terça-feira, 16 de dezembro de 2008

CASINO

por João Bénard da Costa

O Nuno de Bragança costumava citar um escritor (curioso, não me lembro qual) que dava por conselho aos jovens romancistas nunca escreverem sobre acontecimentos recentes. «Deixem passar pelo menos vinte anos sobre a história “fundamental” que vos aconteceu. Só nessa altura saberão se ela foi mesmo fundamental e – mais importante – só nessa altura ela se poderá tornar fundamental para outros.» Pus aspas nem sei bem porquê. Não estou nada certo que as palavras do Nuno B. tenham sido essas ou que ele citasse ipsis verbis o escritor de que não recordo o nome. Além disso, como conselho para jovens, parece-me absurdo. De que falariam então? Da infância?

Vem isto a propósito das dificuldades de juízos definitivos sobre filmes recentes. Diz-se – costuma dizer-se – que o tempo julgará e que quem demasiado se excita com novidades envelhece depressa. Quantas vezes me disseram (e até eu disse) sobre este ou aquele filme muito amado outrora e jamais recontemplado: «Reviste-o recentemente? Também eu gostei muito em tempos, mas envelheceu imenso e envelheceu mal.» Às vezes acontece, com os filmes como com as pessoas. Mas, pelo menos a partir de uma certa idade, ou não acontece tanto como se diz ou o que de mais grave acontece acontece-nos a nós e não à obra ou pessoas que amámos. Por mim falo, e agora falo só de filmes: o que muito amei, depois da segunda metade dos anos 50, amo ainda mais hoje. O que nunca amei, menos ainda amo hoje. As excepções confirmam a regra.
Por isso, eu não tenho grande medo de corar daqui a vinte anos (se em outro mundo se corar) sobre o que vou escrever de Casino de Scorsese. Julgo que não me enganei. Ou, se me enganei, enganei-me em tudo, o que equivale a dizer que não me enganei em nada. Casino é o mais belo dos filmes de Scorsese. Como New York New York, The Last Waltz, The King of Comedy, After Hours, The Last Temptation of Christ, The Age of Innocence (ia quase escrever Cape Fear mas dei uma nega, ainda estou para perceber porquê)1.

Scorsese, duvido que pelas mesmas razões do tal escritor, filmou acontecimentos passados há cerca de vinte anos. Las Vegas como Las Vegas foi nos anos 70, quando havia aquele «buraco negro» à roda da cidade (assombroso plano, esse) e ainda não se tinha transformado na disneylândia actual, se acreditarmos no que diz, no fim, a título póstumo, Sam Rothstein (Robert De Niro).

Evidentemente, Scorsese, filho de «blue collar workers» de «New York`s Little Italy», nunca foi a Las Vegas no tempo do filme e nada de importante se passou lá que directamente tivesse que ver com ele (a não ser pelo lado italianamerican, esse do documentário de 1975, a que uma vez se referiu como o embrião de uma futura história oral da América). O recuo não vem daí. Desde The King of Comedy (já lá vão doze anos e sete filme e meio) que Scorsese não filma o presente, que Scorsese filma, «after hours», «before the hours». Do presente (mais ou menos, que o que vemos é precisamente situado nos anos 80) só arrancam as sequências iniciais e finais, antes e depois do que é e não é um flash-back. Mas, essas sequências, ou até mais essas sequências, são sublinhadas pela instância do sonho. («No meu bairro natal, Little Italy, para os operários e para os pequenos-burgueses, Las Vegas figurava-se como o reino do sonho, especialmente para os “déclassés”, para os que, no meu filme, eu chamo “wise guys”.»).

E é como um sonho que Casino começa. Em fundo, na banda sonora, Bach (A Paixão Segundo São Mateus) e, na banda imagem, as cores fulgurantes de Las Vegas, lugar da «paixão» a que vamos assistir. Em primeiro plano, a silhueta que depois saberemos ser a de De Niro e, quase logo a seguir, as chamas do carro a arder. Três, quatro planos (não os contei, mas não serão mais) e sabemos onde estamos: num mundo sem amor, num mundo sem amenidade («aus Lieb und Huld») ou no sonho desse mundo.

