terça-feira, 30 de setembro de 2008

"O papel da Cinemateca não é ver, é rever".

"Passar um ano com um filme. Podes mostrar 'O Grande Ditador' numa sexta e passá-lo duas semanas depois. Acho que há um jovem de Lisboa que é capaz de ir às várias. Que é capaz de pensar: Vi este filme mas não sei se vi este filme. Eu era assim. Ver um filme seriamente é vê-lo muitas vezes e só nas cinematecas é que isso se pode fazer."

Pedro Costa
"No era raro que viese la misma película cinco o seis veces en el mismo mes sin ser capaz luego de contar correctamente el argumento, porque, en un instante preciso, una música que subía de volumen, una persecución en la noche, el llanto de una actriz, me emborrachaban, me arrebataban y me arrastraban más allá de la película."

François Truffaut
Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso insecto. Estava deitado de costas, umas costas tão duras como uma carapaça, e, ao levantar um pouco a cabeça, viu o seu ventre acastanhado, inchado e arredondado em anéis rígidos, sobre o qual o cobertor, quase a escorregar, dificilmente se mantinha. As suas numerosas patas, lamentavelmente raquíticas, comparadas com a sua corpulência, remexiam-se desesperadamente diante dos seus olhos.
«O que me aconteceu?», pensou. (…)


F.K
Joel e Ethan, é qualquer coisa não é? já não se fabrica pois não? viram-no em cinema ou na televisão do vosso bairro?
"We need more people who don't give a shit because there are too many who do".

Jim Jarmusch

....

mais e cada vez mais é a ideia/atitude que me interessa.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

I Walked with a Zombie

"Casa de Lava", Pedro Costa

"Os Mutantes", Teresa Vilaverde

domingo, 28 de setembro de 2008

“This CGI bullshit is the death knell of cinema. If I'd wanted all that computer game bullshit, I'd have stuck my dick in a Nintendo.”

Quentin Tarantino

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Amanhã, dia 27, na Cinemateca Portuguesa

"Rocky Balboa", Sylvester Stallone

Estados Unidos, 2006 - 102 min.

Escrito, realizado e interpretado por Sylvester Stallone, ROCKY BALBOA é o sexto filme da série Rocky, um reencontro com a mítica personagem do ex-campeão do mundo de pesados, agora reformado, viúvo e a viver pacatamente, no bairro em que cresceu, à frente de um restaurante italiano, onde a sua própria personagem e os louros do passado são o chamariz da clientela. Confrontado com o vazio do seu presente e com a má relação que o filho adulto tem com o seu passado, Rocky decide combater uma última vez. Com secura, sem espalhafato, o filme segue a história desse último ”round” com uma desconcertante gravidade. Primeira exibição na Cinemateca.



+ "Una Donna Libera", Vittorio Cottafavi

Itália/França, 1954 - 93 min.

+ "El Angel Exterminador", Luis Buñuel

México, 1962 - 95 min.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Acabo de ver o “Serpico”, gosto mesmo daquilo. Lumet é um cineasta lúcido, adulto, com um ponto de vista incorruptível e um trabalho sobre as formas duríssimo, visceral, Languiano e sem concepções. Desde o primeiro até ao último plano nunca se trai, não escorrega, não há uma única palmadinha nas costas nem um falso encantamento. Existe a tal consciência agudíssima dos maus e do mal, mas também – apesar do desencanto e do desespero – a luta dos marginais.
Uma voz, um grito, um saber imenso das potencialidades do cinema e dos meios, e zero, absolutamente zero, em maniqueísmo. Spike Lee é um filho de Lumet.

E não, ainda não vi "Before the Devil Knows You're Dead", não consigo ainda. Preciso de ver e rever o que está para trás.
Claro que ainda tenho toda uma montanha para desbravar, com prazer. Mas com “O Bandido da Luz Vermelha” já dá para sentir toda uma diferença e uma chama que os Meirelles e os Salles não chegam nem perto, em qualquer dos sentidos, no cinema brasileiro de hoje em dia.
Só para dar uma ideia: o fogo que anima as formas e aglutina (?) os blocos do filme de Rogério Sganzerla é o mesmo que animava o Godard de “À bout de soufflé”, que por sua vez é da mesma qualidade do que incendiava a película de outro grande cineasta, anos antes…

