segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Entrevista a André Marques sobre o filme O BÊBADO, por José Oliveira

 Aquando da exibição do filme no Cineclube Gardunha - dezembro de 2024.


- Tem sido muito comentada a tua experiência de estudo na Romênia e essa influência tanto nas tuas curtas anteriores como nesta estreia nas longas-metragens. O que mais te marcou realmente nesse período formativo?

Existe a falsa ideia de que eu fui pra a Roménia estudar, não é verdade, fui para lá viver e trabalhar ainda muito novo, do qual resulta uma curta-metragem (Luminita). No entanto, nesse período romeno, existiu ainda assim para mim um processo de formação e reconhecimento de outras formas de filmar e contar uma história. A longa é uma consequência desse processo, depois continuado em Portugal nestes últimos 10 anos.

 

- Existe uma dureza e uma busca de veracidade no teu trabalho com os actores e no trabalho com a câmara que torna os dois indissociáveis. O que pedes aos actores e como é que pensas as distâncias entre eles, a câmara e o espaço?

Aos actores peço foco, sobretudo, e tento fazer o melhor para ajudá-los a mantê-lo, a organizarem mente e coração, situarem-se no tempo e no espaço. Sei o que procuro em cada momento mas também tento dar espaço e lugar da fala às personagens, por assim dizer, para que elas tomem conta do set e da dinâmica no mesmo. O trabalho de câmara é diferente, às vezes sou eu a operar e o processo torna-se ainda mais instintivo, mas em geral procuro uma fluidez natural entre a câmara e os corpos.

 

- O improviso e o instinto parecem ter um lugar central no teu método. Como é que a ideia inicial vai mudando desde o papel até à montagem?

Não muda assim tanto, como parece indiciar a pergunta. Existe uma ideia central, planeada, mas a produção de cinema obriga a uma constante adaptação, isso é certo. Como exemplos, às vezes os actores trazem novas luzes sobre as personagens, às vezes os décores de rodagem permitem mais ou restringem certas ideias pré-pensadas.

 

- Estamos na cidade de Setúbal, de onde és natural, mas evitas todo o perigo do bilhete-postal e do turismo. O filme poderia ser passado noutro lugar?

Sim e não. Para mim sempre foi essencial voltar a “jogar em casa”, depois de várias curtas filmadas em Setúbal, e, de facto, a história do filme foi escrita em torno de vários elementos socio-económicos e geográficos característicos de Setúbal. Por outro lado, se um dia alguém decidir fazer um remake do O Bêbado, poderemos ter oportunidade de redescobrir novas perspectivas num outro lugar onde a história se desenrole. 

 

- Por último, conseguiste os meios de produção ideais - e a mim o filme parece-me justo nesse aspecto - ou tiveste de desenrascar muita coisa?

Fazer filmes com tão pouco dinheiro obriga a que haja bastante desenrascanço… Também me parece justo o resultado, mas foi graças a muito cuidado e esforço, por parte de toda a gente que trabalhou no filme, para que este ficasse mais sofisticado/bem feito que o orçamento do filme, em teoria, o permitia. Para referência, O Bêbado teve um 1/3 do orçamento do último filme do Botelho.

Entrevista a Sofia Marques, realizadora do filme "Verdade ou Consequência?"

 por José Oliveira


Terça-feira, dia 8, pelas 21h, o Cineclube Gardunha terá uma sessão de enorme comoção, numa homenagem ao gigantesco Luis Miguel Cintra. O nosso maior ator de teatro e de cinema, encenador e fundador do Teatro da Cornucópia, figura decisiva da nossa cultura e que conquistou o prémio Pessoa em 2005, estará presente, com a realizadora Sofia Marques.



Quando começou a sua relação com o Luis Miguel Cintra e quais os trabalhos comuns que mais a marcaram?

Entrei no Teatro da Cornucópia em 1996, tinha 19 anos, para fazer o espectáculo Barba Azul, com encenação de Christine Laurent. Neste espectáculo fazia a última esposa do Barba Azul, personagem interpretado pelo Luis Miguel Cintra. Em 1998 estreava o espectáculo Máquina Hamlet, de Heiner Muller, onde fazia uma Ofélia também ligada amorosamente ao personagem de Hamlet, personagem interpretado pelo Luis Miguel Cintra, que aqui era actor e também o encenador da peça. Dei-me conta agora que os meus dois primeiros personagens no Teatro da Cornucópia eram amorosamente ligados aos personagens interpretados pelo Luis Miguel Cintra. A primeira mulher não morria porque era salva pelos irmãos, e a segunda suicidava-se com uma corda. Os temas vida e morte ficaram logo lançados desde muito jovem. A partir daí foram 30 espectáculos com encenação de Luis Miguel Cintra e mais uns quantos como assistente de encenação. Estes dois primeiros trabalhos marcaram-me muito, como é natural. Depois seguiram-se outros muito importantes, até para a formação da minha capacidade de assimilar as atualizações dos textos clássicos com o estado do mundo. Esse sempre foi um dos objetivos da companhia. Posso deixar aqui os nomes de outros espectáculos igualmente importantes para mim: O LírioA História do SoldadoA TempestadeFim de CitaçãoMisererePíladesFingido e VerdadeiroDança da Morte... são muitos os espectáculos e em alguns deles o Luis Miguel Cintra era só intérprete como eu, ou seja, meu colega.

Verdade ou Consequência? utiliza materiais e formatos diversos, estando muito longe da típica biografia de um artista; em que momento é que pensou partir para um filme longo sobre o LMC a partir de todos os registos que foi colhendo?

Desde o primeiro momento que a minha ideia era aproximar-me ao Luis Miguel Cintra de uma forma criativa, forma essa que combina tão bem com ele. No início do projeto o filme tinha o nome provisório Sem título/Cem títulos, para não limitar a obra e permitir uma observação mais livre, tal como na pintura. Desde o início que imaginei trabalhar fragmentos e não estruturas, organizados para a partir daí criar ligações com mais liberdade e com mais originalidade. Sempre estive certa que a estrutura do filme tinha que ter a ver com a lógica da própria cabeça do Luis Miguel Cintra, uma cabeça irreverente, contraditória, sentimental, provocadora. Sempre suspeitei que o filme seria o meu olhar sobre ele e ambos à procura de um caminho, o nosso.




Um retrato na intimidade, só possível quando existe da parte do retratado e de quem retrata uma relação de confiança. Como foi a progressão desse mergulho na parte mais privada e delicada?

A progressão desse mergulho na parte mais privada e delicada aparece através da confiança que o Luis Miguel Cintra já tinha por mim, pois já nos conhecemos há quase 30 anos, e, além disso, como realizadora, eu já tinha realizado um outro filme chamado Ilusão, sobre um projeto muito especial e particular que o Teatro da Cornucópia apresentou em 2014. O filme foi do agrado dele e agora, com o fecho do Teatro da Cornucópia, o filme tornou-se num documento precioso. Penso que a nossa convivência artística e pessoal é sólida o suficiente para chegarmos a todas estas camadas que o filme Verdade ou Consequência? contém.

A partir daqui, tem vontade de trabalhar mais em cinema, e sobretudo na realização (de ficção, por exemplo), ou interessa-lhe mais os palcos?

Tenho vontade de continuar a fazer o que tenho feito até aqui, ou seja, as duas coisas. As duas linguagens convivem muito bem uma com a outra, tanto gosto de fazer os meus filmes como fazer as minhas personagens no teatro e no cinema. Tudo é alimento para a alma e para a vida. 



Entrevista a Paulo Abreu, realizador de "Ubu" filme em exibição no Fundão

 por José Oliveira


O Cineclube Gardunha levará a cabo a exibição de vários filmes portugueses em estreia até final do ano. Ubu, de Paulo Abreu, é a primeira das escolhas. Um filme peculiar, excêntrico, um autêntico OVNI no cinema atual, aqui ou em qualquer lado.



