Conversa com Pedro Costa
por José Oliveira
1. Nestes tempos
anti-cinematográficos, contrariando todas as promessas de uma invenção nova que
permitiu mostrar os homens e o mundo com a nitidez de nenhuma outra arte,
assiste-se ao triunfo da banalização de um ofício que consistia em trabalhar
com coisas muito básicas e concretas: luz e sombra, escalas e ângulos,
distâncias e tempo. Os Lumière, Griffith, Ford, todo este legado parece não
fazer grande sentido hoje. O que sempre achei grande no teu trabalho, e sobretudo
a partir de “Vanda”, com as pequenas e não desenvolvidas câmaras digitais, foi
não te renderes às tão propaladas e falsas revoluções tecnológicas, a essa
velocidade enganosa; mas uma espécie de regresso ao berço, mesmo que assombrado
pela orfandade e pela assombração dos pioneiros, esses Pais tão ignorados. Como
te apercebeste que esta espécie de velho e de novo não eram coisas
incompatíveis?
Não quer dizer que não trate bem da minha câmara
mas, no cinema, quase tudo se faz apesar da câmara, para além da câmara.
Algumas das coisas mais importantes passam-se sem a presença da máquina. Ao
princípio, quando comecei a filmar o “No quarto da Vanda” desconfiei muito
destas pequenas câmaras, fiquei preocupado porque podia ver a imagem final
imediatamente no écran lcd, desconfiei da saturação das cores, da pobreza do
detalhe e da falta de profundidade, da aspereza dos contornos do vídeo... e,
pouco a pouco, comecei a esquecer. Mas esqueci tudo isso porque os problemas
são os mesmos, quer se filme com uma câmara grande ou com uma pequena. E, por
outro lado, também fui esquecendo porque esta bendita câmara me aproximou da
realidade e me foi oferecendo os verdadeiros problemas que eu queria enfrentar
no cinema. Eu comecei em 97 e havia pouca gente a filmar com estas câmaras. É
claro que o Godard, nos anos 70, já tinha usado – e de que maneira - os
primeiros equipamentos portáteis. E devo confessar que foi muito excitante ter
uma máquina nova, uma câmara que eu podia operar sozinho. Eu vinha de um mundo
onde isso era quase interdito. O realizador que quisesse pegar na câmara era
sempre advertido; para além do director de fotografia havia sempre uma data de
assistentes que se apressavam a avisar que “é melhor não mexer”. Uma rodagem é
uma espécie de coutada com as suas zonas privadas. Como também não era suposto
o realizador tocar em nada, arrumar nada, pegar numa caixa… aliás parece que
ainda é assim: um amigo contou-me que ouviu um professor da escola de cinema
dizer a um aluno “o realizador não enrola cabos”... Ontem lá fomos filmar -
somos três, como de costume-, e chegámos ao bairro, fomos à escolinha,
queríamos filmar com uma miúda, e a professora perguntou “então, onde é que
está a equipa?” e eu disse-lhe “somos nós os três” e ela ficou muito espantada,
“ No ano passado apareceu aqui o Quim Leitão e trouxe 10 camiões...” Mas enfim,
se algumas virtudes estas pequenas câmaras tinham, já foram à vida, violadas e
corrompidas. Cada documentarista faz igual ou pior que o do lado, quanto aos da
ficção é melhor não falar... É pena porque as máquinas novas entusiasmam-nos
muito e, no princípio, aparecem sempre muitas coisas interessantes e estranhas…
2. Por outro lado, a tua rigorosa
construção formal não está ao serviço de uma espécie de vazio que fez muita da
glória do chamado “cinema experimental”; como King Vidor, tu nunca filmarias
paisagens ocas destituídas do rasto humano, fragmentos inertes, o mar ao som de
Bach. Encontraste a Vanda e o Ventura e os outros e fizeste deles o centro dos
teus filmes no centro do mundo deles. Protegeste-os, engrandeceste-os,
deste-lhes o teu esforço e saber e eles retribuíram. Não com a retórica
habitual do coitadinho ou do estudo sociológico primário, mas interessado em
todas as suas potencialidades e segredos, na sua presença, emoção, a sua
ficção. Permaneces um clássico?