Simultaneamente, o onirismo é sublinhado por três elementos capitais: a cor (do fato cor de morango esborrachado de De Niro aos diversos amarelos das chamas e do deserto), cor destoante como a do tecnicólor em três bandas dos filmes dos anos 40, com duas dominantes e uma atenuação; a fusão de sombras e chamas; e, logo a seguir, a voz off, voz off da personagem que pressupomos morta. Como Vertigo, Casino começa com uma situação que torna inverosímil a salvação do protagonista e, no entanto, ele salva-se. Como Sunset Boulevard, a história do que aconteceu vai ser-nos narrada por um morto (nesse caso, por alguém que supomos morto). E, apesar do tom bem wellesiano da primeira frase («Quando um homem se apaixona por uma mulher, tem de confiar nela e não lhe resta outra alternativa.»), não temos dúvidas que aquela voz nos fala do «além», um além que conhece este «aquém» e não têm quaisquer ilusões sobre ele. Já sabemos que ele errou: não devia ter-se apaixonado pela mulher que refere, da qual, nessa altura não sabemos ainda nada e que só muito mais tarde irá entrar no filme. Estamos no reino dos mortos, da omnisciência fácil, o mesmo onde se situou William Holden em Sunset Boulevard.

No final, saberemos que Sam Rothstein não morreu e que foi mesmo o único que não morreu, no vórtice que a todos sorveu. Mas, contra as imagens de Las Vegas metamorfoseada em Oz, o protagonista é tão irreal (novamente, tão onírico) como o feiticeiro convertido do final do filme com Judy Garland. Terá alguma razão moral, já não tem nenhuma razão estética. Sobrevivente de uma tragédia, é um fantomático personagem dramático. Ninguém pode ser, ao mesmo tempo, Orestes e o Coro. A não ser que, como De Niro, fique condenado para sempre a errar nos lugares onde errou.

Mas deixem-me com a voz off. Ou com as vozes off, pois que outras, muito mais tarde, se virão juntar à de De Niro, para nos dar outras versões da história. Se já nos últimos filmes, sobretudo a partir de Goodfellas (que, iluminado por Casino, pode ser revisto a outra sombra) Scorsese tinha conferido à voz off um lugar cada vez mais fulcral (e pense-se apenas na voz mágica de Joanne Woodward, conduzindo The Age of Innocence do lugar de Edith Wharton), nunca, como em Casino, o tratamento dado a ela, ou a elas, foi tão radicalmente vertiginoso. Porque é nela, ou nelas, que se perde o ponto de vista, a subjectivização que o principio do filme parecia enunciar, exactamente quando Sam Rothstein perde o dele, ao ver, numa imagem do ecrã do casino (imagem vídeo, ou imagem como vídeo tratada) Ginger Mckenna (Sharon stone), a mulher que não só precipita a derrocada do poder visual dele, como do poder de todos os outros.

Um só filme, de que eu me lembre, conferiu, até hoje, à voz off uma dimensão tão alucinante. Falo de The Saga of Anatahan de Sternberg, em que, como aqui, narra, antecipa, comenta, resume, elide ou mostra o que diz elidir. Associação gratuita, com dois mundos tão diversos? Menos do que se possa supor, porque, num e noutro filme, a paixão dominante é a paixão pelo poder e porque, num e noutro filme, os personagens não são destruídos por inimigos externos mas pelo inimigo que trazem dentro de si. Qualquer deles – De Niro, Sharon Stone, Joe Pesci, o genialíssimo Joe Pesci – bem podia ter dito o que Sternberg disse em Anatahan: «O engenho do homem para se destruir a si próprio é maior do que qualquer outro. Nos seres humanos, os furacões desencadeiam-se imprevisivelmente. É difícil reconhecer os sinais que os anunciam.» Algum, daqueles muitos que se reuniram no casamento de Sam e Ginger (a começar pelos próprios), terá jamais pensado que, nessa tarde, começava o princípio do fim deles?