Poética do fogo, fortíssimo e inclassificável golpe de politica estética/narrativa, infinitos movimentos dialécticos entre o mundo das mascaras e das aparências e o sangue de liberdade e da frescura. “O Bandido da Luz Vermelha” é uma peça essencial da iconoclastia nascente de apreensões e divagações apaixonadas, e de brutais reformulações, que urge descobrimento.
É o filme mais libertário do mundo, logo de um romantismo e de um lirismo (ala Fuller) desenfreado.
Filme de glória e de reconhecimento da câmara de filmar como elemento propulsivo e original de apreensão da matéria, de reenvio a matrizes e de filiações subterrâneas.
Logo – western, noir, policial, etc. E todo o contrário / nem é descontrutivismo / sim todo o oposto.


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Manifesto de Rogério Sganzerla

Cinema Fora da Lei

1 – Meu filme é um far-west sobre o III Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros. Fiz um filme-soma; um far-west mas também musical, documentário, policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Do documentário, a sinceridade (Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennett, Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos (Mann).

2 – O Bandido da Luz Vermelha persegue, ele, a polícia enquanto os tiras fazem reflexões metafísicas, meditando sobre a solidão e a incomunicabilidade. Quando um personagem não pode fazer nada, ele avacalha.

3 – Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime.

4 – Jean-Luc Godadrd me ensinou a filmar tudo pela metade do preço.

5 – Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base de planos gerais.

6 – Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional através da montagem.

7 – Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins me apontou a poesia furiosa dos atores
do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente banais. Mojica e o cinema japonês me ensinaram a saber ser livre e – ao mesmo tempo – acadêmico.

8 – O solitário Murnau me ensinou a amar o plano fixo acima de todos os travellings.

9 – É preciso descobrir o segredo do cinema de Luís poeta e agitador Buñuel, anjo exterminador.

10 – Nunca se esquecendo de Hitchcock, Eisenstein e Nicholas Ray.

11 – Porque o que eu queira mesmo era fazer um filme mágico e cafajeste cujos personagens
fossem sublimes e boçais, onde a estupidez – acima de tudo – revelasse as leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido. Quis fazer um painel sobre a sociedade delirante, ameaçada por um criminoso solitário. Quis dar esse salto porque entendi que tinha que filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais – aliás como 80% do cinema brasileiro; desde a estupidez trágica do Corisco à bobagem de Boca de Ouro, passando por Zé do Caixão e pelos párias de Barravento.

12 – Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha como poderia estar contando os milagres de São João Batista, a juventude de Marx ou as aventuras de Chateaubriand. É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo.

13 – Tive de fazer cinema fora da lei aqui em São Paulo porque quis dar um esforço total em direção ao filme brasileiro liberador, revolucionário também nas panorâmicas, na câmara fixa e nos cortes secos. O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse País tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento.

Rogério Sganzerla

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

"Eu podia gostar muito de um filme, mas se Rivette dissesse "é uma porcaria", eu dizia como ele. Havia um lado estalinista nestas relações. Era como se Rivette detivesse a verdade cinematográfica, diferente da dos outros."

Jean-Luc Godard

Douglas Sirk em total domínio de um mundo. "A Time to Love and a Time to Die", 1958.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

É mesmo, “Kairo”, de Kiyoshi Kurosawa, só pode mesmo ser um dos grandes filmes desta década, e a redefinição total de algo aproximativo ao cinema de terror. Um filme terrorífico, verdadeiramente. Taciturno, palpável, negríssimo. Que atinge o insuportável pelos seguintes aspectos:

- O peso do ar. Já se sentia bastante em "Kyua", mas é neste filme que o peso do ar é bem mais carregado, irrespirável e pesado do que nos filmes a que estamos habituados, sejam de terror ou não. As ambiências e as temperaturas escuríssimas, comprimidas, doentias. É por aqui que o filme no agarra e nos puxa, literalmente, para um mundo bem perto de uma ideia de apocalipse. Finalmente formas absolutamente propulsoras e significantes, neste sentido é mesmo o antídoto de todos os subprodutos que tem evadido as salas – americanos ou igualmente japoneses.
E para que a compactação do bloco e a claustrofobia sejam intoleráveis é tão fundamental o trabalho sobre o escuro, que é genuinamente lúgubre e opaco – sem qualquer necessidade de utilização abusiva e gratuita dos famosos filtros que sujam a imagem à superfície mas que não lhe dão nada de organicidade e profundidade – nas suas camadas granulosas e labirínticas proporcionadas pela subexposição e pelos degradês não lineares mas sim assustadoramente disseminados e aleatórios. Tão importante como a cerração pelo enquadramento. E se foi realmente utilizado o 1.85 : 1, Kiyoshi esmerou-se no achamento da lente certa e da angulação definidora – da nebulosidade deste mundo opressivo e nos limites, num fechamento de onde já ninguém saí, onde o único remédio é a força quimérica da fuga para a frente.

