quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O Mestre Jardineiro (folha de sala Cineclube Gardunha)

 


Sob o signo do cineasta e pensador francês Robert Bresson e sobretudo do seu O Diário de um Pároco de Aldeia, baseado no romance de Georges Bernanos, assim têm sido os últimos filmes de Paul Schrader, mimetizando planos e silêncios. Um “homem sentado à mesa”, assim definiu o género dos seus últimos três filmes o cineasta americano. Depois de No Coração da Escuridão e The Card Counter: O Jogador (que vimos neste Cineclube vai fazer dois anos) chega-nos agora este O Mestre Jardineiro, concluindo então uma fase que muitos consideram terminal. Se no primeiro tomo da trilogia temos o espírito e a matéria numa digladiação crística - um padre a lutar com a sua crença frente aos demónios de um novo mundo, de uma nova idade das luzes e das trevas (ecologia e corrupção) - no segundo a matéria e as luzes de um mundo vicioso e pegajoso tratam de conter uma pulsão destrutiva de outra ordem, aparentemente mais profana. Ambos, padre e jogador, ocultam a propensão destrutiva e mercenária das guerras onde estiveram e para as quais foram meticulosamente preparados, e logo todas as perdas íntimas correlativas. 

O jardineiro do seu filme mais recente domina todas as fachadas dos protagonistas anteriores, uma questão de ordem e de repetição que permite controlar a altercação e a sempre possível escalada de violência. Bem como as marcas do passado literalmente impressas no corpo, expandidas neste tomo, a aritmética que divide o tempo e o nutre, ampliada ao paroxismo e epitomada, e um culto que permite um vórtice demencial num vocabulário, terminologias e História que requer constante interação; enfim, e aqui algo de recente que recupera a regeneração do plano final de The Card Counter: O Jogador - decalcado do final de O Carteirista de Bresson – um método maníaco que não se basta em se consumir no puro presente mas que lança ainda uma crença no futuro.

Regeneração, precisamente, um dos grandes temas de toda a história do cinema americano, que rima com redenção. Schrader, que cultiva a austeridade de Bresson, de Carl Theodor Dreyer e de Yasujiro Ozu (dedicou-lhes o livro de uma vida: Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer) jamais conseguiu escapar das forças morais e das placas tectónicas da violência puramente americana, da sua nascença, da sua construção, constatação, da sua constante destruição e regeneração. Assim, o espírito transcendental que Schrader encontra nesses cineastas de nações e culturas díspares – o interior dos seres, o invisível, a alma e a vida escondidas, a fazerem-se matéria plena, palpável e rarefeita, e as formas cinematográficas a comungarem dessa austeridade e desse enlevo – rebenta algures no caminho devido à inevitabilidade de escape originário, um determinismo que se vê bem na personagem de Ethan Edwards no The Searchers de John Ford, e que é a bíblia outra de Schrader, mesmo que a não tivesse reconhecido. Forças aparentemente opostas e impossíveis de comungarem numa cósmica busca existencialista que tem ainda os pergaminhos de Albert Camus e de Jean-Paul Sartre a dialogarem com o individualismo e o laconismo americanos.

E o que produz o poder cinemático, o suspense cortante e a tensão presentes no filme de hoje? E logo a ambiguidade? No fogo lento com que Schrader faz avançar a narrativa, as germinações e os peões em causa, com toda a detalhada e maníaca exposição do modo de vida do jardineiro e da vida e dos segredos das espécies cultivadas, do que ele aprendeu, do que quer passar aos aprendizes, e de uma constante recriação, exploração e pesquisa, que permite renomear e renovar quotidianamente o seus cosmos, o que subjaz é uma complexidade do julgamento das superfícies, um paradoxo latente: torna-se evidente que toda a contenção e postura correta e elegante de Narvel Roth aprisiona a violência e a possível obscenidade, isto é, alguém que a cada instante da sua existência renega e esmaga o seu fogo interior original, uterino, enganando-se. E que a liberdade, e em última ou primeira instância a verdade, reaparece nos momentos de pura violência e justiça em que ele devolve à vida a jovem aprendiz Maya, encontrando-se. Assim, a decência pode ser abjeta e a violência pura. É esta a importância, a esfinge e o pasmo do cinema de Schrader no seu melhor.