Baseado numa peça teatral escrita no século XIX por Alfred Jarry, uma tragicomédia que se revela atual e que tece ainda tangentes à sempre obscura patafísica, de que Jarry foi um dos responsáveis máximos. Abreu arrisca as inusitadas loucuras e cálculos de um Serguei M. Eisenstein punk (via Alexander Nevsky) e o resultado é grave e cómico, a não perder.

Fazer muito com pouco é um dos lemas deste realizador multifacetado e sempre surpreendente, sem estilo ou rótulo definido, que também trabalha na música, na dança ou no teatro, e que foi diretor de fotografia do gigantesco Paulo Rocha. 

Entrevistamos Paul Abreu e assim convidamos todos os amantes de cinema a serem surpreendidos logo no primeiro dia do mês de outubro. Goste-se ou não, a experiência será singular.


Tens já um longo percurso no cinema e noutros campos. Como apresentarias o Paulo Abreu aos espectadores do Cineclube Gardunha?

Eu comecei por volta de 87/88 a trabalhar com vídeo, fiz filmes para espetáculos de dança, de teatro e música, mas sempre tive o desejo de fazer cinema. Tentei concorrer a apoios do ICA desde 1991, acabando por só ter o primeiro apoio em 2011, vinte anos depois de começar a concorrer. Trabalhava, entretanto, como cameraman no VER Artes, que era um excelente programa sobre arquitetura e artes plásticas que dava na RTP 2. Também fazia videoclips ou direção de fotografia em documentários e curtas-metragens de outras pessoas. A partir daí, de 2011, fui conseguindo fazer mais filmes meus com pequenos apoios ou encomendas. Fiz alguns documentários que depois tiveram apoio à finalização. Ubu é a minha primeira longa-metragem de ficção, baseada na peça de teatro escrita por Alfred Jarry e levada à cena pela primeira vez em 1896 com enorme escândalo na época, e que é uma peça e um personagem que está sempre atual, eu diria até cada vez mais atual.

Mesmo para uma cinematografia capaz de quaisquer loucuras como a nossa - que apresenta 'Non', ou A Vã Glória de Mandar e O Sangue no mesmo ano- Ubu irrompe como um meteorito inaudito e silencioso. Parece um Serguei Eisenstein punk. Como surgiram todas essas ideias?

Quem me sugeriu fazer o Ubu foi o meu amigo e cineasta André Gil Mata. Depois vimos várias adaptações que já se tinham feito da peça para cinema, especialmente  Ubu Roi (1965), de Jean Christophe Averty, e achámos que o que seria interessante era tentar uma abordagem completamente diferente, radicalmente oposta à imagética da encenação inicial, e como a peça era também uma paródia ao Shakespeare resolvi também fazer o filme como se fosse um clássico shakespeariano mas com uma dose de loucura que já está presente no texto. As referências que dei para o Jorge Quintela, o diretor de fotografia, foram A fonte da Virgem, do Ingmar Bergman, Othello e Chimes at Midnight, do Orson Welles, e, claro, o Einsenstein de Ivan o Terrível e Alexander Nevski

Foi complicado conseguir os apoios e meios necessários a um suposto épico, mesmo que em miniatura?

Como nunca teria os meios necessários para fazer o filme que queria, pensei que a melhor solução seria aproveitar essa falta de meios a favor do filme, já que estávamos no território do absurdo. Mas, só para dar um pequeno exemplo, o máximo de figurantes que tive na batalha foram 7 (além dos atores). Não tive os meios necessários mas tive uma equipa técnica/artística excelente e muito motivada, o que foi fundamental.  Tive uma rodagem curta (6 semanas) para o filme que era, e tivemos imensas dificuldades em arranjar os decores todos e juntar tudo o que precisávamos para filmar.

Com um trabalho tão inventivo em filmes tão diferentes - e tendo em conta que igualmente vais a jogo em áreas como o teatro, a dança ou a música - que conselhos darias hoje a um jovem que pretende fazer um filme tão louco como o Ubu mas não sabe como?

Acho que o fundamental é acreditar nos projetos e tentar conseguir trabalhar com pessoas de quem se gosta, tanto do lado profissional como do lado humano. O Ubu foi uma rodagem difícil, mas muito divertida, e isso acho que passa para o espectador.

Entrevista a Francisca Marvão - a realizadora de cinema convidada do Fatela Sónica

por José Oliveira


Em 2024 o Cineclube Gardunha une-se ao festival de música Fatela Sónica. A cineasta Francisca Marvão é um dos centros desta colaboração. Estará presente já dia 17, terça-feira, na Moagem, pelas 21h00, a apresentar Ela é uma Música, um documentário que é uma viagem de descoberta pelo mundo do rock em Portugal.





 Em 2024 o Cineclube Gardunha une-se ao festival de música Fatela Sónica. A cineasta Francisca Marvão é um dos centros desta colaboração. Estará presente já dia 17, terça-feira, na Moagem, pelas 21h, a apresentar Ela é uma Música, um documentário que é uma viagem de descoberta pelo mundo do rock em Portugal, na voz das suas ilustres desconhecidas: as mulheres. A sinopse diz-nos ainda que As miúdas andam por aí, a rockar como se não houvesse amanhã! Uma grande viagem sónica e humana que é imperdível. A realizadora estará presente na sessão, juntamente com Miguel Newton, um dos fundadores do festival. E dia 19, quinta-feira pelas 21h, no recinto do festival, situado no Anjo da Guarda, veremos algumas imagens do seu documentário inédito 𝐐𝐮𝐞𝐦 𝐭𝐞𝐦 𝐦𝐞𝐝𝐨 𝐝𝐞 𝐙𝐮𝐫𝐢𝐭𝐚 𝐝𝐞 𝐎𝐥𝐢𝐯𝐞𝐢𝐫𝐚? 

Obra muito esperada sobre um nome pioneiro e esquecido do rock em Portugal, produzida a partir de um crowdfunding, o Cineclube e o festival juntaram esforços para ajudar na finalização do documentário. Por isso, depois da projeção, haverá um DJ set levado a cabo por mulheres (a Noite das Ganapas!). A entrada para esta sessão de filme e música reverterá para a finalização do filme. Fizemos uma pequena entrevista a Francisca, reveladora de um modo de fazer e de ver as coisas que é pura paixão e justiça.

*

O cinema e a música são indissociáveis no teu trabalho. Conta-nos um pouco do teu percurso.

 Desde cedo, o cinema e a música estiveram profundamente interligados no meu percurso criativo. Através de um familiar, amante de música e colecionador, tive acesso a uma vasta coleção de discos e a uma grande diversidade de géneros musicais, o que despertou em mim uma curiosidade natural. Passei muitas horas sozinha a explorar e a ouvir música, mergulhando em diferentes sonoridades. Ao mesmo tempo, durante a minha infância e adolescência, fui recebendo câmaras fotográficas e de filmar, que alimentaram a minha paixão pela imagem. Acredito que estas experiências moldaram a minha perceção tanto do som quanto da narrativa visual. Quando comecei a trabalhar em documentários, ficou claro para mim que a música não apenas complementa as imagens, mas é também uma ferramenta poderosa para contar histórias por si só. Para mim, a música tem o poder de amplificar a realidade, de expressar o que as palavras ou as imagens sozinhas não conseguem. Cada documentário e videoclipe que realizo é uma oportunidade de explorar esta relação simbiótica entre som e imagem, e de encontrar um equilíbrio que reforce a mensagem que quero transmitir. A decisão de começar a fazer documentários sobre mulheres na música surgiu de uma frustração que fui acumulando ao longo do tempo. Ao assistir a documentários musicais feitos em Portugal, percebi que as histórias e contributos das mulheres eram frequentemente invisibilizados ou sub-representados. 

