foi por acaso, ou se calhar não foi, que encontrei uma página onde João Mário Grilo escrevia, antes de eu ser verdadeiramente cinéfilo.
Lá estava um texto belissimo sobre um filme escondido. Aqui fica:
Eu sei que talvez devesse aproveitar este espaço para falar, esta semana, dos muitos filmes de que toda a gente fala e que vão passando (mais ou menos meteoricamente) pelas salas portuguesas: são os últimos dos irmãos Warchowski (Matrix Revolutions), de von Trier (Dogville), de Tarantino (Kill Bill), de Gus van Sant (Elephant) ou, mesmo, a obra-prima sui generis e admirável que é India Song, de Marguerite Duras, que a Atalanta Filmes repôs em cópia nova, abrindo um ciclo dedicado à obra notável desta não menos notável e singularíssima cineasta. Em vez disso, porem, vou aqui despedir-me de um filme que não sei quando tornarei (quando tornaremos) a ver: Xavier, o primeiro filme de Manuel Mozos, que estreou, vai para um mês, e que ainda está em exibição, por enquanto, numa única sala de Lisboa e num único horário.
Xavier não merecia tal destino, embora, em boa verdade, se possa (e deva) dizer que é o país – que cada vez mais se estupidifica – que não merece tal filme. E Xavier até esteve para nunca ser. Durante doze anos, Manuel Mozos lutou para conseguir que o seu filme sobrevivesse à falência do co-produtor francês. Entretanto, chegou mesmo a estrear o seu segundo filme (Quando Troveja, em 1998), e não é o menor dos sortilégios que, num país de raros filmes e raros cineastas, uma primeira-obra estreie depois da segunda. Isso marca bem uma diferença – o filme quase parece de "época" –, mas as diferenças de Xavier não são realmente essas. Já antes de mim houve quem escrevesse que se Xavier tivesse estreado na altura em que foi feito, muita coisa podia ter mudado no cinema português. Porque Xavier – história de um rapaz (Pedro Hestnes) em rota de colisão com uma cidade (Lisboa) – esconde, realmente, a promessa de um novo cinema novo português, o cinema de uma nova gerarão que é, talvez, doze anos depois, o que mais falta nos faz.
E nada disto é só (sem o deixar de ser, completamente) por o filme tanto nos fazer lembrar a alma, o sangue, o nervo e o músculo de Verdes Anos, filme realizado por Paulo Rocha, há quarenta anos, e que iniciou, então, uma revolução radical no status quo apodrecido da cinematografia portuguesa da altura. Xavier é um filme com um idioma próprio, sonhado e feito, totalmente, nas margens das imagens dominantes (mesmo as do cinema, para já não falar das da televisão), e que parte, solitariamente, à descoberta de uma nova poética portuguesa, que não é só cinematográfica. Do filme, guardo muita coisa: por exemplo, o risco elíptico e brutal, que fende o filme em ligações surpreendentes, o "casal" Hestnes/Isabel Ruth (Laura, a mãe), a relação fraterna entre Xavier e Hipólito, o fundo palpitante da cidade (soberbo o plano em que Xavier conserta uma antena num telhado de Alcântara). De tudo isso, no entanto, o que mais me fascina é essa vontade de tecer todo um filme à volta de um único protagonista, um grande, paciente e magnífico gesto de humildade, absolutamente incomum no cinema português, e que faz com que Xavier, apesar do atraso com que nos chega, mantenha, para sempre – sabemo-lo hoje – a força genuína de uma mudança, que o filme nunca deixará de ser, realmente. Foram doze anos; mas parece, apesar de tudo, que ainda há tempo.
João Mário Grilo, 23 Novembro, 2003
1 comentário:
Olá!! Fico feliz por saber que há pessoas que sabem avaliar o trabalho dos outros. E tu es uma delas. Concordo perfeitamente quando dizes que se esta filme tivesse estreado quando foi feito teria sido uma verdadeira revolução no cinema português. Eu gostei muito da historia e do propio filme. O meu tio (Manuel Mozos) fez um excelente trabalho, e agradeço-te por teres posto a sua luta e o seu empenho neste filme e te-lo divulgado no teu blogue. Obrigado
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