quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O Mestre Jardineiro (folha de sala Cineclube Gardunha)

 


Sob o signo do cineasta e pensador francês Robert Bresson e sobretudo do seu O Diário de um Pároco de Aldeia, baseado no romance de Georges Bernanos, assim têm sido os últimos filmes de Paul Schrader, mimetizando planos e silêncios. Um “homem sentado à mesa”, assim definiu o género dos seus últimos três filmes o cineasta americano. Depois de No Coração da Escuridão e The Card Counter: O Jogador (que vimos neste Cineclube vai fazer dois anos) chega-nos agora este O Mestre Jardineiro, concluindo então uma fase que muitos consideram terminal. Se no primeiro tomo da trilogia temos o espírito e a matéria numa digladiação crística - um padre a lutar com a sua crença frente aos demónios de um novo mundo, de uma nova idade das luzes e das trevas (ecologia e corrupção) - no segundo a matéria e as luzes de um mundo vicioso e pegajoso tratam de conter uma pulsão destrutiva de outra ordem, aparentemente mais profana. Ambos, padre e jogador, ocultam a propensão destrutiva e mercenária das guerras onde estiveram e para as quais foram meticulosamente preparados, e logo todas as perdas íntimas correlativas. 

O jardineiro do seu filme mais recente domina todas as fachadas dos protagonistas anteriores, uma questão de ordem e de repetição que permite controlar a altercação e a sempre possível escalada de violência. Bem como as marcas do passado literalmente impressas no corpo, expandidas neste tomo, a aritmética que divide o tempo e o nutre, ampliada ao paroxismo e epitomada, e um culto que permite um vórtice demencial num vocabulário, terminologias e História que requer constante interação; enfim, e aqui algo de recente que recupera a regeneração do plano final de The Card Counter: O Jogador - decalcado do final de O Carteirista de Bresson – um método maníaco que não se basta em se consumir no puro presente mas que lança ainda uma crença no futuro.

Regeneração, precisamente, um dos grandes temas de toda a história do cinema americano, que rima com redenção. Schrader, que cultiva a austeridade de Bresson, de Carl Theodor Dreyer e de Yasujiro Ozu (dedicou-lhes o livro de uma vida: Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer) jamais conseguiu escapar das forças morais e das placas tectónicas da violência puramente americana, da sua nascença, da sua construção, constatação, da sua constante destruição e regeneração. Assim, o espírito transcendental que Schrader encontra nesses cineastas de nações e culturas díspares – o interior dos seres, o invisível, a alma e a vida escondidas, a fazerem-se matéria plena, palpável e rarefeita, e as formas cinematográficas a comungarem dessa austeridade e desse enlevo – rebenta algures no caminho devido à inevitabilidade de escape originário, um determinismo que se vê bem na personagem de Ethan Edwards no The Searchers de John Ford, e que é a bíblia outra de Schrader, mesmo que a não tivesse reconhecido. Forças aparentemente opostas e impossíveis de comungarem numa cósmica busca existencialista que tem ainda os pergaminhos de Albert Camus e de Jean-Paul Sartre a dialogarem com o individualismo e o laconismo americanos.

E o que produz o poder cinemático, o suspense cortante e a tensão presentes no filme de hoje? E logo a ambiguidade? No fogo lento com que Schrader faz avançar a narrativa, as germinações e os peões em causa, com toda a detalhada e maníaca exposição do modo de vida do jardineiro e da vida e dos segredos das espécies cultivadas, do que ele aprendeu, do que quer passar aos aprendizes, e de uma constante recriação, exploração e pesquisa, que permite renomear e renovar quotidianamente o seus cosmos, o que subjaz é uma complexidade do julgamento das superfícies, um paradoxo latente: torna-se evidente que toda a contenção e postura correta e elegante de Narvel Roth aprisiona a violência e a possível obscenidade, isto é, alguém que a cada instante da sua existência renega e esmaga o seu fogo interior original, uterino, enganando-se. E que a liberdade, e em última ou primeira instância a verdade, reaparece nos momentos de pura violência e justiça em que ele devolve à vida a jovem aprendiz Maya, encontrando-se. Assim, a decência pode ser abjeta e a violência pura. É esta a importância, a esfinge e o pasmo do cinema de Schrader no seu melhor.

Então, e a liturgia do futuro, a utopia e os sonhos metidos numa ampulheta científica, resumida no incrível monólogo interior: «A jardinagem é uma crença no futuro. Uma crença de que as coisas vão acontecer de acordo com o plano. Essa mudança virá no seu devido tempo.»? É a infinita complexificação, tal como são infinitas as multiplicidades de formas e de geometrias, dos tons e das matizes, de estilos e de técnicas de jardinagem expostas. Entre a perfeição de linhas e a selvageria, o milagre do tempo (também meteorológico) e da hora e as omnívoras metamorfoses possíveis, percebe-se que o futuro será jogado tanto pela assunção do deslumbramento e do raciocínio como pelo aceitamento e pelo irracional. O espezinhamento da personalidade será sempre a forma de violência inaceitável. Portanto, a troca da mulher mais velha pela mais nova, a troca de uma contenção outra pela liberdade e jovialidade, torna-se lógica no jogo de forças e dependências em causa.

Daí o final ao mesmo tempo lógico e imprevisível, uma dança que tanto evoca a do juiz Holden no Meridiano de Sangue de Cormac McCarthy como a do personagem de Tommy Lee Jones no subestimado The Homesman - Uma Dívida de Honra. Passadas as panorâmicas e os travellings gizados a regra e esquadro, a planificação Bressoniana que impede qualquer tipo de brecha formal, constituindo um mundo de autonomias e regras perfeitas, passados os flashbacks fétidos, toda a descompostura cai. E pelo menos esse futuro, esse instante, regenera-se para sempre.

José Oliveira


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