- A morte no plano. Que vamos ter integralmente pelo filme, mas perfeitamente sentida em dois dos mais fabulosos planos que eu já vi. Que são as duas cenas de suicídio explicito. Na primeira, desde o começo do plano até ao seu desfecho, porque verdadeiramente é só um, sentimos a tensão do fim, da destruição, da desistência. Do posicionamento dos corpos ao terrível ar do tempo, passando pela corda que o protagonista serenamente pega, é impossível não adivinhar a acção e ao mesmo tempo os nervos não serem arrebentados pelo suspense.
A segunda é ainda mais temível. O japonês faz seguir normalmente uma personagem assustada pelas ruas reconhecíveis de uma Tóquio em ebulição, onde o céu e a terra se tocam e se queimam, para suster o plano, frontalizá-lo, e traçar linhas de força entre o que está vivo e o que está prestes a estar morto. Linhas de morte, melhor dizendo, porque a construção é de tal modo alinhada, que tendo a personagem que vínhamos seguindo em primeiro plano e engrandecida, só temos olhos para a que está nos altos e prestes a descer ao mais letal dos abismos. É qualquer coisa.

E depois volta a ser fascinante o modo como Kiyoshi filma e aguenta tudo no menor número de planos, num plano, num prodígio de encenação e de consciência da duração certa – fascinante porque anacrónico. Terrível porque infinitamente minimalista, sem as habituais saliências, gorduras e barulhos.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

"François, apesar do meu entusiasmo da época, nunca achei que a Nouvelle Vague tenha significado mais do que o desejo de ficar com o lugar de outrem. Agora, graças a si, uma obra legitima profundamente essa mudança."

Jean Eustache

domingo, 21 de setembro de 2008

O chamado filme do caralho – só para fazer jus a um dos filmes com maior numero de caralhadas por imagem a que eu já presenciei.
A sátira é violenta e dura, inteligente e perfeitamente lúcida, apesar do já enunciado e de todos os signos e re-emulações propostas e em espelho. Daí que muita boa gente e muito bom critico estar a pensar que se trata de mais uma treta, quando o chamado scum está precisamente nos académicos, indulgentes e inúteis Atonement´s ou Black Hawk Down´s deste nosso planeta…

Se eu disser que Ben Stiller se excedeu…é porque é mesmo o que eu penso.

Cruise é Cruise. (Mann, M. e De Palma sabem bem quem ele é…)
Jean-Pierre Léaud, Kika Markham e Stacey Tendeter em "Les Deux anglaises et le continent" de François Truffaut. Sangue, suor e vísceras, naquela obra de arte maior do que obra de arte, que é um dos mais emocionais, dessaturados, doentios e singulares feitos de toda a história das luzes e dos corpos.
O altivo e confiante William Holden a preparar-se para dar às de vila-diogo no fabuloso "Stalag 17" de Billy Wilder, um dos mais sujos e peganhentos filmes de sempre.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Impossível fazer a elipse para “Chungking Express” quando estamos a pensar em Wong Kar Wai. Já para nem referir os que apenas começam a mencionar desde “In the Mood for Love”.
Já nem falo da sua primeira obra, do ano de 1988, mas “A Fei zheng chuan “(“Days of Being Wild”, no ocidente), é já, talvez, o ponto alto da carreira do cineasta de Shanghai.
É certo que os seus filmes sempre andaram a várias velocidades, a aceleração sempre conviveu com a lentidão e vice-versa, sempre existiu como que uma relação temperamental e impulsiva entre o sangue que corre, a latência e uma espécie de vigília. Mesmo que peças como esta, ou como “Fallen Angels”, pareçam correr a uma só celeridade.
É um cinema tão efusivo e por vezes tão impressionante que dá perfeitamente para divagar e imaginar fórmulas. Seria algo como a intensidade, a gravidade e os abismos absolutos do cinema de François Truffaut, com o niilismo, o desprendimento, a liberdade e mesmo o desespero (e aqui também Truffaut, obviamente) de Antonioni.

