sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016



De “Broken Lance” que Edward Dmytryk realiza em 1954 se diz que é um remake de “House Of Strangers” de Joseph L. Mankiewicz e por sua vez da história de Philip Yordan por Richard Murphy; mas a actualização ao para trás no tempo não necessitava de âncoras ou então tais só foram precisas para relembrarmos que estamos sempre a falar da mesma coisa, do José da Bíblia a King Lear a Oakley Hall: paixões tormentosas, fogos proibidos, infâncias perdidas, predilecções mortais, cordão umbilical, coração na boca.

Por isso, saberemos mais ou menos como evoluirão as coisas, como acabará a jornada e da forma que tudo começou, mesmo só o lendo nos cantos das expressões e em frases escondidas; a surpresa, ou seja, o terrível e fascinante do instante imprevisto depende do cada qual que cada um de nós é, e aí está todo o drama. Tratando-se de cinema a questão é de dramaturgia, e duas cenas se enlaçam e constituem o âmago clássico e logo o novo: começando pela segunda: a oposição derradeira em plano fixo de vários minutos antes das vanguardas entre Spencer Tracy e Richard Widmark, que só é tão dura e tão tensa para todo o passado se volver imediato e o imperdoável se impor; Widmark mete de fora as tripas da falta de amor, do abandono, do abuso; Tracy mede o pulso aos limites e morre; já se sabe do próximo capítulo. A primeira das cenas foi o encontro entre o torcido e retorcido Robert Wagner com a sabida inocente Jean Peters; sendo esse momento mais um remake de “East of Eden”, a forte menina faz ver ao frágil Wagner da maldade e da parcialidade horrenda do seu Pai, para evidenciar o amor do pai ao filho, e do filho ao pai; dessa luz paradisíaca sobeja o embate familiar mais antigo do que tudo, prometendo-se o eterno retorno ao fruto proibido.

Pelos meios da cena da morte e da cena da nascença - a vingança e o reconhecimento - a Mãe que vai olhar o desenlace de longe, impassível e a velar, como o lobo que ronda por ali desce cedo, centros da discórdia fiéis ao chamamento e fiéis à liberdade. Katy Jurado, sublime, trágica e mágica, que completamente se entregou e completamente cedeu passagem, orienta e faz-se ponto de vista de todo o filme, de todo esse grande arco. E a dramaturgia com ela, estancando-se para tudo sair de uma só vez, tacteando num novo mundo derivado e irreprimível. Por isso Edward Dmytryk faz parte do legado convocado, sempre em repetição, sempre no jardim inaudito.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016


“The Young Lions” saiu dali do final dos anos cinquenta e já com tudo para os sessenta, onde tanta coisa se decidiu e vergou, e na sua imensa força e fragilidade está ao nível de “Some Came Running” ou de “Rio Bravo”, mas também de “Meghe Dhaka Tara” ou “L'avventura”. A partir daí, muito do que foi já não mais seria, para surgirem novos cenários e novos mitos. A força tem a ver com o CinemaScope que não cede a nenhuma pressão – nem quando treme nas bombas sem efeito especial – às variações de temperatura ou de paisagem, personalidade ou ambição. Fragilidade pois qualquer um dos três protagonistas, seja o alemão de Marlon Brando ou os quotidianos soldados americanos de Dean Martin e de Montgomery Clift, são resolutamente verticais, medrosos, heróicos e cobardes, estóicos e desistentes.

Com a guerra no seu encalço apaixonam-se vezes sem conta, para permanecerem inocentemente fieis. Brando é o caso mais complexo, desde que olhamos para ele que temos a certeza de que nunca será nazi, e assim continuaremos com a certeza até ele morrer como um grande, depois de se ter escapado – não mata os seus comandantes como sabemos que lhe apetece, mas antes de um passeio à Philippe Garrel com alguém que o percebeu diz a esse alguém que pensa como ela mil vezes ao dia, guerreiro encolhido no seu brilho, vencedor na arena dos perdedores. Dean Martin começa na sua imagem de marca, a conquistar os amigos pela bebida e pela disponibilidade e as mulheres pela simples presença, evoluindo até se despir de todas as cintilações e famas que nunca pediu e permanecer nessa expressão descarnada de melhor amigo. Quanto a Clift, do nada surge despido e despido acaba, como a criança mais pura e sem saber como se comportar na terra de todas as dissimulações (sobretudo quando tenta a mentira, recurso fácil dos nada opinativos), e desse modo tanto conquista o anjo loiro que lhe dá um filho como pena infernalmente no clube dos duros para onde é chamado por não ter família nem significado. Quanto às mulheres que vão surgindo e lhes vão deitando a mão, todas têm as suas razões, da esposa do nazi com influências que se sente mortalmente sozinha até à francesa que perdeu o marido e não vai na lengalenga da paz proferida pela boca fora; quando tudo acaba só Clift entra no lar, mas qualquer uma delas apelaram a isso mesmo, silenciosamente.

