segunda-feira, 6 de abril de 2009

o fim de uma era.



"Der Stand der Dinge", Wim Wenders, 1982

da película, dos estúdios, das equipas, das histórias, das normas, dos códigos. de muitas outras coisas. do Cinema. evidentemente que este mundo pode ser a cores, mas o preto e branco é mais realista.

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PASCAL BONITZER,
Cahiers du Cinéma, 1982

Uma melancolia profunda emana de O ESTADO DAS COISAS. Nenhum filme se lhe assemelha. Os seus intérpretes, as circunstâncias fazem com que mereça a pena sublinhá-lo, são uma espécie de intérpretes piratas: Wenders serviu-se de uma série de cúmplices e amigos.
A sobrevivência é no O ESTADO DAS COISAS o tema do filme dentro do filme, o qual é interrompido devido à falta de dinheiro e é este o argumento da ficção; esse filme dentro do filme é intitulado "Os Sobreviventes". Uma rodagem que tem como pano de fundo o Atlântico, não muito longe de Sintra, um produtor que desaparece, uma equipa de filmagem que o espera, num marasmo geral, o improvável regresso do produtor. A situação não pára de se agudizar e o realizador decide averiguar o que se passa do outro lado do Atlântico, ou seja, em Los Angeles.

Assim como Alice perante a tartaruga (Lewis Carroll, "As aventuras de Alice no país das maravilhas"), também nós aguardamos pacientemente perante as imagens, assinadas por Alekan, às quais não faltam nem beleza, nem os enquadramentos virtuosos e por vezes um movimento, uma emoção, um estremecimento que passa imprevisivelmente.

Por vezes, um mísero acontecimento, ou estranho, ou patético, reaviva a atenção: uma porção de madeira com uma forma vagamente humana, projectada através de um vidro, o prenúncio da morte da mulher do director de fotografia (Samuel Fuller), o regresso deste a Los Angeles, após ter apanhado uma carraspana num bar em Lisboa ... Uma entre outras coisas nos intriga: o filme é inteiramente a preto e branco. Nós apreciamos o preto e branco, ainda que por vezes o seu uso nos pareça pouco necessário, estranho e arbitrário. O pouco que nos é dado a conhecer basta para conceber que o filme dentro do filme, "Os Sobreviventes", seja a preto e branco; mas que todo o filme seja a preto e branco, enquanto o sol, o oceano, Sintra, nos parecem acima de tudo apelar à cor, sentimo-nos vagamente frustrados. Lembramo-nos então - se estivermos ao corrente - que Wenders tencionou filmar "Hammett" a preto e branco, desejo mais lógico, na medida que se trata de um thriller que evoca um período anterior à guerra (se há um género que beneficia com preto e branco em detrimento da cor, esse será o thriller). Parece que Coppola se opôs a tal ideia, ou melhor, os estúdios. Este pode ter sido o primeiro de uma série de ultrajes, de impossibilidades e de peripécias de rodagem que se arrastaram durante mais de quatro anos, com um resultado desproporcionado que conhecemos. Casualmente, o filme dentro do filme, "Os Sobreviventes", o filme em desarranjo, é supostamente uma adaptação de um filme de Dwan (The Most Dangerous Man Alive, 1961). Casualmente, o realizador, encarnado por Patrick Bauchau, é supostamente meio alemão e o seu primeiro nome é Friedrich; é por vontade deste que "Os Sobreviventes", antes de ser brutalmente e inexplicavelmente interrompido, pelo desaparecimento do produtor - Gordon - começou a ser rodado a preto e branco. Suspeitamos ainda que essa dupla rodagem a preto e branco - a do filme dentro do filme - represente uma espécie de vingança da parte de Wenders, sobre a impossibilidade, encontrada na Califórnia, mais propriamente, na Zoetrope, de rodar "Hammett" de outra forma que não a cores. Não tem, em absoluto, nada de anedótico. A questão da escolha do preto e branco, é na realidade o cerne dos propósitos de Wenders. A razão de ser e a própria estrutura da ficção não se fica a dever a outra coisa. Numa palavra, o preto e branco é o Mac Guffin de O ESTADO DAS COISAS. Para que o possamos compreender há que ter a mesma paciência que teve Alice perante a tartaruga: estamos de facto, Wenders pode testemunhá-lo, na era do cinema "fantástico" (Lucas - Spielberg - Coppola); outrora se fazia o verdadeiro cinema - outrora era possível filmar a preto e branco. Nos dias que correm, tornou-se impossível. E Friedrich que arriscou proceder segundo a sua vontade, e Gordon que lho permitiu, vão claramente pagá-lo com as próprias vidas.