Então, e a liturgia do futuro, a utopia e os sonhos metidos numa ampulheta científica, resumida no incrível monólogo interior: «A jardinagem é uma crença no futuro. Uma crença de que as coisas vão acontecer de acordo com o plano. Essa mudança virá no seu devido tempo.»? É a infinita complexificação, tal como são infinitas as multiplicidades de formas e de geometrias, dos tons e das matizes, de estilos e de técnicas de jardinagem expostas. Entre a perfeição de linhas e a selvageria, o milagre do tempo (também meteorológico) e da hora e as omnívoras metamorfoses possíveis, percebe-se que o futuro será jogado tanto pela assunção do deslumbramento e do raciocínio como pelo aceitamento e pelo irracional. O espezinhamento da personalidade será sempre a forma de violência inaceitável. Portanto, a troca da mulher mais velha pela mais nova, a troca de uma contenção outra pela liberdade e jovialidade, torna-se lógica no jogo de forças e dependências em causa.

Daí o final ao mesmo tempo lógico e imprevisível, uma dança que tanto evoca a do juiz Holden no Meridiano de Sangue de Cormac McCarthy como a do personagem de Tommy Lee Jones no subestimado The Homesman - Uma Dívida de Honra. Passadas as panorâmicas e os travellings gizados a regra e esquadro, a planificação Bressoniana que impede qualquer tipo de brecha formal, constituindo um mundo de autonomias e regras perfeitas, passados os flashbacks fétidos, toda a descompostura cai. E pelo menos esse futuro, esse instante, regenera-se para sempre.

José Oliveira


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Entrevista ao realizador do filme "O Cordeiro de Deus" rodado na Soalheira

 Por José Oliveira


Rodado na vila da Soalheira o filme "O Cordeiro de Deus", traz-nos, lentamente, «as festas da vila misturadas com sensualidade e violência, num enigmático retrato de uma íntima família», segundo a sinopse. Superstições, crenças antiquíssimas, ritos indecifráveis, numa complexa mas delicada cosmogonia que fez parte da competição das curtas do festival de Cannes de 2020. Já na próxima terça-feira, dia 20, pelas 21h30, na Moagem. 

Curta-metragem que antecede mais um filme da genial e recentemente redescoberta cineasta japonesa Kinuyo Tanaka, cujo Senhora Ogin, em prodigiosas cores, acompanha a paixão entre a Senhora Ogin (que dá título ao filme) e o samurai Ukon Takayama, um devoto cristão, nos finais do século XVI, quando o cristianismo vindo do Ocidente foi proscrito no Japão.  Uma tragédia de contornos shakespearianos que perfazerá, com certeza, uma sessão inesquecível. 



- O filme passa-se na vila da Soalheira, concelho do Fundão. Qual a tua ligação a esta região e por que decidiste lá filmar?

A minha ligação é a de que o meu pai é natural da Soalheira. Conheço-a apenas de férias de verão. Eu decidi lá filmar por ser um sítio que já conhecia um pouco, queria filmar numa aldeia do interior de Portugal e já ter algumas imagens na minha cabeça de memórias antigas facilitou. Mas os locais que são filmados são abstratos, ou seja, não têm local definido no filme.

- Essas festas de verão, as tradições, superstições, são bem próximas de quem vive ou viveu no mundo rural português. Como colheste essas histórias e ambiências que percebemos antigas, foste totalmente fiel ou existiu uma reinterpretação da tua parte?

Eu não recolhi testemunhos de ninguém sem ser do meu pai, e por isso mesmo essa recolha foi natural, ou seja, foi feita ao longo de muitos anos, desde que nasci. Ao imaginar este filme não lhe pedi que me contasse certas histórias outras vez, preferi usar as minhas memórias que tinham já elementos inventados por mim misturados. Gosto quando tornamos alguma coisa de outra pessoa nossa também, quando acrescentamos a nossa visão. Acho que é impossível ser fiel, é inevitável mudarmos e acrescentarmos uma história, mesmo que seja quando contamos a alguém a história de outra pessoa. 

- O filme abre precisamente com uma potência documental que vai mantendo em pormenores ao longo dos seus quatorze minutos, mas também progride para fantasmagorias e simbolismos mais opacos que vão desembocar no misterioso plano final. Interessou-te esse delicado equilíbrio de registos?