Essa lacuna levou-me a questionar o porquê dessa falta de visibilidade, e senti que havia uma necessidade urgente de contar essas histórias de forma justa e profunda. Comecei a explorar a vida e o trabalho de muitas artistas e rapidamente percebi a riqueza de trajetórias, lutas e conquistas que estavam a ser ignoradas. Foi isso que me motivou a criar um espaço através dos documentários para dar voz a essas mulheres, celebrando o seu talento, a sua criatividade e a sua resiliência.

A justiça para com o papel das mulheres na história da música portuguesa é central nos teus últimos filmes. Um trabalho de investigação e de paixão. Ainda há muito para redescobrir?

Sim, ainda há muito por redescobrir. O papel das mulheres na história da música portuguesa, como em tantas outras áreas, foi muitas vezes invisibilizado ou subvalorizado. O meu trabalho é, em parte, uma tentativa de trazer à luz essas histórias, de dar voz a mulheres cujas contribuições foram fundamentais, mas que nem sempre receberam o reconhecimento merecido. Um dos grandes problemas é a falta de registo de muitas dessas artistas.

A investigação e a paixão são motores desse processo, pois ao explorar arquivos e ao ouvir relatos, acabo por encontrar uma riqueza de experiências e talentos que surpreende até quem já trabalha na área há tanto tempo. Quanto mais olhamos para trás, mais percebemos que o legado destas mulheres está muito mais presente e vivo do que imaginamos. 

 Em que ponto está o tão aguardado Quem Tem Medo De Zurita De Oliveira?, que nos irá revelar mais uma figura fascinante e esquecida?

 Este documentário tem sido uma verdadeira viagem de redescoberta e também de aprendizagem. Trabalhar com as várias artistas que vão participar no filme, desde o processo criativo até à gravação, tem sido profundamente inspirador. Cada uma trouxe a sua visão única e contribuiu para dar vida à história de Zurita. Aprendi muito com elas, tanto na forma como interpretam a música de Zurita como nas suas perspetivas sobre o legado que ela deixou. É como se cada etapa das filmagens fosse um mergulho mais profundo não só na vida de Zurita, mas também no impacto que ela continua a ter em mulheres na música hoje. Isso enriqueceu o projeto de uma forma que nunca poderia ter imaginado quando comecei.

Vais participar no festival Fatela Sónica, tanto a mostrar filmes como num DJ set. Um festival eminentemente punk, combativo, feito por puro amor, que faz imenso com muito pouco. Os teus filmes também parecem ser feitos com pouco dinheiro e com os meios essenciais. É um desafio trabalhar assim?

 Sim, é um grande desafio. Trabalhar com poucos recursos obriga-nos a ser mais engenhosos, a focar no essencial e a encontrar soluções alternativas. Mas, para além disso, estes filmes só são possíveis graças a todas as pessoas que abraçam os projetos e ajudam ao longo do caminho. Forma-se uma espécie de comunidade, com toda a gente a lutar pela mesma causa, e isso torna cada projeto único. Claro que há momentos em que é muito difícil. Espero e luto para que um dia tenhamos bons apoios financeiros, porque fazer um filme requer muito trabalho e acredito que merecemos ser justamente remunerados por ele.  Afinal, criar com paixão é incrível, mas pagar as contas com ela... ainda não dá!



Por último, deixa-nos algumas dicas de grandes bandas (ou artistas a solo) e filmes onde as mulheres são essenciais.

 Esta é daquelas perguntas que não gosto muito de responder. Há tanta coisa! (risos) Vou escrever o que me surgir neste preciso momento.

Bandas e artistas:

Todas as artistas que aparecem no Ela é Uma Música e as que vão aparecer no Quem tem Medo de Zurita de Oliveira ;)

Madredeus onde a Teresa Salgueiro era essencial

Patti Smith e sugiro um filme sobre ela: Dream of Life

Catherine Ribeiro que infelizmente faleceu há umas semanas

Nico

Chavela Vargas

Violeta Parra

Pj Harvey

Poison Ivy dos The Cramps

The Slits

Bikini Kill

Kim Gordon. Vou ver um concerto dela em breve.

ESG

Malaria!

Mercenárias

Lucy

Lauryn Hill

Joni Mitchell

Odetta. Lembro-me perfeitamente de estar a ver o filme do Scorsese, No Direction Home: Bob Dylan, e de como fiquei profundamente impressionada quando a Odetta surgiu no ecrã, a cantar e a tocar com uma força incrível durante um concerto.

 Filmes:

Costa dos Murmúrios – realização de Margarida Cardoso que é uma adaptação do livro da Lídia Jorge

Jesus por um dia – Helena Inverno e Verónica Castro

Os Mutantes – Teresa Villaverde

Balada de um batráquio – curta-metragem de Leonor Teles

Les glaneurs et la glaneuse – filme de Agnès Vardas 

Shara - filme de Naomi Kawase

Portrait de la jeune fille em feu – filme de Céline Sciamma

Lazzaro felice - filme de Alice Rohrwacher 

Titane – filme de Julia Ducournau

YES – filme de Sally Potter

Love Lies Bleeding - Rose Glass

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Os Melhores Momentos de 2024

 


FILMES:

 

Ferrari, de Michael Mann

 

Ferrari é um monumento ao poder dos Homens, à sua racionalidade tantas vezes irracional, irrazoável, que os faz avançar. Um parceiro perfeito, e igualmente da família do sublime calado, discreto, em filigrana, complexo, do Bobby Deerfield de Sydney Pollack, a quem o filme também é dedicado. [texto completo aqui]

 

- Juror #2, de Clint Eastwood

 

Clint, depois dos noventa anos, convoca Fiódor Dostoiévski e Serguei M. Eisenstein para presidirem aos pesos e contrapesos da consciência e da persistência da memória. Os demónios clamantes da nossa química e a montagem estraçalhante dos nossos fantasmas. Só o cinema.

 

- The Iron Claw, de Sean Durkin

 

Todo o percurso libertário, feliz e passional que os anjos do filme de Durkin encontram na morte foi-lhes vedado em vida. Mas Durkin faz ver que aquilo a que chamamos morte pode ser a vida, livre, feliz, amorosa, cheia de laços e de espaço. A mão e o olhar angelicais de Durkin, terno, livre, frontal, tocado pela evidência protetora e desprendida do amor, rima com Eurípides. Durkin filma à luz e com a luz do poeta Grego que talvez erroneamente é considerado trágico - «Quem sabe dizer se a vida não é o que chamam de morte e a morte não é o que chamam de vida?» Dedico a minha visão deste milagre de Carl Theodor Dreyer a João Bénard da Costa.

 

- Bowling Saturno, de Patricia Mazuy

 

«O pensamento serve para nos transformar em animais.», parafraseando Immanuel Kant. E, declinando a pari passu, o medo da memória, também.

 

- Megalopolis, de Francis Ford Coppola

 

O fundamental (logo no genérico): Uma Fábula. Um rabisco de criança. Uma birra. Um sorriso. Uma troça. Um pesadelo sem interpretação. Um sonho fugidio. Borrão tosco como capela perfeita. Uma pretensão simples. Antes do cinema. Das regras. Da linguagem. De nos conhecermos.


- O Mal Não Está Aqui, de Ryûsuke Hamaguchi

 

Quando não sabemos se a natura oferece a música ou se é ela mesmo música. Um movimento cristalino. E ainda os homens ancestrais a vociferarem verdades ancestrais aos falsos modernos.