Como é possível? A ficção de O ESTADO DAS COISAS só vale, e repetimo-lo, por um mistério ténue, o do desaparecimento do produtor que voltou ao Novo Mundo, a L. A. . Friedrich vai à sua procura, ao encontro de uma explicação. Gordon, enquanto amigo, deve-lhe pelo menos isso. Inicia a sua investigação e descobrirá a verdade. O filme fora interrompido, o produtor desaparecera, porque o filme estava a ser rodado a preto e branco. A ideia é mais do que astuciosa, quase genial, em todo o caso vertiginosa.No decorrer da sua investigação, através da qual fica a saber que o financiamento provém de origem duvidosa, Friedrich descobre, por mero acaso, que Gordon se esconde numa roulotte itinerante, conduzida por um guarda costas, na tentativa de escapar aos assassinos que o perseguem. Porque razão estão esses assassinos no encalço de Gordon? Porque o filme foi rodado a preto e branco. Não compreendem? É porque não conhecem a Califórnia. O ESTADO DA COISAS é somente uma fábula, somente uma mensagem sem ilusões sobre o "estado das coisas". Com aproximadamente estes elementos, a história bem podia ser real. (Ela resulta, manifestamente, da transposição de personagens e factos reais para a ficção).

Do que se trata afinal? Os financiadores são, certamente, mafiosos. "Os Sobreviventes" foi financiado, ou começou por ser financiado por dinheiro "branqueado", por outras palavras, por dinheiro de proveniência crapulosa, droga, prostituição. Entretanto, o capricho ou a inquietação artística de Friedrich (alter ego de Wenders), a de filmar a preto e branco, torna o filme inexplorável, invendável (a não ser para canais de televisão, cabo, etc.). Consequentemente, o responsável pela administração do dinheiro, neste caso Gordon, deverá ser abatido. Tal é, pelo menos, uma das interpretações possíveis. A explicação reside no simbolismo implícito, num entimema que é no fundo o mundo do raciocínio dos criminosos, a sua lógica estúpida e implacável.

Parece que Wenders escolheu a inocência do artista para dizer que de nada vale conhecer essa lógica assassina que é, em última análise, a do dinheiro. Está, por isso mesmo, condenado, inevitavelmente condenado. Na última cena do filme, Gordon e Friedrich descem da roulotte para dar o abraço da despedida. A bala dos assassinos atinge Gordon pelas costas e este deixa-se literalmente cair dos braços do amigo, seu semelhante, seu irmão, Friedrich. Friedrich vê-o cair a seus pés. Consigo traz apenas uma câmara de 8 mm que aponta em direcção à avenida hollywoodesca, numa vertiginosa panorâmica subjectiva, onde passam as viaturas cegas. Uma segunda bala, vinda não se sabe bem de onde, abate-o. Ele cai entorpecido, sem largar a câmara e a imagem muda repentinamente de direcção, ao mesmo tempo que na avenida uma viatura, num chiar de pneus, dá uma brusca meia volta.

O ESTADO DAS COISAS não é um mero filme "chave", mas um filme simbólico. (...) Sem O ESTADO DAS COISAS "Hammett" estaria incompleto e vice versa. Os dois filmes formam um díptico que testemunha por duas vezes a descrição de um martírio. O martírio clássico (ou "pós-moderno") da personagem Hammett não é da mesma ordem do suplício da personagem Friedrich, que cumpre o trajecto inverso: numa primeira instância os assassinos vão ao encontro da arte, numa segunda instância a arte vai de encontro aos assassinos. Imagino que Wenders contemple a projecção da sua imagem infinitamente reduplicada neste dípticos, como no plano final em "All About Eve"; porém, esse reflexo desmultiplicado não reenvia qualquer antecipação de triunfo ou de fruição, mas apenas uma interrogação lívida e inquietante. O que significa ser um "sobrevivente"? Esta é, aparentemente, a sua questão. Ela irá conduzi-lo a qualquer parte.

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