"Days of Being Wild" é a história de um jovem violento que vive com uma mãe adoptiva, na Hong Kong dos anos 60, que toda a vida perguntou pela verdadeira mãe, e que ao mesmo tempo acumula mulher atrás de mulher, num delírio metafórico e meio inconsciente, que lhe permite deslizar pela vida e pelos afectos e relações, sem o mínimo de comprometimento.
A maneira como Kar Wai trata a coisa, ou seja, a procura de identidade e de lugar, da raiz e do verdadeiro afecto, de uma razão e de um objectivo, das peças a se acharem e a se juntarem, é fulgurante.
Desmultiplica-se em elipses pela sequência e pelos lugares, raccords traçados por corpos e por ambiências, fragmentação obliqua do desenrolar das acções e dos gestos, entre os tempos, etc…Filme de câmara, cerradíssimo e recortado, daí uma ofegante sensação de falta de ar que encontra o seus reverso nos momentos de pura explosão e dilatação espacial.

Se a sensualidade e o erotismo poderão ser um centro primordial e fortíssimo no seu cinema, o que agudiza o empreendimento até aos limites e aumenta a vertigem, é a coabitação destes elementos, e logo dos corpos e dos lugares em questão, com uma languidez e um romantismo terminal, temperaturas e desejos a tocar o funesto, enfim, um doentio desfilar de desejos e pulsões.

Daí, obviamente, o feiticismo, com uma câmara que se cola literalmente à carne, aos décores e aos objectos, para deles sugar todas as vibrações e para revelar – daqui nasce a humidade, o suor e o factor escorregadio das peles e das texturas. Transpirações e olfactos que emergem constantemente à superfície e que se tornam como que saliências na imagem.

Para mim é por aqui que este cinema se salva do objecto e da construção «lego» e se torna essencial.

Não me interessa nada, pelo menos neste sentido, das lutas entre Peckinpah e os produtores. "Major Dundee" é um filme impecável. É tão vibrante, e cheio de movimentos e crenças opostas, como os primeiros Scorseses. É um prodígio na maneira como capta a paisagem e como vê sempre as personagens esbatidas contra o céu. Bastante materialista e sólido neste sentido. Fordiano também.
Mas depois, nas cenas de lutas ou em certas tensões, Sam já não foge à sua natureza, a aí o filme explode, estilhaça-se, muda o tom.
Ou seja: já se sente o tom ultra violento e iconoclasta que vai chegar, em filmes posteriores, mas existe uma inserção e reconhecimento de um legado cinematográfico e americano que o cineasta respeita perfeitamente. E é nesta atitude que surgem momentos singulares e de pura ternura, e tornam Peckinpah fundamental na passagem do clássico para o moderno.

E está cheio de personagens tocantes e complexas, cheia de gente que podemos reconhecer. Já agora, é esta a razão porque prefiro Sam a Leone, por exemplo. Aqui há realmente um coração, lirismo, e não só ironia. E os gestos vão directos ao coração.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

John Milius, Joe Dante, Monte Hellman, Michael Cimino…e agora até John Carpenter. Acabo de ver "Targets", o inacreditável filme de Peter Bogdanovich, e a estupefacção aumenta.
Como é que CINEASTAS destes estão com tais dificuldades para filmar, e os Scott´s deste mundo filmam no mínimo uma vez por ano?
De "Targets" não sei bem o que dizer, acho que há tudo para dizer e por isso mais vale estar calado…mas se algo tivesse que referir diria: “CINEMA, 90 minutos exactos de puro cinema, que puta de filme…”.
E poderia acrescentar frases soltas: virtuosismo inultrapassável, todas as especificidades ao acelerador, som/imagem em permanente relação amorosa e dialéctica, lição de história (e de amor por ela), candura, enfim, coisas destas… Quem quiser acrescentar algo...
Exactamente Sr. Bénard, a mais elaborada mise-en-scène da obra de Lubitsch. Pode-se realmente já ter visto muitas, como esta nunca se viu.
Só alguém em estado de graça, com a matéria ideal na palma da mão e no máximo do seu talento conseguiria tamanha empreitada.
È verdade que Tesson também tem razão, na aproximação deste filme ao coração de Capra, mas se é Lubitsch heart (e é muito) é porque primeiramente houve Lubitsch toutch.
E no fundo é isto: todos os versos e reversos das personagens (e entre elas), bem como dos seus sentimentos. Os que se vêem e os que não se vêem (pessoas e relações), a fábula moral (quem vê caras ou corpos não vê corações), os oportunistas e as oportunidades e a eterna luta pelo lugar mais cimeiro da hierarquia. A história de amor, evidentemente.

