quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Porque The Straight Story, pode não querer dizer história simples. Pode referir-se apenas à história de dois irmãos de apelido Straight. Mas, devido à suposta ou real simplicidade, gerou uma reacção que talvez perversamente Lynch tenha esperado (quiçá desejado) mas muito se parece com histórias semelhantes dos envagelhos apócrifos, das Vies Imaginaires de Marcel Schwob, de Dunne (An Experiment With Time), ou da eventual leitura cifrada dos textos básicos de Kiekergaard.

Ou seja, seria um filme a ver com a consciência de que havia outra história, por detrás da história contada. Os críticos, tão habituados desde Eraserhead (1977) ou sobretudo desde Blue Velvet (1986) a buscar recônditos sentidos em Lynch, que cada vez mais se distanciava do que se chama uma história com pés e cabeça (Mulholland Drive, 2001 bateu as mais vastas expectativas) perante um filme que aparentemente não lhes pedia muito, nem da imaginação nem dos miolos, começaram a retorcer os referidos sentidos, como nas histórias que Schowob gostava de contar e Borges também.

Se tinham tentado “clarificar” os outros filmes, aqui ficava bem “obscurecer” este, não fosse o rei, agora tão visivelmente nu, estar a enganá-los com vestes do mais requintado fabrico e desenho, mas tão requintado que eles eram incapazes de as ver.

E aqui para nós, e que não nos ouçam lá fora: conhecem história mais verosímil do que a dum velho cardíaco de 73 anos, que atravessa sozinho 500 quilómetros ao volante de um cortador de relva fabricado em 1966 e a uma velocidade de 5Km à hora, para ir fazer as pazes com um irmão, com quem se zangara há dez anos e que nos últimos 50 não vira mais de cinco vezes?

Se alguém me viesse contar essa, eu olharia para a criatura com olhos mais estranhos do que aqueles que lanço aos carrascos e vítimas de Blue Velvet ou às personagens da história de Laura Palmer e de Twin Peaks. Em todos esses filmes há coisas mirabolantes, goste-se ou não de Lynch? Inegavelmente há. Mas a mais mirabolante é a história de Alvin Straight, em que se despediu das telas, com pasmosa criação, o velho Richard Farnswort que toda a vida esperou por esse papel.

Porque é que, se o é, não o parece? Porque estamos sempre muito mais atentos a imagens insólitas (os surrealistas sabiam isso tão bem) do que a histórias insólitas (Lautréamont, era um monstro disforme e malquisto, Emily Brontë escrevia para púdicas donzelas). Mas, sobretudo, porque, se as “histórias da carochinha” tiverem por desfecho o casamento da dita com o João Ratão, salvo a tempo de morrer cozido e assado no caldeirão, nós ouvimos com assentimento: se o rato, vestido de fraque, cair ao fundo da panela, à busca da chouriça, e dele sair com queimaduras de terceiro grau, a coisa tem foros chocantes.

Imagine-se que Alvin Straight morria de enfarte durante a viagem ou era marrado por um desses veados que ninguém percebe donde é que vêm. Quinhentas páginas de ensaio para explicar o necessário encontro de Alvin com os veados.

Mas como Alvin sai de casa para encontrar o irmão, o irmão está em casa, o recebe bem e fazem as pazes, não são precisas páginas nenhumas. Apenas dizer que, naquele dia, Lynch quis mostrar que até sabe fazer filmes “normais”, como nos bons tempos do cubismo se dizia que Picasso pintava “realista” para mostrar que sabia pintar.

Nenhum de nós fica a saber se, na zanga de há dez anos, teve razão Alvin ou teve razão o irmão. Mas um dia vê-se a morte mais perto, e, com citação ou sem citação, ouve-se a passagem envangélica que nos diz que se tens qualquer coisa contra o teu irmão, vai e reconcilia-te e só depois volta ao Templo do Senhor. Acontece que é a América e que as yellow roads se medem por centenas de quilómetros (toda a deep América vem deep deste filme, em mais uma das muitas rimas deste ciclo). Acontece que os dois irmãos são pobres e, senão é caminho que se faça a pé, talvez se faça de cortador de relva, dando tempo e tempo para tudo e todos vermos dessa América. Acontece que até há noites à conversa, no quentinho duma fogueira, noites que nos confortam, na certeza que o mundo é melhor para os bons, mesmo se nada alcançarem com essa vontade. Estamos fartos de tais histórias da carochinha? Contadas de modo tão straight, não, não e não. O que vemos neste filme é um arquetípico melodrama. Está lá tudo: a família, a doença, a viagem, os happy-end, o amor, o amor e o amor. É um american melodrama, pois nada disto seria possível se não fosse na América e se não fosse com americanos.

The Straight Story é também um “filme fantástico”? Todos em dado momento o são. “Arrependido, maravilhado e resignado”, diz, no final, um dos protagonistas. É só isso que devemos estar, quando o amor é omnia como neste filme é.

João Bénard da Costa

8 comentários:

bruno andrade disse...

Apesar dos esforços em contrário, a crítica existe. Eu sei, eu a li.

José Oliveira disse...

É verdade, é J.B.C a gozar, literalmente, com essa corja toda (filósofos, semióticos, etc...etsc...) que invadiu o cinema.

Daniel Pereira disse...

Esse verbo não é nada despropositado, Zé: às vezes parece mesmo que JBC se limita a gozar nos seus textos. Tu sabes que enquanto alguém que escreve sobre cinema, eu acho-o o maior.

Luís A. disse...

onde é que arranjas estes textos deliciosos do JBC?

José Oliveira disse...

"Como o Cinema era Belo", o catalogo que deu nome ao ciclo da Glubenkian e no qual o nome diz tudo.

Luís A. disse...

e não disso online?

José Oliveira disse...

não me cheira.

Daniel Pereira disse...

Mas atenção, Zé: o ciclo que começou em 2006 tinha 9 filmes dos últimos 8 anos ou 11 dos últimos 14. Acho que o JBC refere isso mesmo.