 

- Not Like Us, de Dave Free e Kendrick Lamar

 

Mesmo que a prole de Lamar e de Free, uma das poucas que trabalha e pensa 24/dia, desconhecesse Serguei M. Eisenstein - o que não é verdade, sei-o - inventaria tudo o que ele inventou, de graça, e com toda a graça, sagrada e cómica - dialéticas entre desejo e justiça, o outro e Eu, falsos brilhos e vulcões interiores. Cem anos depois as massas humanas (pulsionais, orgânicas, animalescas) e as massas invisíveis (mentais) de Eisenstein agigantam-se.

 

(RE) DESCOBERTAS:

 

My Kingdom for..., de Budd Boetticher, 1985

 

Um filme caseiro, amador, livre, comprometido. Todos os grandes são amadores e artesanais, mesmo com todos os meios. E Budd, um pequeno mestre de Hollywood, pegou no que havia mais à mão - em 1985, entre outras coisas, o vídeo caseiro em protótipo - e registou as suas paixões suicidárias e com elas todas as vivificantes. Alguém que teve de fazer um filme seja lá como for, caso contrário, morria.

 

- Routine Pleasures, de Jean-Pierre Gorin, 1986

 

Velhos cowboys e velhos intelectuais absolutamente despidos pelas paixões. Fica-lhes bem as lamentações (siderantes) do imenso David Lynch: «Adoro o imaginário das crianças porque há imenso mistério. Algo tão simples como uma árvore pode não fazer sentido. Quando és criança não entendes as regras e quando nos tornamos adultos achamos que entendemos as regras, mas o que realmente vivenciamos é uma diminuição da imaginação.» Apenas crianças, no paraíso terrestrial do cinematógrafo e dos comboios, irmãos de ferro e de sangue - Gorin, Farber e os outros.

 

- The Heart Is a Lonely Hunter, de Robert Ellis Miller, 1968

 

Um projétil surdo na terra que fala com todos os projéteis cósmicos que só vislumbramos finamente pela imaginação ou pelo pressentimento. Asteroides infantes, novíssimos idiomas, paixões cifradas. Cada não-dito, cada silêncio, uma manifestação invisível de amor e de morte, que voltam igualados.

 

LIVROS:

 

O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, 1940

 

Os sonhos destruídos da juventude. Vilipendiados.... Acobardados… E o imenso adeus, o imenso desfile de uma consciência que nos pode apaziguar. Lá longe, esfumados... mas pode?

 

- Eleven Rings, de Phil Jackson, 2015

 

Sem comentários apropriados. Uma promessa. O Tao de Phil, a selva de Kipling - irmãos?

 

- Directed By Yasujiro Ozu, de Shiguehiko Hasumi, 2024

 

A simples descrição. E todas as filosofias e formas possíveis.

 

DISCOS:

 

- GNX, de Kendrick Lamar

 

Violência e paixão. Matar-se a cada verso. A cada suspiro. E ressuscitar para a morte seguinte. Para a salvação de um mundo. Alguém que teve de fazer um álbum seja lá como for, caso contrário, morria.

 

EVENTOS:

 

Nick Cave and the Bad Seeds, Meo Arena, 27 de outubro

 

Uma missa catártica, como disse um dos parceiros de concerto. Ressurreição e parto em evolução, em directo, como num milagre, do pai, do filho, do espírito.


 Festival Fatela Sónica, Fatela/Fundão, 20-23 de setembro

 

Espíritos livres e revoluções sónicas protegidos pelo amor = punk.



quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O REGRESSO DE BUDD BOETTICHER, por Bill Krohn

 

CARTA DE HOLLYWOOD:

O REGRESSO DE BUDD BOETTICHER

Por Bill Krohn[i]

Cahiers du cinéma – nº 401, Novembro de 1987




Oscar Boetticher Junior, mais conhecido por Budd Boetticher, é um cineasta familiar aos cinéfilos que aprenderam a amar o cinema através dos géneros: B.B. foi um dos mestres do western, juntamente com o seu actor fetiche, Randolph Scott. A vida agitada de Boetticher e o seu amor sem limites por cavalos e por touradas afastaram-no de Hollywood durante muitos anos. Preferindo a natureza e os animais, viveu durante muitos anos no seu rancho, não muito longe da fronteira mexicana. Alguns conhecem um dos seus mais belos filmes, Homens na Arena (“Bullfighter and the Lady”, 1951), poucos viram Arruza (1971), rodado em 1967, sobre a vida do famoso toureiro, que era seu amigo. Mas ninguém em França viu ainda o último filme de B.B.: O meu reino por um… (“My Kingdom For...”), que encerra a sua trilogia tauromáquica. O festival de Amiens prestará homenagem a Budd Boetticher de 12 a 22 de Novembro, com a presença do realizador. Uma oportunidade ideal para reencontrar um dos cineastas mais cativantes do cinema americano.

 

 

Com a conclusão do seu último filme, O meu reino por um…, que lhe levou nove anos a realizar, e o restauro do seu primeiro grande filme, Homens na Arena – reduzido a 87 minutos por John Ford antes da sua estreia em 1951, agora reconstituído para a sua duração original de 2 horas e 20 minutos por David Shepard, do Sindicato dos Realizadores da América[ii] – fechou-se finalmente um círculo na carreira de Budd Boetticher.

 

 

UMA TRILOGIA TAUROMÁQUICA

 

O meu reino por um… é o último de uma trilogia de filmes tauromáquicos que pontuou a carreira de Boetticher a um ritmo lento de um a cada dezassete anos – Homens na Arena (1951), Arruza (1968) e O meu reino por um… (1985). [Boetticher não conta O Magnífico Matador (“The Magnificent Matador”, 1955), que ele diz ter feito apenas para provar que Anthony Quinn conseguia suster um grande filme com apenas a sua presença]. Estes filmes são o lado oculto de uma obra que os espectadores conheceram sobretudo através de um punhado de obras-primas: seis westerns com Randolph Scott [Boetticher não conta Luta sem Tréguas (“Westbound”, 1959)] e o seu filme de despedida dos estúdios, The Rise and Fall of Legs Diamond (1960) – todos realizados num período incrivelmente curto de quatro anos, de 1957 a 1960; Muitos consideram este período como o crepúsculo do que hoje, em retrospectiva, se designa por cinema “clássico”.

 

Recordemos brevemente a história destes três filmes e as circunstâncias muito variadas em que foram produzidos. 1951: Oscar Boetticher Júnior, cavalheiro toureiro e realizador de filmes de baixo orçamento para produtoras como a Republic e a Eagle Lion, aventura-se num projecto ambicioso. Sob a égide do seu amigo John Wayne, o produtor do filme, realiza uma versão ficcionada das suas aventuras de juventude, o tempo em que aprendeu a tourear no México. Robert Stack, no seu primeiro papel importante, e Gilbert Roland são os actores principais deste filme, a equipa é essencialmente mexicana e alguns dos toureiros mais conhecidos do México colaboram no filme. O filme mal tinha sido terminado e foi logo sepultado pelo estúdio, até que Boetticher procurou a ajuda de John Ford, um realizador que admirava mas que nunca tinha conhecido, que viu o filme, gostou dele e concordou em intervir se conseguisse cortar «40 minutos de merda sentimental». Montado por Ford, o filme foi lançado e nomeado para um Óscar de Melhor Argumento Original. A carreira de realizador de Boetticher estava lançada.