A grande vitória de Edward Dmytryk está em ter trocado o génio e a glorificação que o tema e as vedetas teriam assegurado para ir pelas sendas e pela mão da disponibilidade, entendendo o que só o tempo pode permitir entender. Seres resolutamente verticais, medrosos, heróicos e cobardes, estóicos e desistentes, enquadrados ternamente pelo formato largo que lhes agiganta a verdade e perscruta o inominável; distância que expõe as feridas – Clift tem aqui afinal o seu papel e a sua biografia mais profunda, grave e esventrada – mas também busca a cura; firmeza que se impõe nos abalos terríveis às fundações – sejam os campos de concentração, seja o mal praticado como bem cego (tremenda a condensação de Maximilian Schell) – permitindo a passagem aos bons sentimentos; escutar os rumores finos e secretos que contradizem a bruta aparência. E o fundamental é então disso – no centro terrorífico da nossa História, pelo cinema, resguardar alguma coisa, o olhar estraçalhado mas firme de Clift como o regresso a casa. Mesmo ou sobretudo depois do encontro dos três na terra do nunca, onde é mais uma vez a raiva e o susto que operam sem controlo. Mas o olhar como a câmara frontal assim inatos nunca mentem, e muito se resguardou ainda.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016


“The Killing” não é um mecanismo perfeito, um relógio suíço montado e mantido à maneira de Jean-Pierre Melville. A começar pelo actor mais visível do grupo que almeja o golpe das suas vidas - longe da possibilidade de ser um ponteiro firme como o foi Alain Delon, Sterling Hayden, talvez ainda agitado pelos ventos e fogos de “Johnny Guitar”, treme por todos os lados e ainda por cima tem o destino a fazer-lhe marcação cerrada.

No grupo há pouco ou nenhum do sangue frio necessário para tais movimentações e timings, e a forma como Stanley Kubrick monta o mosaico ou o explosivo apenas manifesta o antro de perdição em causa e a incapacidade dos artifícios formais e do génio da manipulação artística para investir contra a ontologia puramente e fundamente humana. Casais criados pela manipulação do sexo e do dinheiro, solitários mantidos em acção pela violência a testar, a doença e a fidelidade e o vício indomável em atracção, é desta matéria composta as almas e os corpos em pulsões turvas e turbulentas, que terão de funcionar como o tal objecto imparcial do tempo e do espaço científico.

Ao invés da ciência será o sagrado a advir, isto é, a imprevisibilidade, a transcendência, a síncope que a missão humana ostenta em relação à máquina. E da gama de sentimentos ignóbeis que cobrem e riscam a crosta do preto e branco para também lhe retirar a gaveta do género noir, há resguardada a noção e a luz clara de que nem todos são assim tão odiosos. Ao invés do circo da política, do circo das finanças ou do circo da segurança social, da polícia e da lei, enfim, ao invés das autoridades protegerem as pessoas, a carne e o osso, os cidadãos, os frágeis, a nação, etc., parecem eternamente trabalhar contra eles – nunca se há-de compreender o grande paradoxo da chamada sociedade oficial e é isso que faz cair os protagonistas deste filme. Ao invés de a política servir as pessoas, faz-lhes a vida negra, e é isso que faz cair os protagonistas deste espelho.

