suicídio, para assim ver mais nitidamente alguns dos ridículos que a coisa
proporciona na sua aparência maravilhosa. Fica assim esse amigo interpretado
por Julião Sarmento, que da irritação inicial que transmite se transforma em
protecção essencial, carinhosa personagem no meio de muito lixo que faz lembrar
aquele velhinho que protege o Bogart no “In a Lonely Place”. “Dorme bem e tem
bons sonhos, meu nobre príncipe”, pareceu-me escutar isto da boca desse amigo,
pela fechadura, sem interferir.
E com um argumento perigoso, tal como acontecia
nos seus dois filmes anteriores, das citações ao realismo corriqueiro, Lopes
arranca uma vingança e uma parábola fina, uma visão e um desancar panópticos.
Contrapõe aquele velho e castiço carro ao seu filho extraterrestre em que Ada
se refugia, poderia ser só isto. Como poderia ser o facto de ter tratado e
reduzido a super potente Red Epic ao seu propósito científico de registo do que
está em frente, da maneira mais forte, honesta, sem remorsos. Como alguns dos
mais nobres velhos jovens do cinema, precisou de regressar ao estúdio, ou, mais
importante, pois em boa verdade ele raramente de lá saiu, tratar a sua visceral
cidade de Lisboa como num estúdio, entre o fragmento e o papelão, para melhor
poder cozer, controlar e colher as emoções. Que são realmente a sua arte e,
antes disso, dessa traiçoeira palavra, o seu modo de viver. Do riso ao choro, e
vice-versa, ao de leve, de levezinho, sem grande espalhafato.
O Desporto Favorito de um Homem?
sábado, 18 de maio de 2013
Nunca ninguém absorveu Lisboa no cinema como o suíço
Alain Tanner o fez em “Dans la ville blanche”. Onde podemos dizer, e
principalmente sentir, que o actor principal, o motivo, o centro, é a cidade e
toda a matéria orgânica que a enforma. Uma massa espessa, maleável, pantanosa,
plana e esburacada, como um borrão esventrado, que contradiz completamente o título
ou qualquer programa, para imagens e sons serem arrancados como de um grande,
fundo e temível buraco negro. Que Bruno Ganz ande viciado nos 8 mm da sua
máquina, que produz mais grão ainda que a 35 do realizador, serve para acentuar
mais a escuridão e a perdição, que é resumida ou obscurecida no plano
derradeiro.
Sem dúvida que existe ali uma finíssima linha
narrativa, uma torneirinha romanesca aberta no mínimo, que conta qualquer coisa
como o desembarque de um engenheiro alemão numa grande cidade, a sua entrada a
matar por ela adentro, entre pontapés a galinhas e borlas nos eléctricos, para
se perder de amores por uma jovem tão selvagem como ele e que ainda por cima
lhe diz que o mundo gira ao contrário. Entre o novo amor e o que deixou na sua
terra circulam filmes em forma de cartas, confissões, desgraças, para tudo ao
longo deste hiato em terras de ninguém se tornar num grande abstracto da existência
que é assim designado branco, essa solidão de todos os tempos e de todos os
espaços que se distende inexoravelmente como a música da harmónica do velho
Oeste trauteada por Ganz até à ladainha.
Duas criaturas comidas pelo infinito, porque
tiveram essa consciência dele e deram os passos proibidos, que se atraíram,
disponibilizaram e consumiram. Preciosidades ou o seu contrário no meio de um degredo
que é já o da incomunicabilidade e o de cada um por si. Fogacho que poderá
ficar como validação de uma passagem ou um motivo para viver. Recaída nos pecados
e obrigações da consumada sociedade de quem parecia completamente livre.
Encontro de duas poesias afins que se interlaçaram e desentrelaçaram algures e das quais aquele universo sem sombra de Deus
parece ter tido pena. Personalidade
traída ou apenas mais um estratagema do destino jogador. Talvez algo disto,
provavelmente muito pouco. Sem certezas.
Como se tudo respirasse. Pode-se, ou não se
pode, entrar por caminhos vários da pintura, do expressionismo ao
impressionismo, de um romantismo pesaroso até ao pontilhismo, da mais ampla
abstracção até à fúria sanguinária de Pollock ou à plasticina. Ou os respirares de Corot, ou as
angústias de Van Gogh. Ou não se pode, pois era preciso nunca ter visto mais
nenhum filme deste igualmente solitário Tanner para se entrar a fundo em tais
modalidades. Uma arte que é um ser vivo autónomo.
Porque vê-se e revê-se esta bomba orgânica, este
furador de olhos e de tímpanos que se deve experienciar o mais junto possível
da podridão, esta sanguessuga, e o que me atinge é sempre essa pasta que se
principalmente negra também percorre vastas gamas do espectro escuro, incendiário,
gélido. Onde a câmara de Tanner perscruta, apalpa, espanta-se, roça-se no
turbilhão e em sinais de fogo tais que não percebe como ali se pode ser tão
sozinho. Um pulsar de onde o inorgânico parece estar ausente, onde a latência é
eléctrica e os poros vilipendiam a pele praticamente invisível dos ecrãs que
acolhem isto.
Há montes de Lisboas, as calmas e furiosas, as fantasmáticas
e as límpidas, mas assim nunca vi. Desde logo a de Paulo Rocha, que se muito
nervosa é como que aplainada pelo seu lirismo ultra contido à espera do kaboom;
a de “Belarmino” que se é das que mais se aproxima a Tanner é também das que
mais se afasta pela vontade do documento e da invenção; a do magnífico e
esquecido “O Fio do Horizonte”, do mesmo Fernando Lopes, que se dolorosamente
viva é atravessada pela plástica e metafísica da banda desenhada e pelos fumos
funestos do filme negro americano; a de João César Monteiro, infecta, abjecta e
generosa, por isso mesmo ligada ao quotidiano desse homem e a uma poesia
indizível; a de Pedro Costa, trancada nos quartos da juventude e nos becos de Tourneur;
ou a de Manuel Mozos, esfaimada de personagens e de histórias, vibrante mas tão
intima.
“Dans la ville blanche” é feita em muitas mais
dimensões do que as três da moda, com mais perspectivas, camadas e níveis do
que os jogos de computador mais vendidos, sonoramente absorvente até ao
afogamento e com vias e atalhos que os surrounds mais evoluídos nem sonharam, e
de uma interactividade que reduzem um Peter Greenaway e os seus esquemas ao
vácuo e a menino de coro. É ver então como o João Canijo de “Sangue do meu
sangue” confunde o espaço e abafa as pessoas, em busca de um realismo que feito
assim só se sente pelo lado autoritário e por isso não humanista do realizador,
onde só fica, paradoxalmente, uma técnica e um exibicionismo que se contradiz
ao fundo.
Em Tanner, onde curiosamente Canijo fez
assistência, há uma frontalidade panorâmica que vai em busca do batimento
cardíaco que está nos corpos, no betão e nas águas, na relação e na colisão do
homem com o meio, onde tudo interessa pois tudo afecta tudo e existe, pequeno e
incomensurável, mar e putas, o ar do tempo e as ruínas. De um arejamento na
aflição ou de uma gravidade na pacificação. Tanner, Rivette, Ferrara, onde o
que bate e o que se busca se passa lá dentro do enquadramento que se vai
fatiando ao mundo e não do lado geek do domínio dos meios. Não se fechando os
olhos ao facto de o mundo ter nascido antes das máquinas. A vida a viver ou a
morrer de onde a câmara estará sempre no sítio certo. Lição e dádiva de um homem
do mundo.
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