 

1957: Depois de uma série de filmes interessantes feitos para a Universal, alguns dos quais dignos de nota, Boetticher realiza outro filme produzido por John Wayne, 7 Homens Para Matar (“Seven Men from Now”, 1956), o primeiro dos westerns com Randolph Scott, e aceita mesmo fazer vários em série, porque, como cada um dos filmes tinha de ser rodado em dezoito dias, tem liberdade para fazer viagens ao México no seu tempo livre, durante as quais começa, com o seu operador de câmara, o grande Lucien Ballard, a filmar o maior toureiro do México, Carlos Arruza, nessa altura no apogeu de uma segunda carreira triunfante como rejoneador[iii]. Finalmente, em 1960, desgostoso com a tremenda «falta de profissionalismo» com que se deparou durante a realização de The Rise and the Fall of Legs Diamond, Boetticher pega nas 8 bobinas de filme que já tinha editado e, com a sua mulher Debra Paget, mete-se num Rolls Royce branco e parte para o México para terminar Arruza. Isto levou dez anos, ao longo dos quais ele se separou de Debra Paget, enfrentou uma greve que paralisou a indústria cinematográfica mexicana, perdeu todo o seu dinheiro, foi parar a uma prisão federal e até foi internado num manicómio pelo seu próprio agente, que tentou forçá-lo a regressar a Hollywood para fazer Os Comancheros (“The Comancheros”, 1961). Concluído em 1968, após a morte de Arruza num acidente de carro, Arruza foi vendido à Embassy Pictures, que sabotou a sua distribuição.

 

1976: Boetticher e a sua nova mulher, Mary, confortavelmente instalados no rancho onde criavam cavalos, não muito longe da fronteira mexicana, preparam uma espécie de sequela de Arruza, filmada em 16mm por Lucien Ballard, protagonizada pelos Boetticher e pela sua discípula Gloria Ayling, uma rapariga de catorze anos a quem ensinam a arte do rejoneo. O projecto morre quando a família de Gloria se muda para o Oregon, mas é reavivado sete anos mais tarde quando conseguem uma nova jovem discípula, Alison Campbell. Adaptando o enredo à mudança de pessoa, Boetticher muda também de meio: quando o seu novo operador de câmara, Gary Graver, demorado numa filmagem com Orson Welles, não aparece com a equipa no dia de uma actuação a ser filmada para o filme, Boetticher obriga um visitante do rancho, equipado com uma câmara de vídeo, a cobrir o evento. Depois transfere para vídeo o que já tinha sido filmado em película e edita tudo com um videogravador no seu quarto. Com exibição prevista na televisão nos Estados Unidos e em salas de cinema no estrangeiro, O meu reino por um… é uma obra híbrida que também recorre a recortes de jornais e fotografias para evocar diferentes fases da vida de Boetticher, bem como a quadros fotografados pelos Boetticher em museus por toda a Europa, de forma a mostrar a importância dos cavalos ao longo da História. Robert Stack e a sua mulher Rosemary fazem de si mesmos, visitando o El Cortijo Lusitano[iv] e assistindo à importante mostra em que Alison é apresentada ao público pela primeira vez, juntamente com outro representante da nova geração, Carlos Arruza Júnior. O filme começa com excertos de Homens na Arena e Arruza, e termina com um sonho em que Alison se vê a estrear-se como rejoneadora.

 

Muitos continuarão a preferir os seus filmes de género, mas é na sua trilogia tauromáquica que Boetticher cumpre as suas verdadeiras ambições artísticas. Isso já era visível em Arruza, cujas afinidades com a pintura impressionista não podem deixar de ser notadas, e, na sua forma completa, Homens na Arena revela-se uma obra de altíssimo calibre, pelo tom sóbrio e discreto das cenas dramáticas, pela partitura lírica de Victor Young e pelo ritmo majestoso, maravilhosamente controlado, que alterna as sequências diurnas e nocturnas, jogando com a rica paleta de tons que caracterizou o último grande período do preto e branco em Hollywood. (É significativo que Boetticher tenha lutado com a Columbia por poder usar novamente o preto e branco, nove anos mais tarde, em The Rise and Fall of Legs Diamond, no qual ecoa o lado sardónico de Homens na Arena). Quanto a O meu reino por um…, com a sua mistura de técnicas, as complexas estratégias narrativas, o seu uso espontâneo do simbolismo e a discreta utilização de técnicas modernas (nomeadamente o freeze frame, que aqui serve para substituir as transições), é, dos filmes tauromáquicos, aquele que menos hesita em seguir um viés estético – talvez porque expõe sem ambiguidade o grande tema nas entrelinhas da trilogia: a pulsão estética e as suas raízes na agressão e na luta pelo território.

 

 

O MEU REINO POR UM…

 

Com a emergência deste tema, O meu reino por um… traz uma inovação considerável em relação aos filmes anteriores. O que os une, no entanto, são os dois elementos que unificam a trilogia: um tema declarado, a tourada, e uma forma de a filmar, essencialmente documental – pois mesmo Homens na Arena inclui sequências inteiras de touradas filmadas em estilo documental, que Ford tinha optado por eliminar. O problema-chave, a forma de filmar as touradas, parece ter sido rapidamente resolvido. O que impressiona logo, quando se vê a trilogia como um todo, é a medida em que Boetticher se manteve fiel a si próprio, mudando de técnica, de época e de sistema de produção, utilizando literalmente todos os meios à sua disposição para avançar com o seu projecto. É surpreendente, por exemplo, que em 1951 já utilizasse a câmara lenta (32 fotogramas por segundo, como nas reportagens mexicanas sobre touradas) para fins didácticos e estéticos, como faz ao longo de O meu reino por um…, com a ajuda da moderna tecnologia de vídeo.

 

Há uma passagem em O meu reino por um… em que a fidelidade de Boetticher ao seu estilo proporciona um delicioso efeito de rima neste filme cheio de ressonâncias nostálgicas: durante a última actuação, mostra-nos Carlos Arruza Júnior a executar um a dos manos contra o tourino, uma máquina com rodas e chifres usada em todas as demonstrações de rejoneo no rancho El Cortijo Lusitano; depois, enquanto murmura uma observação sobre “memórias”, insere uma imagem de Carlos Arruza-pai, a fazer a mesma manobra contra um touro vivo, filmado exactamente do mesmo ângulo. «Em Guadalajara», explica Boetticher, «Carlos empregou o seu par de banderillas como nunca, e eu tinha a câmara na melhor posição para o filmar: sendo eu próprio um toureiro e rejoneador, sabia quando ia acontecer, porque tinha visto que o touro tinha uma querencia[v]. Automaticamente, coloquei a câmara na mesma posição quando o Carlitos espetou as suas banderillas no touro falso. Ao ver parte do filme aqui no meu quarto, pensei: ‘Meu Deus, fiz este mesmo plano há 36 anos!’ Foi aí que começou este filme. Quando se conhece bem o tema, acaba-se sempre por tratá-lo de uma certa forma, não se consegue aperfeiçoá-la mais.»

 

Mas nenhum destes filmes é um documentário no sentido estrito, mesmo que todos viessem alargar o conhecimento do público para um desporto controverso, sobre o qual pouco se sabe fora do círculo de aficionados. De facto, Boetticher parece também ter resolvido desde o início o problema de combinar ficção e documentário, sem alienar o público, dando-lhe abertamente lições: Homens na Arena foi o primeiro filme em que o toureiro não era espanhol – era americano. «Não se pode imaginar Tyrone Power em Sangue e Arena[vi] virar-se para John Carradine, que cresceu em Sevilha com ele, tendo ambos lutado com touros desde que tinham idade para andar, e dizer: ‘Esse é um touro de lide’. O outro diria: ’Não me digas, isso sei eu!’ Mas quando Robert Stack diz a Gilbert Roland: ‘Manolo, como é que sabes se o touro vai ser bravo?’ Roland pode explicar-lhe, e assim quem está a ver o filme começa a saber umas coisas sobre touradas».