Depois de tanta coisa feia, o final é o instante mais feio, essa cena desconsolada logo depois do acaso da ciência e do acaso do sagrado se embrenharem. Porque entre tantas girândolas contradiz ou continua o desfecho do anterior “Killer's Kiss”. Ao abraço sucede-se um abandono de um desejo tão lindo e, sem dúvida, puramente inocente. Yeah... What's the difference?, responde Hayden ao amor incondicional, e tudo é desamparo e armas apontadas, suplício e Apocalipse. A cruz de KK invertida, a negação em hipótese, e o resultado de tanta perfeição dos nossos altos. Mas já a possibilidade de uma moral de toda a obra de Kubrick: toda a espantosa precisão só revela da destruição. Ou seja, uma generosidade que tem de permanecer trancada. Porque em primeiro ou em último plano demencial.

sábado, 6 de fevereiro de 2016


Recuperado recentemente como deve ser, “Fear and Desire”, primeiro filme longo de Kubrick em 1953, é um impressionante topo que se liga e religa com os finais da sua lenta caminhada. Topo imensurável e de espaço ecoante no abismo cósmico e no presente que nos vela, como as mentes e os antes e durantes e depois da lembrança. Em acordo com tal, já é a soldadura do “Apocalipse Now” de Coppola com o Terence Malick essencial, dos contrários e das pontas, compactando-se a loucura e a busca, a serenidade e a nostalgia, na pena de Twain ou na película de Philip Jones Griffiths. Milhões e biliões ou um segundo entre a primeira montanha e a última que é a mesma. Dos coros celestes e do muito terreno. Mas por agora, um passo em frente.

“Killer's Kiss “ é um filme surpreendente, e também muito por parecer umbilicalmente ligado aos cinzentos, negros e brancos gastos dos empreiteiros da série-b e dos noirs; um H. Lewis ou um Tuttle em romantismos terminais que só almejam a nitidez da realidade, o lavar da face depois do sono; mas mais do que isso porque reduz ideias feitas que só servem para aplacar o ser-humano à condição relativa do sopro que nos segura eternamente no fio da navalha. Na vida, o mais leve dos ventos como o discurso mais veemente pode mudar o curso de todas as coisas.

Segunda longa-metragem de Stanley Kubrick logo na entrada nos afasta do epíteto do mestre frio e gelado para nos colocar num palco ultra-sensível que faz lembrar o Chaplin de “Limelight” e a história grave do palhaço velho e da bailarina suicida. Jamie Smith é um boxeur com a data de validade pronta a esgotar, dessas velhas promessas constantemente adiadas, que levou a sua carreira sempre a baixo das potencialidades, sem se saber se por falta de jeito, por preguiça crónica ou azares da vidinha. Irene Kane é Irene Kane, corpo frágil e alma ainda mais frágil, melindrada da nascença pela morte de quem a trouxe ao mundo. Sozinha nestes palcos agarrou-se à bailarina desfalecida que foi a irmã e ainda não ajustou as contas com o progenitor. Mora mesmo ao lado do lutador e mediante tais circunstâncias o encontro estava marcado.

A figura do looser que vamos encontrar, a lamentar-se dos sucedidos e a convencer-se de que não serve para nada, junta-se à boneca de porcelana que escolheu viver entre espectros e no espectro mais sombrio. E o fascinante desta construção fílmica tão triste como radiante está no paralelo entre a dança e a violência dos combates com o angélico esvoaçar desses alguns anjos caídos que em branco se entregam aos mais inocentes e voluptuosos movimentos. Um encontro assim, mesmo com a bênção de alguma providência sagrada ou não, teria de passar pela mais medonha provação. E passa mesmo, acontecendo nessa espécie de dia alongado ao pesadelo, pedido ou estropiado à noite, as agruras e rugas das etapas de uma vivência – dos ciumes à inveja, do incompreensível ao milagre.

Assim, entre alvoradas cheias de pássaros divagantes, recordações ao retardador e luzes da ribalta desabadas como as da cidade que anoitece em longo fade, o espectáculo da confrontação entre iguais dá-se em torno de homens e mulheres artificiais, modelos impassíveis que assistem nas tintas às nossas disputas; metidos no meio e a ajudar decisivamente à festa. Quando a penúltima cena se esfuma e cede passagem à merecida oportunidade, fica uma máscara que se ri de alguma coisa séria ou ridícula, mas sem dizer do quê. E então o realizador glacial sentiu das entranhas e do coração de Chaplin, estilhaçando a mitologia do perdedor e da beleza da perdição, dando um last shot ainda à maneira de Sylvester Stallone, em bailado transcendente, abraço ou cruz reservada no centro da multidão. É coisa muitíssima, em rotações estonteantes, dos sapatos de veludo ou de cetim às luvas do boxe, que nos permite girar mais algum tempo. Embalados por um tema musical que agradece a Eternally, o Terry's Theme de Charlie Chaplin. Triste e belo. Como choro seco.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016


