terça-feira, 30 de outubro de 2018



...All the Marbles, Robert Aldrich, 1981


“...All the Marbles” calhou ser o último filme de Robert Aldrich, nele nada existe de testamentário ou de balanço, antes uma sede de avançar e conjugar os supostos opostos mais diversos. Produzido pelo seu filho William Aldrich, tendo como realizadora de segunda unidade a filha Adell Aldrich e contando ainda no papel de Transportation Department com mais uma sua cria, Kelly Aldrich, o homem que se queimou nos gélidos noirs atómicos e se estilhaçou com o chamado western moderno, revertendo toda a moralidade e os farrapos das convenções em “The Dirty Dozen”, não se contentou em abandonar o seu oficio de forma consensual ou exemplar, antes quis continuar a jogar nos seus próprios termos. Termos que são o risco permanente, o ângulo inesperado, a orquestração selvática, o que não dá para contar e que pertence ao campo dos espelhos do cinema.

A história e os personagens são comoventes e complexos: o manager de luta livre feminina interpretado por Peter Falk é lindíssimo e brutamontes, pois percebeu que só assim é capaz de levar as suas duas beldades da terra do bronze a concretizarem o seu sonho e a safarem-se na lixeira da corrupção e das aparências do amaldiçoado ouro. E é neste ménage a trois insólito que eles se amam, odeiam, são pais, filhas, irmãos, putas, filho, chulos, puros, humanos; ménage a trois em alta rotação américa afora que é o fito fundamental da humanidade sempre em marcha de Aldrich: das fábricas, dos fumos e do cinzentismo do Ohio até ao lago radioso de Chicago, da Califórnia inicial que não brilha até às luzes circenses dos casinos do Nevada, a câmara de filmar vai-se derretendo e zarpando pelo ferro fundido ou admirando-se em frente às águas cintilantes que acariciam e redimem o betão; vai ainda olhar estupefacta para os trabalhadores da the other half para logo depois não perceber os engravatados que nos escritórios cimeiros e lustrosos orquestram os nossos serões; câmara que se consome para tornar fulgurante o que a maior parte dos filmes despacham como rotina, um carro e pessoas nas suas conversas normais e passionais, e é aí que Aldrich confia no rosto e na tensão de Falk para fazer escutar às meninas daquele filme e às meninas e meninos do mundo todo um tenor Italiano ou outras constelações anacrónicas a embalar o que seriam os planos de passagem da narrativa principal, o resíduo a falar com a alta arte nos meios das confissões graves.
 
Por sobre lutas na lama e demais monstruosidades da américa funda e das tradições de feiras e de profetas do apocalipse à espreita, ainda se eleva Clifford Odets e Will Rogers à categoria e ao patamar de sábios e dançarinos, voando “...All the Marbles” para o tempo do Deuteronómio bíblico que afirma que «ninguém tem o direito de se desinteressar» e aterrando nas ruas que Nasty Nas já habitava para logo vociferar a profecia «I never sleep, 'cause sleep is the cousin of death» contra todas as pragas da inércia e da indústria do medo. A américa de John Steinbeck e das suas viagens com Charley, as folhas de Whitman, os poetas puros do infortúnio de fim de século, escravos e príncipes. Aldrich a patinar na formação da crenças mais antigas do que o antigo e na sujidade nova das rimas e do basket num equilíbrio que se vai produzindo no mais vale quebrar do que torcer até ao plano final, uma cruz ou um simples abraço – a beleza de quem se sujou todo no caminho espinhoso mas permaneceu limpo no essencial. “...All the Marbles”, na sua fúria desengonçada pelos pontos mortos da dramaturgia, é esse encontro de almas das virtudes para sempre intactas em qualquer tipo de terreno, para lá do instante e da altercação. As regras dos bravos.

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

amanhã no LUCKY STAR - Cineclube de Braga


 
 
Amanhã, quinta-feira, chega ao fim o ciclo de cinema que o Lucky Star levou a cabo em parceria com os Encontros da Imagem de Braga, sob o belíssimo tema, passe a redundância, “O belo e a consolação”.

E nada melhor para o fechar do que um filme que abre para todos os tempos e para todos os espaços do belo e da consolação, uma beleza abundante e cava, uma consolação pedregosa e límpida, transpondo com a sua poesia silenciosa e selvagem as fronteiras do conhecido e do esperado de tais conceitos bem como as margens do próprio cinema.

Helénico e apátrida, iluminado pela jorrante seiva da fonte primordial ou pela catadura da noite das noites, galopando as agruras do meio do caminho em precisos rituais perdidos e brilhando no Cântico dos Cânticos, trata-se do melhor filme que vi este ano, desses que se vão decifrando lentamente a cada nova visão até se ficar cego, desenterrando incontáveis chaves e tocando nos fogachos do discreto sublime.

Prodígio da manufactura e passo lapidar da assunção do cineasta-sapateiro-remendeiro, reinvenção do filme na primeira pessoa sonhado por românticos visionários como François Truffaut e Jean Eustache, independente das leis artísticas em voga e dependente dos afectos e da amizade, o realizador Mário Fernandes estará em Braga para conversar connosco sobre tudo isto e mais além, o que é por si só um acontecimento.

Aproveito ainda para agradecer ao director dos Encontros da Imagem, o empenhado e sensível Carlos Fontes, que espero continue por muitos anos nestas lides.

O Cinema e Braga vivem.