 

Como se esta metodologia não fosse suficiente para exorcizar o demónio do didactismo, a transição do documentário para ficção é encenada no próprio filme. Homens na Arena começa com cenas de touradas enquanto um narrador (Ward Bond, omitido nos créditos) fala das touradas como um jogo com a morte, e apresenta Manolo Estrada (Roland) e os seus colegas, expondo o ponto de vista omnisciente do narrador em off, simbolizado pelo ângulo da câmara da arena, um ângulo muito elevado. De repente, intervém uma nova voz, na qual irrompe o sarcasmo: «Oh, tu e o teu dicionário de espanhol... os lugares mais caros! O que tu gostas é de 'muy alto', Liz?». A mudança é um pouco desconcertante, porque não nos apercebemos imediatamente de que um comentador substituiu o outro e temos a impressão de que o sarcasmo se dirige a quem está a ver, até que um plano oposto nos revela que a nova voz e o ângulo de câmara elevado são os da personagem do filme, Barney Flood (John Hubbard), um produtor de teatro americano de visita ao México com a sua mulher Liz (Virginia Grey) e o seu jovem sócio John Regan (Robert Stack). Compreendemos em retrospectiva o que aconteceu: a voz do narrador foi substituída pela de um turista infeliz, cuja falta de espanhol da mulher o levou ao pior lugar da arena – um lugar vertiginoso a partir do qual é impossível ver o espectáculo, e que oferece uma perspectiva que, alguns segundos antes, tínhamos confundido com a de um deus. Sobreposto às imagens da acção que se desenrola em baixo está o contorno de uns binóculos. São os binóculos através dos quais Flood e Regan observam o admirável domínio que Estrada exibe. Na cena seguinte, Regan pede a Estrada que lhe ensine a arte de tourear.

 

Nesta sequência, Boetticher manifesta a sua aversão ao uso convencional e didáctico da voz-off de um comentador, preferindo o ponto de vista do leigo, daquele que nada sabe (Flood, depois Regan, o seu companheiro vivaz), porque é um substituto conveniente para o público e porque a sua personagem serve de ponto de partida para a ficção. Sabendo isto, ficamos inicialmente surpreendidos ao ouvir, em Arruza, a voz-off de Anthony Quinn a comentar, a explicar, e mesmo a falar no lugar dos verdadeiros protagonistas, cujas vozes nunca ouvimos. Mas neste filme, Boetticher usa a convenção do comentário em voz-off contra si próprio, um pouco como Godard quando “baixa o volume” em Aqui e Algures[vii]: «O público aprende o que é o rejoneo, Quinn explica-o enquanto Carlos aprende a montar. Mas quando chegamos à última tourada, há meia hora sem uma única palavra: assistimos a uma tourada»

 

Em O meu reino por um…, Boetticher usa Robert Stack exactamente como fez em Homens na Arena. Ele conta a história de Gloria e Alison, através de flashbacks, a Stack, que fica assim a compreender o espectáculo equestre a que vai assistir no dia seguinte (este ocupa um lugar equivalente ao da tourada no final de Arruza): «Precisava de alguém que não percebesse nada, que me fizesse perguntas para eu lhe dar explicações. Por isso, fui buscar o antigo coro grego – Robert Stack. Portanto, não me dirijo ao público. O público nunca quer ouvir quando nos dirigimos directamente a ele.»

 

O meu reino por um… começa também como um documentário: a voz de Stack (não identificado) profere a epígrafe do filme, retirada de “Da equitação”, de Xenofonte. Mas quando a voz que narra se torna mais concreta (falando na primeira pessoa, recordando encontros passados com Boetticher, recordando também a primeira experiência de Stack como toureiro, representada no ecrã por um excerto de Homens na Arena), o que esta comenta é intercalada com imagens sem comentários que mostram a descida de um avião privado que se prepara para aterrar no aeroporto de San Diego. Ali, impassível, Carlos Arruza Júnior (não identificado) aguarda o avião. A identificação progressiva da voz-off e a descida do avião, que traz o comentador para o campo do filme, retirando-o do espaço imaginário a partir do qual até então fazia os seus comentários, constituem dois movimentos paralelos. Terminam ao mesmo tempo, no momento em que o avião pára, quando Arruza Júnior abre a porta e pergunta ao casal que está lá dentro: «Sr. e Sra. Stack?» E assim é revelado o nome do passageiro principal. A partir deste momento, Stack deixa de ser um narrador e passa a ser uma personagem no ponto de ser ensinada.

 

Mesmo que a diferença entre o actor e a personagem que interpreta pareça extremamente ténue, uma vez que o actor se interpreta a si próprio, a primeira cena em que Stack aparece, aquela em que sai do avião, é puramente ficcional: não reconhecendo Carlos Arruza Júnior, que não vê desde a infância, Stack não aprecia o facto de Boetticher ter enviado o seu motorista ao aeroporto em vez de ir pessoalmente. É só depois de ser conduzido aos estábulos de Boetticher, onde o seu malicioso anfitrião está a escrever um texto de boas-vindas, que ele se apercebe da piada.

 

Esta piada permite a apresentação de Arruza Júnior, mas é também uma indirecta a Stack, que tardou sete anos a visitar o El Cortijo. As fotografias que vemos na cena seguinte, fixadas na parede da sala de arreios, representam todos os amigos que visitaram Boetticher desde que ele começou uma nova vida em Ramona. A piada tem também a mesma função que os binóculos em Homens na Arena: introduz a dúvida quanto à omnisciência do narrador interpretado por Stack, sugerindo que, enquanto turista que chegou um pouco tarde, nem sempre é capaz de ver para além das aparências. Mas que aparências? Voltemos atrás no tempo (o cinema presta-se a isso): antes de o avião começar a descer, durante a primeira sequência após os créditos iniciais, vemos Boetticher e o seu famoso garanhão espanhol, Sultan, em plena mostra no “Airs Above the Ground”[viii], e depois vemos Boetticher a montar o seu amado garanhão Califa. Tudo isto se passa perante os espectadores do El Cortijo Lusitano. Inicialmente sozinho, Boetticher surge depois acompanhado pela sua mulher Mary, uma exímia cavaleira, enquanto a voz de Stack nos conta a decisão do realizador deixar Hollywood. Num tom de admiração, a sua voz fala da vida “pitoresca” do realizador e do seu gosto pela “emoção” e pelo “perigo”. (Estas palavras lembram o início do comentário de Anthony Quinn em Arruza).

 

O que vemos, reforçado pela voz-off de Stack, é a imagem do homem que fez Emboscada Fatal[ix]: um homem a cavalo, feito para o perigo, primeiro sozinho e depois na companhia de uma bela mulher que, com o seu olhar marcante e as suas roupas justas, faz lembrar a heroína de vários dos westerns filmados com Scott. Os comentários de Stack e um flashback que mostra a cena extremamente pujante em que Carlos Arruza se degladeia na Plaza México[x] recordam-nos que Boetticher é também o homem que realizou Arruza. O paralelismo é novamente óbvio: tal como Boetticher, Arruza tornou-se criador de touros e rejoneador depois de se reformar. A sua mulher também se chamava Mari, e até tinha um garanhão chamado Califa. Hoje podemos ter a impressão de que Boetticher se tornou no homem que vemos nos seus filmes, quando foi ele quem começou a filmar a sua história. No flashback seguinte, um dos pontos altos de Homens na Arena, também filmado na Plaza México, a voz de Stack informa-nos que o filme se baseia nas aventuras de juventude do realizador. O homem encaixa-se perfeitamente nos seus filmes. Já vimos os seus filmes, agora vemos o homem.

 

Mas este cariz “supostamente biográfico”, apoiado no comentário romântico de Stack, não resiste a um exame minucioso. As semelhanças entre Boetticher e os seus heróis não são tão óbvias como parecem à primeira vista. Além disso, os excertos utilizados para os flashbacks estão, em particular e curiosamente, contaminados pela ficção.

