terça-feira, 16 de setembro de 2008

Simplifico assim: bastaria este "Leave Her To Heaven" para colocar John M. Stahl no cimo do cinema americano. Clássico e por isso mesmo, moderno.
Algumas razões:

É um dos cúmulos estéticos dos anos 40 do cinema americano, e logo do cinema tout court. Na década cimeira de Welles, de Ford, de Hawks, Hitchcock ou Mankiewicz (os mais portentosamente estetas), Stahl nunca é menor do que qualquer um deles. Obra pintada em tons calorosos – os vermelhos, amarelos e o aquecimentos das cores opostas – na direcção do melodrama a la Sirk, mas nunca nada indo no sentido do ornamentalismo, do enfeite ou do puro barroquismo visual tão em voga em muitos produtos, antes uma portentosa orgânica absolutamente propulsora e mediadora da gravitas da narrativa, dos acontecimentos, das ambiências.
Leon Shamroy mais perto de uma evocação cromática dos tons de Winton C. Hoch, por exemplo, do que de Russell Metty.

E se é um melodrama, permito-me dizer que é muito mais do que isso. Ou seja, ultrapassa os seus arquétipos para se instalar do lado da mais do que tragédia, algo como Shakespeare em espectro, mas nunca, nunca, programa ou gesto mecânico. É, neste sentido, o filme mais sereno e mais horrendo que já vi, tudo isto num mesmo tempo. Começa numa serenidade angelical e de veludo, com o encontro do par central no comboio, progride para o espaço e o tempo onde o terceiro vértice da tragédia surgirá, resvalando depois para os espaços e tempos onde os actos de pura monstruosidade da personagem de Jean tierney se iniciarão. Espaço dado aos espaços, tempo dado aos tempos – uma das artes mais esquecidas de hoje em dia. (e que nomes como Joe wright ou Marc forster, entre muitos, não dominam minimamente)
E se coloco na mesma linha, serenidade e tragédia, é porque nunca existe um óbvio empolamento de nada, jamais um dos aspectos se sobrepõe ou esvazia o outro. Tudo isto é dado com saber de mestre, com um saber que só tem paralelo nas tais crueldades.
E é neste secretismo irrespirável que o filme estoura com os nervos e põe incrédulo quem o assiste. O que parecia um conto de uma mulher que amava demais é assim confirmado por absoluta e desmesurada hipérbole que já não é hipérbole, que o deixa de ser a todo o momento.
Quase filme de câmara, apesar da amplitude dos espaços, pormenor significante, sobretudo quando se nota que toda a dilatação habitual a esse tipo de tratamento paisagístico é feito ao para dentro – a matéria à escala verdadeira. O que temos sempre dentro do quadro é então o perfeito reconhecimento de um mundo e das suas ambiências, honestamente e conscienciosamente captado, e o peso total distribuido sobre a lisura da imagem, na planidade.

Depois é uma temível e tortuosa espécie de falsa ambivalência moral sobre as acções da personagem principal – as matanças e o suicídio final – em contraposição com as escolhas, os desinteresses e desatenções dos que a rodeiam, uma estranhíssima reversão de espelhos. O amor todo do mundo que não é correspondido à mínima escala.
E claro, Tierney, novamente, numa das mais ricas, densas e complexas personagens algumas vez criadas para qualquer arte.
Cheia de zonas escuras, de nuances, toda ela tão dialéctica como o próprio mundo. Aquela pulsão escondida que explode amiúde, os impulsos sónicos como modo de fazer progredir e logo erradicar, tudo o que deixa prever e o que não deixa, as suas mudanças rítmicas e psicológicas, acelerações e desacelerações, autêntico rolo compressor domada e animado por algo que lhe surge como natural.

Ponto alto da história dos filmes, evidentemente.

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