segunda-feira, 27 de maio de 2013

 
 
Mikio Naruse será desses anciões japoneses que pareciam trabalhar a matéria cinematográfica como certos pedreiros que deixam de lado a bruteza e que não são menos estoicos por isso, o mais realista que conheço, entenda-se, nervosamente realista, libertando a expressão monstruosa das coisas, para lá ou para cá de cópias conformes ou carbonos, dinamitando isso, para chegar a outra coisa que deverá ter a ver com a nossa efemeridade nesta terra e com os embates nela, onde a singularidade nasce de uma construção paciente no centro do turbilhão, sólida e de uma candura grave que me surge impossível de definir. Calmamente para se ver melhor toda a mecânica cósmica. E “Aki tachinu”, de 1960, a obra suprema que lhe vi, onde através dos olhos e da presença de uma criança que vem do campo para a urbe se sente a violação de uma ainda possível inocência.
 
Os primeiros planos são sintomáticos - de sintomas mesmo, como se qualquer mal ou enfermidade pairasse abstrata, gasosa e implacável por ali e o filme existisse também para a curar - quando em pleno outono esse rapazinho sensível e possante sai de um túnel escuro acompanhado pela mãe, de um fundo para a luz que cega. Sentem-se obviamente perdidos e ferem-se no olhar e nas percepções. O tal do cinema como circo abandona-se e desce ao nível deles, disponibiliza-se generosamente, calorosamente, para tremer com eles, se espantar de medo e das possibilidades e combinações múltiplas, para um fantasiar calado. Mais apitos de carros para os ouvidos e poluição para os poros e num terreno mais recatado o miúdo encontra uma menina da idade dele, mais leve do que a mais leve pluma ou o próprio ar, de um mistério incandescente. Não se conseguem deixar de olhar, percebe-se que são inevitáveis, atractivos, reverso ou complemento da Autografia de Mario Cesariny que diz: “ um é loiro / outro moreno / e nunca se encontrarão”. O preto e o branco universalizam ou tudo aproximam, mesmo que nunca mais se vissem, já eram um do outro.
 
A vida corre como corre em Ozu, em Naruse ainda mais quotidiana, inevitável, era aqui que queria chegar à bocado. O miúdo trabalha na loja dos tios, é gozado no seu sotaque, joga basebol e anda à porrada com os da sua idade, vai de mota pela cidade em chamas na noite profunda e arrepia-se em baladas por insónias suaves, em momentos de puro lirismo que doem e abalam porque tão breves – é o segredo desta ferida tão difícil de captar; a sua mãe trabalha, vende-se, contradiz-se ou até se humilha, e larga o miúdo às feras. O tempo passa…
 
…e o miúdo reencontra a menina. Vai bem o universo. Que não o quer para namorado mas sim para irmão, nesses instantes de uma doçura tão virgem, tão inaudita, plena e provisória, a que o cinema nunca mais assim chegou e a que não ouso comparação actual. Colam-se, fogem, perdem-se. Ela leva-o pela mão às lojas chatas dos centros comerciais mas também ao topo do mundo, onde lhe promete o mar a que ele só consegue no máximo efabular, ali no alto do branco mais que branco. Ela é forte como um cepo ou um adulto viril e zanga-se com pai e mãe por não quererem ter esse outro filho. Mete-o num carro de outrem e vão efectivamente contemplar a água que nada parece ter a ver com frio mas sim queimar. “Aki tachinu” é terno, de filigrana e raçudo como uma revolta ansiada. Uma câmara e temperaturas que se vestem dos sentimentos de descoberta e rasganço de dois selvagens.
 
Se no final o miúdo fica sozinho a olhar para o infinito ou para o vácuo, a circularidade e os ziguezagueares anteriores já tudo prometeram ou desiludiram, pois Naruse elabora um filme de subidas brilhantes e descidas opacamente elípticas. Tanto se ascende, tanto se desbrava, tanto se transforma e se areja, e esse ir para cima dever ter a ver com o crescimento e com a infância, com o tapete tirado, que no topo se fica solitário como numa eternidade imóvel ou igual a qualquer Deus de uma odisseia, e talvez se sinta, nesse nada retardado em que acaba o filme, que nos cimos e no perder de vista só o essencial grito do homem resgata. E há que descer dos celestiais e cheirar nos solos antes que nos transformemos nas tais estrelas cadentes de que Faulkner falou.

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