Eu gosto quando se passam coisas nos filmes que não foram bem planeadas ou que fogem ao nosso controlo, e se trabalharmos com animais ou crianças isso acontece inevitavelmente. São agentes independentes tão fortes que não conseguimos domar, e por isso mesmo dão-nos uma impressão de realidade e de mundo. De resto esses registos diferentes fazem simplesmente parte da minha forma de ver as coisas e de filmar um filme.

- Penso que misturas atores profissionais com não-atores. Utilizaste pessoas da região? Como foi esse trabalho?

Sim, entram no filme vários atores não profissionais, nem todos são da região. Os rapazes que trabalham na quinta e os atores que são crianças são. É um trabalho que eu adoro e nunca experimentei não ter não-atores. É só muito recompensador ter uma perspetiva sempre real e fresca e sem vícios, super genuína, e acho que toda a equipa gosta desse encontro.

- E como é levar a máquina de fabricar cinema a lugares que normalmente não são vistos por ele (o cinema)?

Teria de pensar mais sobre isso mas Portugal é um país que, como país europeu, não tem Hollywood e por isso qualquer sítio para lá de Lisboa, que tem imagens muito definidas, pode ser visto mas não é repetido. Ou seja, qualquer sítio onde filmes vai ser especial e vai ser especial conhecer pessoas e dar-lhes a ver o que fazes, como pode ser em qualquer outra coisa. Mas é um trabalho incrível, sobre o qual consegues conversar com quem quiseres e que acho que vai sempre despertar curiosidade, e nisso sinto uma sorte muito grande.

- Por último, podes falar-nos um pouco de referências cinematográficas ou puramente estéticas que sentes que estão presentes em O Cordeiro de Deus?

Quando quis fazer este filme queria muito aproximar-me do novo cinema argentino e em especial duma realizadora chamada Lucrecia Martel. As primeiras longas-metragens desses realizadores têm um estilo mais duro, mais real e usam pessoas que não parecem atores. Sem ser isso, dois fotógrafos a que eu e a diretora de fotografia voltámos várias vezes como inspiração foram o Bill Henson e a Sharon Lockhart.

in: https://www.jornaldofundao.pt/cinema/entrevista-ao-realizador-do-filme-o-cordeiro-de-deus-rodado-na-soalheira

Entrevista a Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias sobre o filme "Viagem ao Sol"

Por José Oliveira


Viagem ao Sol, o mais recente documentário de Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias, acolhe os testemunhos de crianças austríacas enviadas no pós- segunda guerra mundial para Portugal. Tal como diz a sinopse: «O filme constitui uma reflexão sobre crianças em situação de conflito e pós-conflito e sobre a potência do olhar infantil em revelar um acesso a realidades ofuscadas pelas narrativas oficiais.» É um filme urgente carregado de múltiplos ecos com o presente. A 24 de fevereiro de 2022 rebentou a mais recente guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Logo em março chegaram os primeiros refugiados a Portugal e ao Fundão. Sendo contextos e sociedades diferentes, não há como escapar das ressonâncias.

A revolta de vermos crianças e inocentes ceifados pela guerra, as longas travessias, as alegrias e ambiguidades dos países de acolhimento, a persistência da memória. «As primeiras cores de que me lembro foram vistas em Portugal» assim recorda alguém que pelos anos da segunda grande guerra era uma criança e que agora já tem idade avançada. É um filme comovente e necessário que será exibido pelo Cineclube Gardunha já no próximo dia 30 de janeiro, pelas 21h30, na Moagem. Um dos realizadores, Ansgar Schaefer, estará presente para uma conversa com o público (moderada pela professora Manuela Penafria) que será, com certeza, marcante. 


O filme dialoga imenso com o nosso puro presente. Em Portugal, e muito aqui na cidade do Fundão, a questão de sermos vistos e de nos relacionarmos com crianças e adultos de outras proveniências e culturas que vieram de grandes sofrimentos e provações recentes, é de uma imensa importância. É um espelho, uma outra provação, uma reflexão que tem de ser proveitosa. Foi por causa disto que se lançaram nesta tarefa?

Susana: A ideia já tem muitos anos, mas a verdade é que a retomámos a partir de 2015 também pela sua atualidade na altura. Estávamos em plena crise de refugiados, as histórias eram dramáticas e resolvemos revisitar este caso em Portugal. As crianças austríacas, no entanto, não eram refugiadas, elas foram assim designadas pela propaganda do Estado Novo, que, na verdade, pouco fez pelos refugiados durante a 2.ª Guerra Mundial. Decidimos então olhar para este caso e tentar perceber o que nos podia revelar não só do país que era Portugal na altura, mas também do nosso presente.