 

A sequência retirada de Homens na Arena mostra Regan (Stack) entrando na Plaza México e a preparar-se para se degladiar com um touro para expiar a morte de Estrada (Roland), causada por ele. Entretanto, Stack, o narrador, explica-nos que o material do filme é, na realidade, a vida de Boetticher. Ele fala-nos do medo que sentiu na própria pele quando, durante as filmagens desta sequência, se viu frente a frente com um touro pela primeira vez na sua vida. Assim apresentada, a sequência é triplamente ficcional. Em primeiro lugar, Stack encontrou-se cara a cara com um touro durante a filmagem da tienta[xi], que precedeu a sequência do flashback. Segundo, Boetticher nunca causou a morte de ninguém numa arena. Terceiro, ele nunca lutou na Plaza México no início da sua carreira (a Plaza ainda não existia). De facto, há apenas um elemento nesta magnífica cena que se baseia na experiência de uma pessoa. É a reacção de Regan quando os seus companheiros matadores rezam as suas orações ao entrarem na arena: olhando para a esquerda e para a direita, vê-os a fazerem o sinal da cruz e olha para o céu. («Mantive essa sequência porque era o melhor plano, mas também porque se enquadrava no que eu sentia sempre que me debatia – estava sempre rodeado de católicos!»)

 

Quanto à sequência cortada de Arruza, é quádrupla ficção, apesar de vermos Carlos Arruza a arriscar a sua vida numa das maiores exibições de matador alguma vez filmadas. Primeiro, Arruza estava a lutar pelas câmaras de Boetticher, como Stack nos recorda («Eu estava lá... Ouvi o grande matador dizer: ‘Diz-me lá então onde queres que eu vá morrer pela tua maldita câmara!’ No momento culminante, na sequência da Plaza México que não vemos aqui, Arruza olha para a câmara antes de matar o touro para se certificar de que está na posição correcta»). Em segundo lugar, Arruza voltou à Plaza México para lutar a cavalo apenas por instigação de Boetticher e apesar de todas as suas objecções virulentas – na verdade, fez Boetticher esperar nove anos. Em terceiro lugar, a sequência é composta por actuações que tiveram lugar em dois Domingos sucessivos, porque Boetticher, que não estava satisfeito com o final da sequência, chamou Arruza de volta e obrigou-o a fazê-la novamente. Em quarto lugar, estas duas exibições, que correspondiam ao ponto alto da carreira de Arruza, tinham sido, muito conscientemente, imaginadas pelo realizador como um eco da cena suprema de Homens na Arena, que tinha sido, como vimos, uma invenção.

 

O mito que Boetticher encarna naquilo a que poderíamos chamar o filme de Stack – e, sem dúvida, aos olhos do próprio Stack, que simbolizam os amigos de Boetticher em Hollywood e os seus admiradores em todo o mundo – é o do machismo, e O meu reino por um… contraria esse mito, pela própria natureza da história que conta, que está mais próxima da Disney do que daquilo que Hollywood ou os admiradores de Boetticher esperariam dele: «O que me agrada em O meu reino por um… é o facto de ser um filme muito gentil, e nunca me foi permitido fazer um filme gentil em Hollywood. Era tudo sangue, tomates, tripas, porque é assim que me vêem. Não se conquista uma mulher como a Mary sendo apenas um durão». Ainda mais surpreendente, se pensarmos no papel limitado das mulheres nos westerns de Scott, O meu reino por um… é um filme sobre a transmissão da tradição, em que a geração mais nova é essencialmente representada por duas raparigas adolescentes. («Tenho a certeza de que alguém vai escrever uma tese a explicar que isto representa o empoderamento feminino, ou algo do género, mas não é. Só significa que as raparigas jovens são mais apaixonadas por cavalos do que os rapazes.»)

 

E, vistas as coisas, a história contada nos longos flashbacks refina a imagem de mestria que Boetticher encarna no início do filme, sublinhando a sua vulnerabilidade: quando Gloria, a primeira discípula, se vai embora, Budd e Mary ficam tão sensibilizados que juram nunca mais o fazer, até que, finalmente, fraquejam e aceitam Alison, a pedido dela. É só depois de o trio ter ultrapassado uma crise, quando o capão favorito de Mary, Gitano, fica gravemente ferido, que se arriscam a adoptar Mary. Boetticher fala destas coisas, como de tudo o resto relacionado com o seu filme, em jeito de mise en scène: «A nova discípula é um bom elemento para o enredo. É assim que se escrevem os bons argumentos: um rapaz conhece uma rapariga, a rapariga apanha uma pneumonia, o rapaz torna-se médico, cura a rapariga, casam-se, têm um filho, o bebé apanha uma pneumonia... Há altos e baixos, e é isso que mantém o interesse.». Mas o filme tem a marca pungente da dor e da raiva que a partida de Gloria lhe causa: ele retirou a maior parte das filmagens com ela – é difícil imaginar outro realizador a fazê-lo, considerando que tudo foi filmado por Lucien Ballard.

 

O “filme de Stack” é, de facto, o filme de Boetticher, claro. E Stack, o actor, está apenas a ler um texto escrito para ele por Boetticher quando desenha o retrato romântico do homem a cavalo, mas Boetticher explica esta contradição referindo-se novamente à sua concepção de realização: «Lembrem-se disto: eu sou um homem do espectáculo e as pessoas que me vêem no espectáculo vêem-me como eu quero aparecer. Por outro lado, não é por ser esse tipo de homem que tive tanto sucesso, durante toda a minha vida, com mulheres bonitas. Eu choro, sou muito sensível, interesso-me pelas pessoas, gosto de miúdos porreiros, detesto outros, e adoro os meus amigos. Ninguém sabe quem eu sou, no fundo, excepto aqueles que me conhecem muito bem. Sou um homem do espectáculo, e quando estou em frente à câmara, sou o que quero ser – mas, por amor de Deus, eu não sou nada assim!»

 

Nada disto surpreenderá aqueles que conhecem Boetticher através dos seus filmes e não através dos estereótipos difundidos pela crítica. Não é certamente a primeira vez que um herói de Boetticher volta a viver, contra a sua vontade, o amor cuja perda o traumatizou, mas é a primeira vez que esta repetição conduz a um final feliz ambíguo.

 

 

O SONHO DE ALISON

 

Machismo como puro espectáculo: Boetticher desenvolve implicitamente esta ideia no breve relato que faz a Stack sobre a história do rejoneo. Embora afirme que ele e Mary praticam a única arte medieval ainda existente exactamente como era na Idade Média, a tradição foi completamente revista nas actuações no El Cortijo Lusitano, uma vez que o touro é substituído pela máquina com rodas normalmente utilizada apenas para exercícios – ele foi levado a fazer isto por uma mistura de motivos pessoais e profissionais: «É a única forma de mostrar às pessoas deste país o que fazem os cavalos de toureio. Permite-lhes observar os cavalos e a arte de os dominar, sem uma gota de sangue. Pessoalmente, teria preferido tourear com touros vivos, mas a minha mulher não quis e as miúdas também não. Foi muito difícil fazer com que a Mary espetasse as banderillas na máquina, porque cada vez que ela malhava naquela maldita coisa, sentia que estava a magoar um animal! É mesmo assim a Mary, é por isso que a adoro».

 

A substituição do touro por uma máquina representa uma mudança tão radical no ritual da tourada que os espectadores desprevenidos podem, à primeira vista, ficar impressionados com a imbecilidade da ideia, mas a inovação de Boetticher é apenas o passo mais recente na evolução do rejoneo, um jogo de guerra concebido pelos cavaleiros medievais portugueses para manter os seus cavalos em forma, que evoluiu para uma forma de arte que antecede em três séculos a tourada ao estilo espanhol, que é mais conhecida. A trilogia mostra as três fases desta evolução, a última das quais é o rejoneo à maneira de Boetticher – embora seja improvável que a tradição que Boetticher reiventou venha a tornar-se norma: «Não pode ser o próximo passo, porque eles estão preocupados com a honra, a morte e tudo isso. É a sua forma de machismo».

