Mikio Naruse será desses anciões japoneses que
pareciam trabalhar a matéria cinematográfica como certos pedreiros que deixam
de lado a bruteza e que não são menos estoicos por isso, o mais realista que
conheço, entenda-se, nervosamente realista, libertando a expressão monstruosa
das coisas, para lá ou para cá de cópias conformes ou carbonos, dinamitando
isso, para chegar a outra coisa que deverá ter a ver com a nossa efemeridade
nesta terra e com os embates nela, onde a singularidade nasce de uma construção
paciente no centro do turbilhão, sólida e de uma candura grave que me surge
impossível de definir. Calmamente para se ver melhor toda a mecânica cósmica. E
“Aki tachinu”, de 1960, a obra suprema que lhe vi, onde através dos olhos e da
presença de uma criança que vem do campo para a urbe se sente a violação de uma
ainda possível inocência.
Os primeiros planos são sintomáticos - de
sintomas mesmo, como se qualquer mal ou enfermidade pairasse abstrata, gasosa e
implacável por ali e o filme existisse também para a curar - quando em pleno
outono esse rapazinho sensível e possante sai de um túnel escuro acompanhado
pela mãe, de um fundo para a luz que cega. Sentem-se obviamente perdidos e
ferem-se no olhar e nas percepções. O tal do cinema como circo abandona-se e
desce ao nível deles, disponibiliza-se generosamente, calorosamente, para
tremer com eles, se espantar de medo e das possibilidades e combinações
múltiplas, para um fantasiar calado. Mais apitos de carros para os ouvidos e
poluição para os poros e num terreno mais recatado o miúdo encontra uma menina
da idade dele, mais leve do que a mais leve pluma ou o próprio ar, de um
mistério incandescente. Não se conseguem deixar de olhar, percebe-se que são
inevitáveis, atractivos, reverso ou complemento da Autografia de Mario Cesariny que diz: “ um
é loiro / outro moreno / e nunca se encontrarão”. O preto e o branco
universalizam ou tudo aproximam, mesmo que nunca mais se vissem, já eram um do
outro.
A vida corre como corre em Ozu, em Naruse ainda
mais quotidiana, inevitável, era aqui que queria chegar à bocado. O miúdo
trabalha na loja dos tios, é gozado no seu sotaque, joga basebol e anda à
porrada com os da sua idade, vai de mota pela cidade em chamas na noite
profunda e arrepia-se em baladas por insónias suaves, em momentos de puro
lirismo que doem e abalam porque tão breves – é o segredo desta ferida tão
difícil de captar; a sua mãe trabalha, vende-se, contradiz-se ou até se
humilha, e larga o miúdo às feras. O tempo passa…
…e o miúdo reencontra a menina. Vai bem o
universo. Que não o quer para namorado mas sim para irmão, nesses instantes de
uma doçura tão virgem, tão inaudita, plena e provisória, a que o cinema nunca
mais assim chegou e a que não ouso comparação actual. Colam-se, fogem,
perdem-se. Ela leva-o pela mão às lojas chatas dos centros comerciais mas
também ao topo do mundo, onde lhe promete o mar a que ele só consegue no máximo
efabular, ali no alto do branco mais que branco. Ela é forte como um cepo ou um
adulto viril e zanga-se com pai e mãe por não quererem ter esse outro filho. Mete-o
num carro de outrem e vão efectivamente contemplar a água que nada parece ter a
ver com frio mas sim queimar. “Aki tachinu” é terno, de filigrana e raçudo como
uma revolta ansiada. Uma câmara e temperaturas que se vestem dos sentimentos de
descoberta e rasganço de dois selvagens.
Se no final o miúdo fica sozinho a olhar para o
infinito ou para o vácuo, a circularidade e os ziguezagueares anteriores já
tudo prometeram ou desiludiram, pois Naruse elabora um filme de subidas
brilhantes e descidas opacamente elípticas. Tanto se ascende, tanto se desbrava,
tanto se transforma e se areja, e esse ir para cima dever ter a ver com o
crescimento e com a infância, com o tapete tirado, que no topo se fica
solitário como numa eternidade imóvel ou igual a qualquer Deus de uma odisseia,
e talvez se sinta, nesse nada retardado em que acaba o filme, que nos cimos e
no perder de vista só o essencial grito do homem resgata. E há que descer dos celestiais
e cheirar nos solos antes que nos transformemos nas tais estrelas cadentes de
que Faulkner falou.
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