Guardem esta ideia do princípio do fim. Voltarei a ela. Mas, por agora, quero continuar nas bandas sonoras, que, de Bach a Bach (princípio e fim) nos irão reservar todas as surpresas, de Little Richard a Dean Martin, culminado na citação do tema de Delerue para Le Mépris de Godard, na grande cena do deserto entre Sam e Nicky (Joe Pesci). E, se Casino é, visual, vocal e musicalmente, um filme em forma de fuga, permito-me eu, a propósito dessa sequência, dizer que nunca, depois de Renoir, tinha visto, assim, enquadrados em leve contra-plongée, dois homens contra o céu, sabendo um que a única possibilidade de sair vivo dali é manter o outro sob o poder do seu verbo e aprendendo o outro, que o escuta, que aquele é o único homem que nunca será capaz de matar. E não sabíamos nós – eu não sabia, pelo menos – que Renoir podia assim rimar com Godard e aprendemos nós – eu aprendi, pelo menos – que, no zénite de uma relação de amor entre homens como aqueles, Godard e Renoir podiam vir mais à memória do que Hawks, demasiado americano para os entender. E é a seguir a esse longo plano no deserto, pavidamente estremecente, que a câmara, sobre o chão do casino, varre tudo num travelling a toda a sela, para a última celebração do poder de Sam Rothstein, «the fucked jewish».

O que é que eu estava a dizer? Estava a falar da música. «Quis conservar o espírito dos anos 70. É que se o público ouve, de repente, uma música de compositor, diz com os seus botões «estou num filme» e era isso que eu queria evitar. A ideia veio-me de Truffaut, mas também porque, nos anos 60, as músicas dos filmes entravam logo na moda. A canção de Moulin Rouge, por exemplo, tornou-se um sucesso enorme, tocavam-na a toda a hora. The Barefoot Contessa, a canção de Lara, Rear Window… Há também Walk On the Wild Side, a versão de Jimmy Smith, a melhor que eu conheço…»

Prodigiosa colagem musical, prodigiosa vertigem musical, a banda sonora segue, no vórtice e no vértice, o não menos prodigioso barroquismo da narração e das imagens, com o mesmo fôlego e a mesma dispersão. Porque Casino é um filme disperso, um filme gastador, que enche as margens (os mil e um episódios, aparentemente secundários, que podiam dar mil e um filmes diversos) para desnudar o centro, o centro trágico que é praticamente resumido na frase inicial e na presença-ausência do personagem de L.Q.Jones. E talvez não haja muitos exemplos de absolutismo trágico para pôr ao lado de duas sequências como a da morte de Nick, depois de ver matar o irmão, ou a do corredor do hotel, onde Sharon Stone, penteada à Simone Signoret, esbanjou os milhões de dólares até à última overdose. Uma (a da morte de Pesci) em ruído e fúria, excessiva e operática. A outra (a que nos fala da morte de Sharon Stone) em silêncio e vazio, minimal e surda.

Se, um dia, alguém quiser saber como foram os anos 60 e 70, The Last Waltz de Scorsese diz-lhe tudo. Se, um dia, alguém quiser saber como foram os anos 70 e 90, Casino de Scorsese diz-lhe tudo.

«The beginning of an end?» «the end of a beginning?» «Say, the beginning of the end of the beginning.» «And if you don`t recall the singer, you can still recall the tune.» Casino é a Última Valsa que foi possível dançar. Quem acredita no «princípio do fim do princípio» acredita no eterno retorno. «Fantasmagoria, luzes, muito dinheiro, uma espécie de vórtice, mas nunca sexo». Desde New York New York, pelo menos, foi sempre assim. E assim continuará a ser até no inferno, que, se não é Casino, não sei que seja.

1. Hoje acrescentaria Bringing Out the Dead (1999). Desculpem a póstuma intromissão...

2 comentários:

Matheus Cartaxo disse...

Muito, muito bom.

Evandro Duarte disse...

Já assisti Cassino umas duas ou três vezes. Mas depois deste texto saí à cata do DVD e fi-lo meu.
Dos mais recentes, é meu preferido do Scorsese.