Onde tudo se passa? Numa pequena loja, praticamente só nela, e quando de lá saímos vamos para espaços idênticos – o restaurante, o quarto, mesmo a rua. Sempre espaços bastante teatrais, espécies de palcos na verdadeira acepção da palavra, que são tratados e varridos, genialmente, pela câmara de Lubitsch. Mise-en-scène – pôr todo este mundo, todo este microcosmos, em cena.

Muitas portas se abrem, muitas se fecham e muitas vezes elas são atravessadas. Se Lubitsch também foi conhecido por «cineasta das portas», este filme é a justificação. São elas que tudo ligam e tudo separam, que tapam e destapam, que abrem e fecham os caminhos. São elas que permitem esconderijos e revelações.
Se Lubitsch eleva algo tão aparentemente banal como as portas a elemento primordial e metafórico da realização e de uma obra, é só mais uma prova do seu incomensurável génio.

The Shop Around the Corner

Lubitsch heart...

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Simplifico assim: bastaria este "Leave Her To Heaven" para colocar John M. Stahl no cimo do cinema americano. Clássico e por isso mesmo, moderno.
Algumas razões:

É um dos cúmulos estéticos dos anos 40 do cinema americano, e logo do cinema tout court. Na década cimeira de Welles, de Ford, de Hawks, Hitchcock ou Mankiewicz (os mais portentosamente estetas), Stahl nunca é menor do que qualquer um deles. Obra pintada em tons calorosos – os vermelhos, amarelos e o aquecimentos das cores opostas – na direcção do melodrama a la Sirk, mas nunca nada indo no sentido do ornamentalismo, do enfeite ou do puro barroquismo visual tão em voga em muitos produtos, antes uma portentosa orgânica absolutamente propulsora e mediadora da gravitas da narrativa, dos acontecimentos, das ambiências.
Leon Shamroy mais perto de uma evocação cromática dos tons de Winton C. Hoch, por exemplo, do que de Russell Metty.

E se é um melodrama, permito-me dizer que é muito mais do que isso. Ou seja, ultrapassa os seus arquétipos para se instalar do lado da mais do que tragédia, algo como Shakespeare em espectro, mas nunca, nunca, programa ou gesto mecânico. É, neste sentido, o filme mais sereno e mais horrendo que já vi, tudo isto num mesmo tempo. Começa numa serenidade angelical e de veludo, com o encontro do par central no comboio, progride para o espaço e o tempo onde o terceiro vértice da tragédia surgirá, resvalando depois para os espaços e tempos onde os actos de pura monstruosidade da personagem de Jean tierney se iniciarão. Espaço dado aos espaços, tempo dado aos tempos – uma das artes mais esquecidas de hoje em dia. (e que nomes como Joe wright ou Marc forster, entre muitos, não dominam minimamente)
E se coloco na mesma linha, serenidade e tragédia, é porque nunca existe um óbvio empolamento de nada, jamais um dos aspectos se sobrepõe ou esvazia o outro. Tudo isto é dado com saber de mestre, com um saber que só tem paralelo nas tais crueldades.
E é neste secretismo irrespirável que o filme estoura com os nervos e põe incrédulo quem o assiste. O que parecia um conto de uma mulher que amava demais é assim confirmado por absoluta e desmesurada hipérbole que já não é hipérbole, que o deixa de ser a todo o momento.
Quase filme de câmara, apesar da amplitude dos espaços, pormenor significante, sobretudo quando se nota que toda a dilatação habitual a esse tipo de tratamento paisagístico é feito ao para dentro – a matéria à escala verdadeira. O que temos sempre dentro do quadro é então o perfeito reconhecimento de um mundo e das suas ambiências, honestamente e conscienciosamente captado, e o peso total distribuido sobre a lisura da imagem, na planidade.