Cinematograficamente belo é o primeiro quadro do genial “Barry Lyndon”, atmosfera indefinível onde a presença de espírito alguma vez experimentada ou simplesmente pressentida faz sentido; ou uma aurora de David Wark Griffith, o acordar do mundo em consonância com o espanto de um novo olhar impresso na nova película. Mas também a entrega e a perdição e a garra de Robert Kramer nas suas viagens aos confins de tudo, rumo a pessoas. Mas um pouco ao lado das esferas cósmicas, ou precisamente envolto nelas, uma mulher a unir-se a um homem, ou um homem a unir-se a uma mulher, por crerem sem ver o mais secreto da sua existência, é do mais belo que o tão desconhecido universo e o tão desconhecido cinema pode oferecer.

“Three Days of the Condor” é uma narrativa de espionagem, de ar do tempo e futurologia, mas é também, ou acima de tudo, um esplendor estético simples, desses sem qualidade demarcada ou controlada; essa aceitação sentimental de dois seres que se aceitam só pelo olhar e pela temperatura e tremor de um corpo ascende à categoria indizível das emoções. Evidentemente que no prólogo há armas, ameaças, altercações, mas nunca olhares mentirosos sobre o fundamental. Robert Redford é um peão num jogo que ultrapassa os comuns e no momento de aflição recorre ao acaso. E vira-se para Faye Dunaway, a fotógrafa que escolhe os meses incaracterizáveis de Novembro para mesmo assim esvaziar a paisagem, deixando só os aros de suporte de todas as coisas. Redford, ao vê-las e ao elogiá-las, vê-a a ela e elogia o seu recôndito.

Mas o tempo e o cerco ao mundo continua a girar e Redford sai para a luta. Volta a casa e redescobre que só nesse ser que tem algo magoado nas expressões básicas pode confiar. Tinha-a prendido, mas ela solta diz-lhe que não tem de a amarrar mais à força. Depois brota o inadjectivável e o patético da paixão, aqui reforçado pelo insólito do tal acaso - falam das coisas que só se mostram aos muito íntimos, do que só se deve contar a um, do inseparável. E a noite do amor chega tão de rompante como o encontro deles, misturando-se os corpos com os segredos, o desejo com a libertação, o fixo com o movente, o fugaz com o pleno, de onde a morte fica parte relativa.

E aquilo que poderia ser um beco da humanidade e do poder feio como o grão surgido nas emulsões que quer espreitar torna-se belo por esse sol que se decidiu a brilhar no buraco longínquo. Vai entrar no filme obrigatoriamente o ritmo da acção e o laboratório do argumento, a calibragem no gume da faca e o jogo de espelhos e reflexos; mas no centro dos massacres e dos desesperos globais, aquelas duas criaturas escondidas vão brilhar em resgate – a despedida na estação de comboios típica das despedidas é a possibilidade de salvação global pela entrega sem freios. O desenlace garante da imprevisibilidade absoluta, estacando o filme no realismo necessário, mas a luz de Frank Borzage já tinha eliminado pelo menos uma grande porção de sujidade.

“Infortunadamente, a culpa não é nossa, mas sim da nossa fragilidade, / porque assim somos, tal como fomos criados!” escreveu Shakespeare em “A Duodécima noite”. A propósito de um filme de Sydney Pollack que nem é dos mais representativos do seu tempo só expõe da irresponsabilidade do par central que passa todo o tempo a velar-se de tudo e de quase todos, na treva presente. Irresponsabilidade, aquilo que Redford também desejou para o suposto mecanismo perfeito da Nossa organização. E que ele pelo medo mas sobretudo no ápice do sentimento decidiu enfrentar. “Three Days of the Condor” é um filme muito belo, pois no ápice do degredo ainda se ousa o amor, trocando-se o suicidário pelo sublime singelo.

* Ver, se ainda possível, na versão não-remasterizada, essa original onde nada foi limpo para efeitos datados. Os escuros sem medo de se escurecerem; o grão pulsante, fervente, esventrado ou sossegado, nunca amansado; as sombras como os brilhos e as almas, tacteantes.