Clássico, não
sei... mas é verdade que aprendi pouco com o cinema experimental. Sempre
preferi o cinema mais narrativo… Aliás, toda a arte experimental - música
experimental ou teatro experimental - sempre me aborreceu. Enfim, o que eu faço
não atrai multidões de espectadores, por esse lado estamos juntos, quer dizer,
estamos condenados à mesma pequena margem, à recepção crítica “séria”, à
universidade e mais às galerias e aos museus... e em Portugal são sempre as
mesmos 1000 ou 800 a ir ver filmes, concertos, peças, etc… O cinema que me
interessou mais e que me formou era o cinema mais popular, o chamado cinema
clássico americano. Talvez o tenha misturado com o meu gosto pela história, que
é a disciplina de onde eu venho, com a antropologia, com a arqueologia, até. Na
história não nos podemos permitir certas divagações, digamos assim, a história
nunca permite assim tanta experimentação… ao contrário do que se possa pensar,
a história – o tempo - não nos dá direito à dissipação. O gosto pela história
pode sensibilizar-nos para a própria tragédia da história. Aliás, acho que é
isso que tem desaparecido do cinema: o sentimento trágico da história. É claro
que a minha história não é a grande história, a dos grandes épicos de Hollywood,
a das grandes batalhas, das grandes conquistas, dos acontecimentos
“históricos”. Eu procuro restos no caixote do lixo da história. Começo pelo
mais pequeno, uma porta, um corredor, um par de sapatos, um balde, perceber
quem mora ali, como mora... ficava a olhar para um homem que ia ao vinho e que
coxeava muito, cheguei à fala com ele, era o Juninho, que tinha um andar balanceado,
uma mistura entre Monsieur Hulot e Doutor Cordelier, e foi ele que me falou da
enorme percentagem de mutilados devido aos choques eléctricos que apanhavam
quando subiam para fazer puxadas aos cabos da EDP. Ele tinha ficado com um lado
paralisado. A nossa história começou assim.
(Nunca pões um dispositivo à frente do que encontras, das
pessoas…)
Hoje em dia é tudo muito inseguro, há pouca convicção e ousadia, os
cineastas estão muito inseguros, há pouca gente a ver com atenção esses filmes
do passado, esses a que tu chamas clássicos. E parece-me que as pessoas têm
outras razões que as levam a fazer filmes… as motivações são diferentes e o
cinema tornou-se uma actividade consideravelmente diletante. Vejo pouco
trabalho, pouco esforço, pouca dedicação, há muita facilidade, qualquer plano
cola com outro, vale tudo. Também pudera, agora os filmes sobrevivem ou morrem
às mãos dum circo internacional de sales agents, fiprescis e festivaleiros
invariavelmente idiotas. Promovem as maiores barbaridades e vivem eternamente
com o amor do cinema na boca. Parasitas. Já não são as mesmas razões que me
levaram a mim ou os da minha geração ou levavam o Reis, o Oliveira, o King
Vidor ou o Godard a fazer filmes. Os filmes agora são desenhados, quase não
precisam de ser filmes… há uma grande irrelevância. Nesta altura da conversa dá
sempre jeito trazer o Warhol aqui para ao pé de nós. As pessoas têm na cabeça
uma imagem feita, acham que os filmes dele são leves, cult e pop e trash, e que
o próprio Warhol não é pesado, não é um intelectual, um teórico... Ora ele é um
cineasta com um único interesse, com uma ideia fixa: o género humano, a
humanidade, nas suas tristezas e alegrias, misérias e virtudes. Se repararmos
bem, constatamos que ele raramente fez coisas em que o humano não estivesse
presente, mesmo o “Empire”, aquele filme monumento ao arranha-céus... há poucos
filmes em que mais se sinta a força da mente humana, dos braços, do trabalho
dos homens. E o poder do dinheiro. Há nele uma gravidade comovente. Se virem as
fotografias do Empire State Building feitas pelo Lewis Hine - um fotógrafo e
sociólogo norte-americano do princípio do século vinte - verão como são coisas
que partem do mesmo interesse e do mesmo entusiasmo.
3. Ainda relacionada com a questão anterior, e agora pensando na nossa
cinematografia recente, acho que se tem banalizado, a par das formas, o Homem,
a raça, a sua força incomensurável. João Nicolau, Miguel Gomes, à maneira de um
Wes Anderson americano, têm pegado em actores algumas das vezes talentosos,
noutros casos até em não actores com todo o potencial intacto, para os
diminuírem, muitas das vezes para os ridicularizarem, meros bonecos macaqueados
sem causa, destituídos de qualquer humanismo em circos da nossa vergonha. O
triunfo do pop, do kitch, da geração cool, a nossa regressão em tom festivo e
orgulhoso. Ventura, o centro do filme que vamos ver, surge-nos com a grandeza
do Sargento Negro de Ford, a altivez dos Príncipes e dos Reis, a humildade do
Fonda nas “Vinhas da Ira” ou de um comum entre comuns. A modernidade é
encontrar o que importa e estar à altura disso?