Depois é uma temível e tortuosa espécie de falsa ambivalência moral sobre as acções da personagem principal – as matanças e o suicídio final – em contraposição com as escolhas, os desinteresses e desatenções dos que a rodeiam, uma estranhíssima reversão de espelhos. O amor todo do mundo que não é correspondido à mínima escala.
E claro, Tierney, novamente, numa das mais ricas, densas e complexas personagens algumas vez criadas para qualquer arte.
Cheia de zonas escuras, de nuances, toda ela tão dialéctica como o próprio mundo. Aquela pulsão escondida que explode amiúde, os impulsos sónicos como modo de fazer progredir e logo erradicar, tudo o que deixa prever e o que não deixa, as suas mudanças rítmicas e psicológicas, acelerações e desacelerações, autêntico rolo compressor domada e animado por algo que lhe surge como natural.

Ponto alto da história dos filmes, evidentemente.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Estive a rever "L`Argent" de Robert Bresson. Já não sabia que era isto, o filme mais cruel e fatalista de todo o cinema.
Toda e qualquer esperança – ou somente um resquício invisível – abolida, todo o acaso de mão dada com o niilismo, toda uma negríssima e apocalíptica espiral de eventos engrenados pelo cume significante do poder da sociedade. Tudo isto é sobre a natureza humana, num assombroso e tão secreto paroxismo e naquela surdina e depuração tão aguda e lapidada que tudo nos é dado a ver desmedidamente mais ampliado e atroz.
Não há assim obra mais terrivelmente elíptica e horrífica, pedaços de existências e acontecimentos que fecham com um banho sanguinário sobre o qual nada ou quase nada nos é dado a entrever, e onde um animal aflitamente a tudo presencia e se sente impotente.
Tanto mais grave que o espírito parece realmente já estar do outro lado, daí a tal sensação dos corpos em deslize, dos percursos leves e como que a um passo acima do nível terreno.
É verdade que à data aterrorizou e foi difícil. Hoje percebe-se ainda melhor. O que na altura foi pôr nos píncaros tudo o que estava para trás na sua obra, constitui tanto o mais inflexível olhar sobre o dinheiro e o seu simbolismo, como um possível ponto de chegada da frieza do novo mundo e das novas relações. Da implacabilidade de tudo isto.
Neste mundo e neste tempo as palavras e as acções já deram a volta completa e já voltaram a recuar tudo.
Por isso é o filme mais frio, por isso é também o mais pavoroso e escaldante.
«Já se reprovava às Dames não se parecerem com aquilo que se fazia, já se reprovava e Bresson não filmar os mesmos momentos duma história, não filmar da mesma maneira.
Não era grave, nada disso era grave, nada disso impediu Bresson de prosseguir o seu bizarro caminho. Len Anges du péché era, evidentemente, o melhor filme da Ocupação, Fugiu um condenado à morte foi o melhor filme da década seguinte; O Carteirista, Jeanne d`Arc, Peregrinação exemplar são títulos-charneira numa obra que, de Journal d`un cure de campagne a Lancelot du Lac, sempre me comoveu pela sua musicalidade.
Duas belas raparigas e dois belos rapazes animam Le diable probablement…, insisto na beleza deles, pois ela é em parte o assunto do filme: a beleza falhada, a juventude falhada. Esses quatro belos rostos, Bresson joga com eles e distribui-os como as figuras dum jogo de cartas, organizando-lhes as variações. Por certo, efectivamente, Bresson começa muitas vezes as cenas filmando os puxadores das portas e os cintos, decapitando as pessoas, mas não é para economizar, para retardar, para fazer esperar, para preservar, para fazer desejar e finalmente para mostrar o rosto no momento em que ele se torna importante, no momento em que esse belo rosto, ínsito ainda sobre a beleza, em que esse belo rosto inteligente fala com doçura, gravidade, como se a pessoa falasse consigo própria?
Muito claramente, trata-se para Bresson, como para Monsieur teste, de matar a marioneta e demonstrar a pessoa no seu melhor, no seu momento mais verdadeiro de emoção e de expressão contidas.
Falei dos rostos e das vozes. A rapariga chamada Alberte fez-me pensar na Casarès de Dames. Poder-se-ia, sempre com referência ao cinema musical, descrever a maneira de andar dos quatro belos rapazes do filme. Com calçado de borracha, plenamente à vontade, eles escorregam nas ruas e nas escadas como gatos de apartamento. Os gestos deles não são bruscos são de uma doçura que imita o retardador e parece síncrona com o varrimento das imagens de que disse que são batidas como um jogo de cartas e distribuídas com parcimónia.
Num filme de Bresson, trata-se menos de mostrar que de esconder. A ecologia, a igreja moderna, a droga, a psiquiatria, o suicídio? Não, o assunto de Diable probablement…não é nenhum desses. O verdadeiro assunto é a inteligência, a gravidade e a beleza dos adolescentes de hoje, e especialmente de quatro de entre eles dos quais se poderia dizer como Cocteau que “o ar que respiram é mais leve que o ar”.
Não encontrareis essa nobreza em muitos filmes. O cinema é uma arte, mas nem todos os cineastas são artistas, Bresson sim e a sua nova obra-prima, Le Diable probablement…é um filme voluptuoso.»