 

Ao longo de toda a trilogia, a tauromaquia é retratada como uma forma de arte, a par da música e da pintura, e cada filme termina da mesma forma, com um espectáculo em que a dimensão estética desta arte é revelada na sua totalidade – em parte, pelo menos, porque a outra forma de arte que Boetticher ama assim o exige: «É assim que se fazem filmes. Hoje em dia, não se pode fechar um filme. Os filmes nunca têm um final. Lembram-se do Mickey Rooney e da Judy Garland, com todos os seus amiguinhos, o filme a acabar com um grande espectáculo no celeiro, certo? – Já nos esquecemos disso. O que fazem é sentar-se à volta de uma mesa e discutir o final e acabam por estragar tudo. Lançaram um filme que tem três finais diferentes...» Em O meu reino por um…, o final é puro espectáculo: enquanto as grandes cenas de touradas que servem de clímax a Homens na Arena e Arruza eram precedidas de sequências dramáticas que enfatizavam o confronto existencial com a morte que se aproximava, o final de O meu reino por um… surge depois de uma sequência em que vemos todo o elenco, subitamente muito mais numeroso, a decorar a arena com bandeiras e cartazes, a tratar dos cavalos, a preparar os adereços e os figurinos, numa atmosfera próxima da de um circo: «Não fazem ideia do que é necessário para preparar um espectáculo: é preciso gente em todo o lado. É como estar no cenário de uma grande produção cinematográfica».

 

Mas não devemos esquecer o que resta de um drama existencial, e que distingue os espectáculos de Boetticher dos treinos, que as demonstrações no El Cortijo Lusitano também incluem. «Removemos o sangue e a morte e mantivemos o bailado a cavalo, mas não removemos o perigo que o cavaleiro corre. Porque ao fazer alguns destes movimentos pode-se cair e partir o pescoço. O que fazemos é muito perigoso e é isso que as pessoas gostam neste espectáculo. Num espectáculo de Lipizzans[xii], eles fazem todo o tipo de malabarismos e saltam muito alto, é tudo espectacular, mas ninguém se vai magoar. A Mary e eu podemos matar-nos. De facto, para este filme, a Mary ficou com um braço e um dedo do pé partidos. Eu tive seis costelas partidas, uma hérnia, uma hérnia dupla, e uma vértebra deslocada no pescoço. Se vos contasse tudo, nem iam acreditar!»

 

Todos os elementos do espectáculo boetticheriano estão condensados na sequência que se segue à última actuação. É o sonho de Alison: depois de todos terem partido, Alison entra na arena vazia, segurando o seu garanhão favorito, Gladiator, pelo arreio. Ouve música ao longe e todos os pormenores do espectáculo reaparecem diante dos seus olhos: as bandeiras e os cartazes, as banderillas a balançar ao vento, o touro-máquina. De repente, está montada no Gladiador, vestida com a casaca preta portuguesa do século XIX, que Boetticher tinha mostrado a Stack anteriormente, um presente de Carlos Arruza. Também de repente, Boetticher aparece atrás do touro-máquina, vestido de preto, com um ar bravo; vemo-lo em grande plano a balançar a cabeça como um touro que se prepara para atacar. Alison faz uma careta e abana a cabeça como quem diz “Não”; Boetticher desaparece, substituído por Mary, vestida com calças justas pretas, sorrindo amigavelmente. Depois de um aceno de cabeça, Alison começa uma demonstração de rejoneo, acompanhada de música e aplausos. Quando termina, ouve a multidão invisível a aplaudi-la e um plano oposto mostra-nos Robert e Rosemarie Stack a aplaudir, de pé, entre outros espectadores impressionados. Alison agradece-lhes com um pequeno aceno de cabeça. A imagem pára no seu sorriso radiante.

 

O cineasta é consciente das implicações psicológicas desta sequência: «Estávamos de preto porque éramos o touro dela. O único touro que ela tinha enfrentado era eu, e ela não o aceitava de forma alguma. De repente, a Mary está lá, é um touro amigável e gentil, e a Alison aceita o combate». Mas esta ideia de substitutos do touro também ilustra a noção bizarra e democrática de espectáculo de Boetticher: «Ela olha para mim e aparece um grande plano meu. Sou um filho da mãe pavoroso que a aterrorizou, que a acossou quando ela estava com o Califa até ela quase perder a cabeça, e, de repente, ela surge vestida como desejaria, e o sonho é dela. Eu estou lá, mas ela não aceita nada do que eu represento. Por isso, livra-se rapidamente de mim, o que eu acho muito engraçado». Recebi o mesmo tipo de resposta quando perguntei sobre um pormenor de maquilhagem. A pergunta foi: «Porque é que os lábios da Alison estão tão maquilhados na cena em que ela está a ver as fotografias na sala de arreios?» A resposta: «A Alison tem quinze anos. E em vez de a fazer parecer a rapariga de quinze anos que imaginamos, ela é um pouco louca, aparece vestida como quer. Hoje em dia, os miúdos têm esse aspecto muito mais do que quereríamos. Ela usava aqueles brincos horríveis na última cena do filme. Mas deixámo-la usá-los, porque é assim que os miúdos se vestem». Cada um é o seu próprio realizador, livre de criar uma imagem de si próprio à luz da sua imaginação: isto poderia aplicar-se igualmente às personagens das obras puramente imaginárias de Boetticher, e particularmente aos vilões, embora neste filme a ideia assuma um efeito “documental”. E mesmo que todas as personagens do sonho estejam de preto, não é a primeira vez que um filme de Boetticher, reconhecendo os limites do poder de criar mitos – que é todo o mérito do espectáculo – termina alegremente com um olhar de esguelha para a morte (Craig Stevens para Peter Whitney no final de Fibra de Herói[xiii]: «Não fiques aí parado Amos, pega numa pá!»).

 

– B.K.


(Originalmente escrito em inglês e traduzido para francês por Francine Arakelian e Lydie Eschasseriaux; o manuscrito original em inglês foi perdido e este texto foi retraduzido para inglês por Andy Retor; tradução para português por H.M.S. Pereira)



[i] N. do T.: Autor e crítico americano, Bill Krohn é, desde 1978, correspondente em Hollywood da incontornável revista francesa sobre cinema Cahiers du Cinéma.

 

[ii] N. do T.: Directors Guild of America.

 

[iii] N. do T.: Chama-se “Rejoneador” ao toureiro que monta a cavalo.

 

[iv] N. do T.: Rancho de Budd e Mary Boetticher na região de San Diego Country Estates, perto de Ramona, na Califórnia.

 

[v] N. do T.: Chama-se querencia, em espanhol, ao local da praça de touros onde o touro vai frequentemente, onde ele gosta de estar.

 

[vi] N. do T.: “Blood and Sand”, 1941.

 

[vii] N. do T.: “Ici et ailleurs”, 1976.

 

[viii] N. do T.: Mostra de movimentos de dressage clássico de nível superior, em que o cavalo se eleva do chão.

 

[ix] N. do T.: “Comanche Station”, 1960.

 

[x] N. do T.: A maior praça de touros do mundo, localizada na Cidade do México.

 

[xi] N. do T.: A “tienta” é um dos testes mais importantes efectuados no gado para medir a sua resistência e bravura.

 

[xii] N. do T.: raça de cavalos que surgiu no século XVII, na Andaluzia, caracterizada pelo adestramento de alto controle.

 

[xiii] N. do T.: “Buchanan Rides Alone”, 1958.