Creio que são interesses diferentes... o que nos
faz imaginar um filme ou tentar arranjar dinheiro para um filme ou enquadrar um
plano... podem ser mil razões diferentes para mil realizadores diferentes e, de
certa maneira, é esse o problema do cinema contemporâneo. Só posso falar por
mim: detesto e rejeito a estrutura económica e social sobre a qual o cinema
está instalado, é uma base falsa e hipócrita. E, como já disse, eu não preciso
de guiões nem de ter ideias próprias. Prefiro correr o risco de não encontrar
nada e de não filmar nada do que submeter-me às patetices da vida corrente do
meio artístico... E no meu trabalho, se não conseguir fazer o plano tentarei
outra vez amanhã, e se não conseguir deve ser porque o plano não existe... ao
mesmo tempo, é provável que tenha encontrado mais quatro ou cinco coisas que me
interessaram, que tenha conhecido pessoas interessantes... estou no sítio onde
quero estar e é aí que me formo e informo. Em quatro ou cinco ou seis horas
acontecem muitas coisas: um bêbado que cai para o lado, a ambulância, a dona do
café que regressa da visita ao marido que está no Linhó, as cozinheiras da
escolinha que se põem a imaginar a ementa para o mês seguinte... Não é assim
que trabalha o Wes Anderson que é um americano, talentoso, que tem uma boa cota
nos mercados. E sociologicamente é um facto: as pessoas, os jovens das grandes
cidades, precisam mesmo dos filmes dele. E ele tem que corresponder, fazer mais
e melhor da maneira que ele imagina terem sido feitas, por exemplo, as canções
dos Kinks ou dos Beatles ou os filmes do Truffaut. Deve ser um tipo muito
angustiado, enfim deve sofrer duma angústia de sentido único: como surpreender?
Preciso de surpreender mais! Mas como diz o outro, cada um tem as suas razões.
O pior é o lastro que isto deixa... alguma gordura, o decorativismo, um humor
universalista e aquela candura infantilóide...
Mas eu acho que as escolas de cinema também têm muitas culpas, a
nacional e as privadas, as horríveis lusíadas, católicas, etics, etc. E não
temos crítica. Há uns moços de fretes. As pessoas que escrevem bem e que deviam
estar nos diários e nos semanários não se querem meter nisso... Fazemos filmes
porque vimos certos filmes, não há muito mais do que isto. O que por aí se vê
não é brilhante, o cabo, o cineclube da zon... E depois, ao contrário do que se
diz, é cada vez mais difícil ir à cinemateca, é difícil encontrar os filmes, é
muito complicado. Eu estou nos arredores de Lisboa há muitos anos e ninguém tem
qualquer relação com o cinema. Há um bocadinho com a música, lá vai servindo
para comentar ou avisar ou informar. Não há grupos de teatro. Não há a chamada
cultura popular, a educação através da cultura, as próprias associações de
moradores ou de bairro ou desportivas tornaram-se agências de emprego e lares
de reformados idosos... Não admira que o fosso se alargue todos os dias e que,
em resultado desta devastação e do seu folclore, certos filmes interessantes
possam parecer muito pesados e difíceis, parecidos com coisas etnológicas ou
sociológicas…
4. A realidade pela realidade, o conceito do directo ou a quimera da
verdade, os dispositivos inteligentes, esse documentarismo fácil e informe às
três pancadas que tanto barulho tem feito pelos festivais da moda e na crítica
displicente, não me parece que te interesse minimamente. Pelo contrário,
trabalhas e retrabalhas cada cena, cada movimento, palavra, recorte luminoso ou
dimensão sonora. Compões, desprezas o naturalismo mais imediato; vais com as
histórias dos que filmas, as memórias, a própria História do nosso país e de
assombrações imemoriais, ajustas um poema de Desnos a uma carta de amor de um
homem a uma mulher, arriscas um punhal cravado numa porta sobre um aviso como
no Western mas ao mesmo tempo sentem-se as coisas inteiras e o seu peso. A
realidade só te interessa pelas suas possibilidades de revelação,
transfiguração, abstracção? Uma outra verdade que não se desvenda à primeira?
Há tantas coisas
que não se percebem à primeira, que não se vêem ao primeiro olhar. Eu desconfio
da primeira ideia e, quase sempre, da primeira imagem. Resisto muito à primeira
coisa que me passa pela cabeça. Tenho de passar muito tempo nos lugares antes
de filmar, gosto de observar e de conhecer as pessoas e tenho que pensar,
duvidar, hesitar. É esta a verdadeira experimentação. E, sobretudo, tenho que
pôr à prova a minha convicção. Quero dar corpo a uma ideia, sim, quero
engrandecer as pessoas e os sítios. Mas tenho que pôr essa ideia, a minha
imaginação, à prova. E por vezes é difícil porque certas ideias não resistem
perante determinadas pessoas e o espaço é sempre mais obstinado do que nós
imaginámos... Não se pode filmar tudo. Não é apenas uma questão de desejo ou de
dinheiro. E o guião não é razão de coisa nenhuma. Por vezes não há razão que
sustente um filme. Este método é muito cruel, chegamos ao ponto de concluir que
há filmes a fazer mas também há muitos filmes a não fazer.