Truffaut, 1977, tradução Carlos Melo ferreira.

domingo, 14 de setembro de 2008

E o que um cineasta francês como Guiraudie prova também cabalmente, é que os ditos cinéfilos de hoje em dia, ou seja, os leitores da premiere e os estudantes de cinema embasbacados pela N.V cristalizada (e isto é o máximo), nada mais procuram saber, nada mais têm interesse em descobrir, do que esses produtos – a maior parte, ou aberrações ou objectos inertes – que aquela distribuidora que em tempos estreou Straub/Huillet nas mesmas salas hoje lá espeta.

Há excepções em ambas as partes? Claro, as pouquíssimas que confirmam a regra.

sábado, 13 de setembro de 2008

Alain Guiraudie, o outro para juntar a Eugène Green, e assim esqueçer os meninos que se divertem com as nouvelles vagues...
Entrevistador: Dizem que você é um cineasta marginal?

Straub: Quem?

Entrevistador: Uma certa imprensa, certas pessoas…

Straub: São os que têm interesse em suprimir-nos, ou seja os chulos da indústria e, ia dizer, as putas que trabalham para eles, mas isto não seria gentil para com as putas. Não há razão alguma para que se cole uma estrela amarela a certos cineastas. Muito bem, nós temos uma estrela amarela. Mas porquê? É mais interessante ver o porque. Isto significa que todos os jornalistas são umas putas e todos os produtores uns chulos. Bom, quase todos! (…) O que é que faz com que um filme seja marginal? O facto de ser deixado à margem! A partir de um momento em que um filme entra no circuito, deixa de ser marginal. Se tiver o menor sucesso, não se fala mais em marginalidade! Passa-se a ter a bênção da família! Há etiquetas racistas que são muito mais polidas.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008


SEXO...
Espantosa a maneira como Kiyoshi Kurosawa aguenta os planos, instaura os silêncios e faz brotar os ruídos. Silêncios tão estridentes e enervantes como os ruídos. "Cure" é de 1997, mas não se iludam, é um objecto completamente artesanal, algo que só foi possível depois do cinematógrafo de Bresson.

Sim, é segunda metade dos anos 90, sim, é algo à beira do subgénero dos serial killers, mas, e uma grande mas, não é pós-nada. Neste mundo das trevas e do fantástico estamos a presenciar algo como numa primeira vez. Toda a impressionante violência e crueza dos grafismos estão lá de modo impassível, em medida igual à justeza do tom, do olhar, da não extrapolação/empolamento.

E serve também para constatar que Eli Roth é um menino do coro com liberdade e dinheiro.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Acho óbvio que um dos grandes problemas do cinema actual, ou uma das suas grandes falsas questões, é a necessidade quase orgásmica pela parte do público, bem como de muita critica, em esperar sempre a novidade, o imprevisto, os climax´s mirabolantes e todo o tipo de piruetas narrativas.

Veja-se este texto de Jorge Mourinha. Ele atribui grande parte da falta de qualidade do último filme de Woddy Allen a algo facilmente adivinhável: «para lá do final fatalista que se adivinha à distância desde as primeiras imagens (será da música de Philip Glass?), tudo parece um ponto que se marca, uma lista de tarefas que se vai cumprindo mecanicamente, sem surpresas nem convicção, como quem diz "para quem é, bacalhau basta".»

Final que se adivinha à distância, marcação do ponto, lista de tarefas, etc…factores/expectativas que, perversamente, diagnosticam tudo o que estará errado na maneira como se analisam hoje em dia os filmes, isto para não falar nos critérios de produção da Hollywood actual, por exemplo.