Como souberam dessas crianças austríacas enviadas no pós-guerra para Portugal, dessa fabulosa micro-história que comenta e ilumina toda a grande história oficial e não-oficial?

Ansgar: Soubemos dessas crianças por causa de uma investigação que fiz há bastantes anos. A temática dessa investigação foram os refugiados judeus em Portugal durante a 2ª Guerra Mundial.  Há aqui um facto curioso. Estamos a dar uma entrevista ao Jornal do Fundão, e foi precisamente este jornal que na altura publicou uma série de artigos muito críticos sobre a forma como os refugiados judeus que chegaram à fronteira de Portugal foram tratados. Aliás, esta investigação foi posteriormente publicada em livro e o Jornal do Fundão é citado várias vezes. Por isso para nós é tão relevante mostrar o filme aqui. 

Portanto, quando eu estava a fazer esta investigação houve várias pessoas que me falaram das muitas crianças que, diziam elas, tinham vindo da Áustria durante a guerra. Como conhecia bem a documentação dos arquivos portugueses, sabia que esta informação não poderia ser verdadeira. Apenas anos mais tarde percebi que as crianças austríacas não vieram durante, mas sim depois da guerra. A ideia para o filme começou a germinar logo nesta altura.

 O vosso trabalho de pesquisa, de atenção e de detalhe é admirável. De facto, o trabalho sobre arquivos é infindável e a vossa paciência preciosa. Não há necessidade de produzir novas imagens se elas já existem com potência inaudita e à espera de serem significantes. Até onde foram nesse desempoeiramento arquivista?

Ansgar: Começámos a nossa investigação em três frentes. Pesquisámos as fontes escritas, como os principais jornais da época, o arquivo Salazar, o arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, entre outros. Nessa altura, o arquivo da Cáritas era ainda praticamente inexistente e fechado à consulta. Mas mais importante do que a documentação foi, de facto, o conjunto de entrevistas com as antigas crianças, hoje adultos e adultas já de uma certa idade. Graças ao apoio da Embaixada Austríaca, e sobretudo ao Ingo Koenig, conseguimos entrar em contacto direto com algumas destas pessoas que nos convidaram para o encontro que fazem anualmente na região de Linz. 

Susana: Uma outra frente, absolutamente primordial, foi a pesquisa de imagens. Em arquivos fílmicos, como, por exemplo, o Arquivo Nacional de Imagens em Movimento da Cinemateca, mas também em arquivos fotográficos, como o Século. E, claro, começámos logo a procurar outro tipo de imagens, para além dos arquivos oficiais. Aqui tivemos a sorte de as antigas crianças possuírem ainda uma enorme quantidade de fotografias e, por vezes, até de alguns filmes feitos pelas famílias de acolhimento. Para além disso, fizemos também uma pesquisa em arquivos estrangeiros para obter imagens da época dos acontecimentos, como o arquivo Filmarchiv Austria, mas também em arquivos ingleses, franceses e russos. O principal problema foi, no entanto, encontrar no material de arquivo aqueles indícios que nos permitissem mostrar uma outra história para além da história veiculada pela propaganda do Estado Novo...

Ansgar : ... a de que esta foi uma ação organizada por um país fantástico, governado por um ditador fantástico. Aliás, a profusão de imagens de família que encontrámos tem a ver com o facto de a ação ter sido apoiada por Salazar e de muitas das famílias que acolheram as crianças estarem ligadas ao antigo regime. Eram famílias abastadas, algumas da antiga aristocracia e, claro, tinham os meios à disposição para registarem a estada em Portugal das meninas e meninos austríacos que acolhiam. 

E o som, essa narração outra, que é um outro mundo, como lá chegaram?

Ansgar: A criação sonora foi feita pelo Dídio Pestana, que também foi quem gravou a maior parte das entrevistas. Foi um trabalho de estreita colaboração e muito frutuoso. Tínhamos umas ideias, o Dídio foi-nos fazendo várias propostas e, através de um processo de articulação de imagem, som e palavras, chegámos ao resultado final.

E esses choques e harmonias, essas luzes e trevas que não surgem só pelas imagens e pelos sons em si, mas também pelo trabalho aturado da montagem. Quais os vossos princípios?

