sexta-feira, 18 de abril de 2014


"luta do homem pela sua sobrevivência"

 
 
 
 
 
Robert Capa era, dizem os amigos, alucinado como um percevejo, uma pulga eléctrica. Meio louco, meio inconsciente, daquela loucura e inconsciência dos que apostam tudo ou então é nada. Ebulescente e maníaco, ia, com a sua câmara mecânica em punho, os seus ossos, a sua carne, dentes e músculos cerrados e o resto da massa orgânica e emocional até onde o homem testava os seus limites e se deparava com os abismos mais fundos cavados. Um todo onde os olhos comandavam a tensão e sensibilidade, lado a lado na causa, resguardando o medo e soltando o instinto, num espanto que o tornava parceiro do que captava e não mero curioso. Detestava a guerra, por isso mesmo, era lá o seu lugar natural. O outro lado da sua vida dizem que era o das mulheres e o da confraternização, e dedicou outra fatia da sua breve mas intensíssima vida a imortalizar ou a redimir estrelas de cinema e da sociedade, por isso mesmo o tão propalado biopic que Hollywood há muito acalenta pode ser bem perigoso nas mãos dos costumeiros enaltecedores. Pisou uma mina e quem o encontrou morto viu-o ainda com a sua arma em punho. A maior das suas obsessões só à primeira vista o venceu. O que ele dela recolheu é de outra ordem. Continua a ressoar. E a magoar. A avisar.
 
Anthony Mann foi contratado aos palcos do teatro nos anos trinta do passado século por David O. Selznick para o seu reino, pondo-o a talent scout e a casting director. Lá se safou e chegou mesmo a aprender com os artistas de “Gone with the Wind” e “Rebecca”.Ou seja, Cukor, Fleming, Hitchcock, etc. Foi subindo a punho e a promoção chegou, os anos quarenta foram de noirs, fantástico e muita coisa fugidia, seja o surreal de “Strange Impersonation” ou as encomendas estaduais do final dessa década. Avanço e simplifico muito e anos cinquenta foram os dos Westerns duros, desalmados, danados. Com James Stewart, Gary Cooper ou Henry Fonda, a encenação e o mal cravado e espalhado dos ninhos tornaram-se o mesmo corpo maciço. Muito mais para demências próximas de Shakespeare do que para os malfadados realismos psicológicos. Nessas confrontações, ainda antes de recuar muito no tempo até impérios romanos e afins, e já depois de se ter lançado ao Jazz, ousou uma descida aos infernos que funcionou como extensão das incredulidades praticadas no velho oeste cavalgante. “Men in War” é da mesma fibra das questões soturnas e da moral sem guia de Allan Dwan, Walsh ou Fuller quando foram aos campos de batalha incompreensíveis, e é já em si um útil biopic de Capa e de todos esses irmãos de armas que lá estiveram. Ford, Capra, Huston, milhares de anónimos.
 
Cartógrafos desses terrenos impassíveis em que seres humanos desconhecidos se estrangulam, ambos medem as distâncias, sentem os relevos, agruras, sabem o que é uma espera e o ponto de altercação, o tédio e a explosão. Cartógrafos do interior fervilhante e deteriorado que ata coração e tripas, esse terreno outro que se revolve e ajuíza tanto como uma lei ou um bom senso. Descobriram que a tal da personalidade e do carácter tem muito que se lhe diga e pode ficar sem os credos no mais terrível dos segundos. E topógrafos, olhando, vasculhando, estudando os acidentes, todos os acidentes e deformações - dos valores ao que restou das fardas – impondo o seu testemunho com a rispidez e o valor dos actos necessários, vitais. Também honrados e selvagens. Aldo Ray no filme de Mann é um paradigma e o seu contrário, de monstruosidade excedente ao delírio, levando Robert Ryan a confundi-lo com um dos mestres titereiros de um caldeirão lá dos cimos ou dos fundos, até a comparsa fiel e redentor, símbolo de todo o ilógico e contradição da condição. A lógica de não ter lógica nenhuma. Robert Capa na segunda guerra mundial in loco, Mann recriando o conflito da Coreia em Los Angeles, uma mesma força catártica, telúrica e avassaladora que não descura o poder da morte e o poder da vida. Todos os planos, todas as fotografias, todos os disparos, com a sua composição, tomada de vista, angulação, medida, e tudo mais, são tumulares e vivificantes. Já como que debaixo de terra e reanimadores. Apocalípticos, terminais mas eternos, indestrutíveis.
 
Capa morreu mesmo nesse desejo, nessa sua sede de vida pela morte adentro. Mann não traiu nada, não diminuiu nada, não suavizou nem se protegeu, sabendo que quanto mais feridamente pusesse em cena o impossível no seu desenrolar - e há planos tão escuros e granulentos como mais tarde Cimino faria em “The Deer Hunter” que só nos deixam ver os interstícios da morte e assim o seu absurdo anatómico – mais exporia o caos e entreveria, talvez, uma possível cura que é o companheirismo sem interesse e o quadro final. Portanto, são também irmãos, percorreram morfologias e tormentos da mesma ordem, buscando desalmadamente o que não se deixa apanhar e, uma vez por outra, amarrando a impressão limite. Nessa aventura pelo humano no seu grau mais contundente, demasiado. Experiências pares com as grandes Mães que dominam uma casa, os pedreiros que as erguem ou pescadores que arriscam o pescoço sem grandes dúvidas. Onde chegámos, o que realmente importa e as últimas fronteiras.

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