Pensemos num fundamental filme esquecido – "Whirlpool", de 1949. È obvio que Otto Preminger, à entrada para os anos 50, já estava bastante à frente do seu tempo, e tudo o que interessa hoje (já na altura?) ao público e a certos analistas já não lhe interessava, de todo.

È óbvio que aquele filme só poderia acabar assim, só poderia ter aquele clímax, naquela casa e com aquelas situações. Não é preciso muita inteligência para o descobri uma hora antes.
Ou seja: não é isso que interessa a Preminger, como não é isso que interessa, hoje em dia, por exemplo, a Michaell Mann. (exemplo nada inocente, lembremo-nos como os detractores de Mann tem como bandeira as supostas fragilidades narrativas dos seus filmes).

A arte de Preminger é outra, como a de Mann é obviamente outra. De resto, o mesmo valerá, em certa medida, para Allen.

Qual é a arte então? Acho que essas imagens, ali em cima, Gene Tierney a levar o seu carro pelo negro da noite , poderão fornecer pistas. Ou então vão a "Miami Vice" e aos 15 minutos finais.

O porquê da total ignorância ao que não surge como evidente? (ou o que é ainda mais evidente…)

Foi neste filme que Marty – para os amigos – Martin Scorsese, para mim, mandou mais uma vez os académicos e as “virgens inocentes” às urtigas e me fez ver que Igor Stravinsky podia assim conviver com os The Clash, que Sinatra podia assim rimar com os UB40 e, principalmente, que à anarquia e à destruição se pode seguir a harmonia, que para a segunda poder emergir na plenitude é necessária a libertação e a catarse…

Foi à quarta revisão que me convenci definitivamente, "Bringing Out the Dead" é a obra mais punk e mais animal de Martin Scorsese, o que significa que é também a mais clássica e angelical.
Tão angelical como a luz divina que vai banhando alguns seres e lugares, mas cima de tudo, que vai banhando Frank Pierce (Nicolas Cage), o homem que só quer salvar uma pessoa, o homem que só quer partir umas coisas e depois descansar…

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

don't try to be Don Siegel, aconselhou sabiamente Brian De Palma. Imitar o quê? se o que constatamos a todo o momento é o máximo de não estilo (sim, contra a mentira do estilo), de secura e abolição de qualquer efeito de cinema...

Uma tortura, que é a palavra que melhor define a obra de Donald Siegel.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Quanto mais me lembro de Bette Davis em "Beyond the Forest" mais convencido fico que mulheres desta linhagem já não devem existir muitas. No cinema não conheço. Assim como cineastas como King Vidor já não existe nenhum, nem um para se poder entrever a arte.

Combinação mais poética e mais em fúria não me lembro facilmente.
Como foi possível os décores da floresta, da pequena vila ou da grande cidade, bem como os elementos naturais, serem tão reveladores, transformadores ou mesmo amplificadores de tais convulsões? Como se procedeu a esta tal correspondência de forças e pulsões interiores com o exterior ?

- Do caralho, verdadeiramente do caralho -

segunda-feira, 8 de setembro de 2008


o fogo...

Para "Written on the Wind", de Douglas Sirk, serve a metáfora do explosivo (ou da bomba). Existem as que têm rastilho, e logo demoram um pouco a explodir (vê-se muito bem no Tom and Jerry), e as de rápida detonação (nos filmes do Leone é às carradas).
A mesma coisa com os filmes. Existem os que demoram a aquecer até estourararem violentamente (no género temos o também fabuloso "Some Came Running" do Minnelli) e os que explodem na abertura.

E acho que nunca vi um filme a pegar fogo tão rápido como "Written on the Wind". Ainda estamos no logótipo da Universal e já sentimos os graus nos limites. Primeiro plano – um carro velozmente a rasgar a paisagem do inferno do deep south americano, dentro dele o fabuloso Robert Stak em direcção à gigantesca mansão onde irá acontecer a tragédia.
Temperaturas do ar altíssimas, movimentos a rasgar as demenciais composições e os demenciais enquadramentos, toques e sinais de lirismo como prenúncio do caos.
É o meu início favorito de qualquer filme e é, sem dúvida, uma daquelas obras que hoje em dia põe tudo em causa.

domingo, 7 de setembro de 2008

outros ventos...