Susana: A montagem é o momento onde o filme nasce. É através dela que o filme obtém a sua forma final. Posso referir aqui três princípios que são importantes para nós. Um, é manter a autonomia da imagem, ou seja, nunca mostrar uma imagem como mera ilustração de alguma coisa, ou como mero suporte das palavras. Imagem e palavra têm a mesma importância, têm o mesmo estatuto. Muitas vezes, em filmes que abordam aspetos históricos do passado, menoriza-se a imagem. O nosso processo é precisamente o oposto. A imagem revela, a imagem contém informações preciosas dentro dela mesma que não necessitam de palavras para aparecer. Um outro princípio é dar atenção ao que é dito e como é dito e não apenas à vertente informativa que é veiculada pelas palavras. Desta forma, mais do que receber apenas informações, estamos a partilhar uma experiência. Uma experiência pela qual estas crianças passaram, uma experiência que os adultos hoje estão a viver, ao contar-nos estes episódios. E por fim, para nós é muito importante dar espaço ao espectador para pensar no que está a ver e a ouvir. Daí o trabalho preciso que fazemos sobre o tempo das imagens, sobre a forma como montamos os próprios testemunhos. 

in: https://www.jornaldofundao.pt/cinema/entrevista-a-ansgar-schaefer-e-susana-de-sousa-dias-sobre-o-filme-viagem-ao-sol



terça-feira, 16 de janeiro de 2024

FERRARI, de Michael Mann

 


O fulcral em Ferrari é o embate entre a potência da velocidade dos bólides e a potência de fixação das câmaras de filmar e da sua tecnologia acoplada, isto é, do cinema. O corpo a corpo entre duas modernidades frias, inconciliáveis, autónomas. E que são perfeitas máquinas de produção e de fixação da morte, da sua transcendência, da sua reverberação, do seu escrutínio.

Michael Mann, sendo o maior cientista-cineasta americano, utiliza, num primeiro momento, os seus utensílios primordiais, a câmara, o som e o desenho dos movimentos diversos no espaço em conjunção com o tempo, para sondar as correspondências secretas e inquietantes entre Enzo Ferrari e as suas máquinas automobilísticas. Parece, pois, natural que Mann tenha dedicado anos a estudar e a desconstruir, a pilotar e a tratar por “tu” os Ferraris.

Assim, muitas vezes, a frontalidade do registo e a gramática cinematográfica são abandonados em favor de uma lateralidade que já é uma narrativa outra, para além da mera biografia, da mera hagiografia: vemos, entre outros fragmentos passiveis de dissecar, a zona do pescoço e dos ombros do protagonista, para assim Mann analisar e pôr em evidência conceitos como a tensão, a pressão, a retração, a respiração, a entropia, a concentração (do sistema nervoso, do fluxo sanguíneo, etc.), as veias, os músculos, numa zona essencial e reveladora das ações exteriores no corpo humano. Por vezes o recurso ao slow motion enfatiza duplamente a demanda. E, ato contínuo, percebermos a correlação entre a fachada humanamente construída com a indiferença das máquinas em questão. Estamos constantemente a comparar Enzo na vida pública, robótico, maquínico, metálico, com Enzo na vida privada, um vulcão com a sua esposa, um anjo caído com a sua amante. Estamos constantemente a comparar a morfologia de Enzo com a morfologia das máquinas.

E, num segundo momento, metafísico, mas igualmente direto, como num grande acidente entre carne e metal, a montagem é essencial: não só para percebermos todas as motivações dramáticas e históricas – a magnifica sequência-fusão vulcânica da ópera – mas num mesmo nível para entendermos que uma escolha como a feita por Enzo comporta todos os tipos de resquícios funestos: o fantasma da mulher, Laura, as peças queimadas e os interstícios das carrocerias, as peças e os órgãos mortos pelas máquinas, amigos, filho, desconhecidos… numa espiral irremediável e interminável… o provisório da vida com a amante, Lina, o atrito na perceção da máscara utilizada em público e na recuperação do semblante original.

Ainda, o confronto imagético, sónico e visceral: a câmara de filmar que muitas das vezes deixa de acompanhar, lado a lado, o objeto dramático central das corridas, os carros com os pilotos, para ir contra eles, em contradição de encenação, de mise-en-scène, de inteligências. Aí já é o cinema, o cinema de Mann, a humanizar-se e a querer competir com o ronco dos motores supostamente inultrapassáveis, essa fabulosa criação humana, que, relembrou Mann aquando da primeira vez que vislumbrou um Ferrari, lhe pareceu uma besta, uma fera, um animal colossal fabricado pelo homem. Homem que se quis Criador, Deus, tentando ultrapassar as bestas das selvas que nos apareceram no mundo conhecido.

