terça-feira, 23 de setembro de 2008

É mesmo, “Kairo”, de Kiyoshi Kurosawa, só pode mesmo ser um dos grandes filmes desta década, e a redefinição total de algo aproximativo ao cinema de terror. Um filme terrorífico, verdadeiramente. Taciturno, palpável, negríssimo. Que atinge o insuportável pelos seguintes aspectos:

- O peso do ar. Já se sentia bastante em "Kyua", mas é neste filme que o peso do ar é bem mais carregado, irrespirável e pesado do que nos filmes a que estamos habituados, sejam de terror ou não. As ambiências e as temperaturas escuríssimas, comprimidas, doentias. É por aqui que o filme no agarra e nos puxa, literalmente, para um mundo bem perto de uma ideia de apocalipse. Finalmente formas absolutamente propulsoras e significantes, neste sentido é mesmo o antídoto de todos os subprodutos que tem evadido as salas – americanos ou igualmente japoneses.
E para que a compactação do bloco e a claustrofobia sejam intoleráveis é tão fundamental o trabalho sobre o escuro, que é genuinamente lúgubre e opaco – sem qualquer necessidade de utilização abusiva e gratuita dos famosos filtros que sujam a imagem à superfície mas que não lhe dão nada de organicidade e profundidade – nas suas camadas granulosas e labirínticas proporcionadas pela subexposição e pelos degradês não lineares mas sim assustadoramente disseminados e aleatórios. Tão importante como a cerração pelo enquadramento. E se foi realmente utilizado o 1.85 : 1, Kiyoshi esmerou-se no achamento da lente certa e da angulação definidora – da nebulosidade deste mundo opressivo e nos limites, num fechamento de onde já ninguém saí, onde o único remédio é a força quimérica da fuga para a frente.

- A morte no plano. Que vamos ter integralmente pelo filme, mas perfeitamente sentida em dois dos mais fabulosos planos que eu já vi. Que são as duas cenas de suicídio explicito. Na primeira, desde o começo do plano até ao seu desfecho, porque verdadeiramente é só um, sentimos a tensão do fim, da destruição, da desistência. Do posicionamento dos corpos ao terrível ar do tempo, passando pela corda que o protagonista serenamente pega, é impossível não adivinhar a acção e ao mesmo tempo os nervos não serem arrebentados pelo suspense.
A segunda é ainda mais temível. O japonês faz seguir normalmente uma personagem assustada pelas ruas reconhecíveis de uma Tóquio em ebulição, onde o céu e a terra se tocam e se queimam, para suster o plano, frontalizá-lo, e traçar linhas de força entre o que está vivo e o que está prestes a estar morto. Linhas de morte, melhor dizendo, porque a construção é de tal modo alinhada, que tendo a personagem que vínhamos seguindo em primeiro plano e engrandecida, só temos olhos para a que está nos altos e prestes a descer ao mais letal dos abismos. É qualquer coisa.

E depois volta a ser fascinante o modo como Kiyoshi filma e aguenta tudo no menor número de planos, num plano, num prodígio de encenação e de consciência da duração certa – fascinante porque anacrónico. Terrível porque infinitamente minimalista, sem as habituais saliências, gorduras e barulhos.

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