Tento sempre
partir do concreto para conseguir... não sei se essa abstracção de que tu
falavas... Tento partir das mais pequenas coisas, lugares comuns: construir uma
casa, comprar batatas, ir à visita ao hospital, acordar, lavar uma escada.
Volto ao princípio da conversa, ao gosto pela história: o que me interessa e me
entusiasma é o mesmo que interessa ao comum dos mortais, ao Ventura ou à Vanda,
é construir. A gente constrói - a palavra construção, ao Ventura, cola-se-lhe à
pele - associamos uma série de coisas, recordações, palavras, locais, objectos,
compomos uma longa cadeia sentimental que vamos usar para construir o filme.
Depois vem o momento de passar à acção e não se pode ceder nem cair... tudo
depende da tensão da nossa construção, do trabalho da argamassa bem remexida,
do tijolo bem colocado, laje contra laje. Deve ser este o primeiro e o último
interesse de qualquer cineasta, de qualquer músico, pintor, escultor, actor...
Quase toda a gente associa a construção à escrita do chamado
“argumento”, ao guião cinematográfico. Não é nada disso. Quando falo em
construção estou a falar do filme, das suas imagens e dos seus sons e das
relações e ligações entre eles. Não estou a falar das palavras nem da linguagem
– ao contrário do que ensinam nas escolas, o cinema não é uma linguagem – não
estou a referir-me ao texto escrito nem aos diálogos. Acho que era o Fritz Lang
que dizia que a ficção só se torna forte quando encontra o documentário.
Pensemos no “Man Hunt”, por exemplo. Mas também pode ser o contrário: o
documentário “só lá vai” com a ajuda da ficção, isto é, com o esforço duma
construção. E carregamos uma herança muito estúpida que nos vem dos anos
setenta ou oitenta: as pessoas ficaram com a ideia de que o cinema é uma arte
visionária... por ser uma arte de imagens e de imaginação, porque qualquer
imagem se pode cortar, fundir, dissolver, transmutar noutra, porque um filme
pode ajudar a pessoa a projectar-se no futuro ou no passado... o cinema é quase
como uma espécie de profecia. E isto deu licença aos seus criadores, aos
artistas, aos autores e aos críticos para dizerem os maiores disparates. Cada
realizador tem a sua visão do mundo. Se não a tiver, terá de a arranjar... e
haverá sempre ensaístas para improvisarem sobre a obra, seja ela um modesto
documentário ou um épico intergaláctico. Hoje em dia, contam-se pelos dedos da
mão os cineastas que não têm uma visão do mundo. São os que têm um olhar. São
os que contam.
5. Escolheste para acompanhar o teu filme um dos exemplos mais acabados e
convictos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Nunca te afastaste deles,
falas sempre deles, mas tens falado também muito do teu interesse por um
Fleischer, por Wang Bing. Que cosmos é este?
Os filmes da Danièle e do Jean-Marie são dos que
mais me interessam, mais me perturbam e me entretêm. Podemos voltar a eles e
revê-los vezes sem conta. Suspeito que até este tipo de fidelidade esteja a
desaparecer... agora passa-se de um filme a outro, de um realizador a outro, de
uma paixão a outra com um pequeno click... e isso fez nascer olhos e cabeças
diferentes, outro género de raciocínios e de desejos. Escolho os filmes deles
porque têm sempre relação com momentos e circunstâncias da minha vida. O “Nicht
versöhnt” - como o “Machorka-Muff” - são muito raros. Nunca saem das
prateleiras das cinematecas. Passaram a existir apenas numa espécie de limbo
cultural, cinéfilo. Por causa da forma ou da duração, são filmes que não
tiveram uma verdadeira oportunidade para encontrar públicos de jovens. É isso
que espero sinceramente: que um rapaz ou uma rapariga do Fundão entre por acaso
na sala e leve um valente susto:“ mas que raio de coisa é esta?” Não é que eles
tenham inventado nada de novo mas trabalharam muito e trabalharam muito bem.
São bons construtores. E proporcionaram uma economia que podemos aproveitar. O “Nicht
versöhnt” tem inúmeras qualidades, é um filme visualmente impressionante, em
que cada ângulo de câmara, cada enquadramento, cada corte corresponde a uma
emoção sempre muito forte. Tem uma concisão magnífica. E não há como este filme
para nos lembrar a tragédia da história. O que se passou há cem anos está-se a
passar agora e vai-se passar daqui a cem anos. Não há passado nem futuro,
vivemos, trabalhamos e morremos sempre no presente.
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