Mann a ousar que as particularidades estritas do cinema, esse meio incomensurável que Eisenstein não admitiu que servisse só para contar histórias, não alcançassem “apenas” as particularidades estritas da velocidade e das suas leis intrínsecas, mas que se tornasse (o cinema) besta, alma, selvageria. Uma selvageria precisa, orquestrada, disciplinada, por isso é que quando Enzo explica ao filho que «tudo o que funciona (flui) na perfeição é belo», lhe esteja a entregar a mais bela das dádivas, bem mais importante do que o autografo do ídolo sempre adiado. Essa frase é na mesma medida a síntese e o epitáfio do trabalho de Mann.

O natural ultra-romantismo final, um pai a apresentar um filho vivo a um filho morto, no cemitério humanizado de todos os dias, é a imagem acabada e perfeita deste quebrar de barreiras inquebráveis, deste violar de leis invioláveis que o homem, enquanto máquina ou besta sedenta, ousa sempre. Quando se ousa para além dos limites, não existem limites, seja na ciência perene, seja nos bons modos e costumes. E tanto a Terceira Lei de Newton como a fatalidade de um corpo esfriado onde o coração deixou de bater podem ser revertidos.

Ferrari é um monumento ao poder dos Homens, à sua racionalidade tantas vezes irracional, irrazoável, que os faz avançar. Um parceiro perfeito, e igualmente da família do sublime calado, discreto, em filigrana, complexo, do Bobby Deerfield de Sydney Pollack, a quem o filme também é dedicado.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Os Melhores Momentos de 2023

 Num dos poemas do livro POESIA, de Daniel Faria, lê-se: Quando eu era uma criança de muletas / Estudei o alicerce de coisas paradas / Observei as coisas que se moviam / No olhar estático das coisas que meditam. Era cirúrgico / Como o homem que opera nas pupilas as artérias do seu próprio / [coração.

Todas as obras que me tocaram em 2023 foram geradas numa longa paciência, depois de postas de lado, esquecidas, duvidadas, ressurgidas, esquecidas novamente. Todos os seus autores estudaram o assunto ao milímetro, ao milésimo de segundo, durantes décadas ou numa noite de décadas. Por isso é que o Ferrari de Michael Mann, que agora estreia, está justificado, é majestoso, é único, para lá dos chavões críticos caducos: Adam Driver não é Enzo Ferrari, é um Enzo Ferrari, não interessam os sotaques, interessa a comunicação universal do coração, o embate das máquinas só ecoa os embates dos seres-humanos. Tal como o motor e restantes peças de um desses bólides, tal como o corpo e a alma (ou o espírito, ou a mente) de um humano, há o sublime e há o seu contrário, há o universal, o corrupto, a cedência lamentável, combinados com o único e com o indivisível.

Erice morreu mil vezes antes desta sua (para já!) última obra total, morreu nela e com ela, e chegou a tempo de cegar e de abrir os olhos a quem ainda acredita, seja em luz ou em amor. Raul Domingues voltou durante anos a fio, por períodos definidos, à sua terapia pela terra, com a terra e com os seus, e a terra e os seus acabaram por lhe devolver, transcendido ainda, o seu labor em consonância com os ciclos, com o universo, com a natureza. Khalik Allah ou Eduardo Coutinho, que parecem mais apressados, só lá chegam, ao íntimo dos seus semelhantes, porque ainda conservam dentro de si leites maternos e curiosidades infinitas, a alimentação primeira e a atenção pela distância e pelo toque.

Bruce Lee, o maior dos tecnicistas, disse certa vez que o seu augúrio máximo era não ter técnica nenhuma. A grande arte que ainda importa, isto é, aquela em acordo e tensão com o presente e com todos os presentes enleados para trás e para a frente, é uma questão de precisão, de detalhe, e de crença; de saber das coisas todas do assunto e de respeitar o seu segredo.


FILMES:

 

Saint Omer, de Alice Diop

Tudo faz parte de tudo. Jamais o que é posto em movimento poderá ser apagado. Em último e primeiro caso nem se trata de redenção, mas sim de natureza. A natureza omnívora. Que nos escapa. Que não é aquilo que julgamos que é. Diop concentra tudo, natureza humana e cósmica, nos tribunais terrestres e nos enlevos espirituais, e cada um tirará a sua soma. Com Diop há perdão e razões para todos.

- Terra que marca, de Raul Domingues

F. W. Murnau e D. W. Griffith. O cúmulo de concreto, o cúmulo de fantástico. Meter em escala monumental homens ou folhas. Colher o amado e revelar a ameaça. Com 35 mm ou Mini-Dv, a questão é sempre a mesma. O fogo central que tudo anima ou pode animar. A plenitude ou a ambiguidade. Mas em fogo. O objetivo é fazer ver, diria Griffith. O objetivo é fazer sentir, diria Murnau. Em ambos, as chamas da lucidez e da paixão.

- Fechar os Olhos, de Víctor Erice

Jorge Luis Borges e Howard Hawks em acordo perfeito. O máximo labiríntico e o máximo frontal escavam um mesmo caminho penoso, escalavrado, demencial e sonhador rumo às concavidades da nossa escuridão e da nossa solidão lacustre, eterna.

- Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese

Griffith. King Vidor. John Ford. Sam Peckimpah. Michael Cimino. Quem acompanhou esta via, a via do nascimento dos Estados Unidos, da violência, da contradição e da ambiguidade ontológicas, sabe que todas as monstruosidades, excessos, overacting, subtilezas, etc., que Scorsese poe em marcha, são a matemática exata da experiência do caos americano. Abraham Lincoln a falar com Trump... visões infernais.

- O Rapaz e a Garça, de Hayao Miyazaki + Fairytale - Sombras do Velho Mundo, de Aleksandr Sokurov

A tradição do pesadelo e o pesadelo da tradição. Miyazaki revolve tudo e maravilha tudo. Sokurov destrói tudo e reinicia tudo. Novos e velhos mundos em luzes proféticas.

 

(RE) DESCOBERTAS:

 

Yakuza no hakaba: Kuchinashi no hana, de Kinji Fukasaku, 1976

O lirismo é sempre uma reportagem, uma radiografia, uma ciência, do calor e da tensão do presente do homem em relação ao meio impassível.

- Nippon-koku Furuyashiki-mura, de Shinsuke Ogawa, 1984

O cuidado com o nascimento do arroz e o cuidado com quem viu o horror absolutos merecem o mesmo tempo, todo o tempo, e a mesma dedicação, toda a dedicação. E cuidado. Uma e outra coisa são dependentes. Sublime conexão.

- Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho, 2000

A potência da disponibilidade de almas, da aproximação de almas, do encontro de almas. As relações acontecem pela disponibilidade. O cinema acontece pela disponibilidade. A verborreia da alma e o silêncio da verborreia. A arte mais aparentemente simples é a que mais exige. Leve como uma pluma. Constantemente alerta. Até à exaustão.

 

LIVROS:

 

A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, 1919

A odisseia da pobreza e da corrupção humanas desembocam no pegar ao colo um novo bebé, sempre um novo bebé, uma nova luta, uma nova luz. O milagre constantemente prometido.

- Horácio. Poesia Completa, tradução de Frederico Lourenço, 2023

Sem comentários apropriados. Uma promessa.

- POESIA, Daniel Faria, 2012

As palavras, o silêncio, a poesia, no tempo anterior à nossa vinda; nascidas muito antes de chegarmos; antes de termos compreendido. 

 

DISCOS:

 

- ENTER THE WU-TANG (36 CHAMBERS) 30TH ANNIVERSARY (COLORED LP W/OBI)

E foi há trinta anos que uma nova humanidade autóctone cruzou e fundiu hemisférios e continentes e oceanos e céus e espiritualidades e categorias para acordar uma nova sonoridade arrancada aos silêncios de todos os desprezados de todos os tugúrios.

 

EVENTOS:

 

STREET OPERA exposição de Khalik Allah, Galeria Imago / LEFFEST 2023

Uma nova resolução estética para uma antiga humanidade. Tal como Eduardo Coutinho soube falar e abrir o coração, Kalick Allah sabe olhar e ver o mais difícil: aquilo que está à nossa frente, que aparece sem aviso, de rompante, pelo imprevisível de estar vivo.

foto minha da exposição de Khalik Allah