OUT
‘Eden before Adam got around to naming the animals
quinta-feira, 4 de julho de 2024
The Bikeriders, de Jeff Nichols
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024
O Mestre Jardineiro (folha de sala Cineclube Gardunha)
Sob o signo do cineasta e pensador francês Robert Bresson e
sobretudo do seu O Diário de um Pároco de Aldeia, baseado no romance de Georges
Bernanos, assim têm sido os últimos filmes de Paul Schrader, mimetizando planos
e silêncios. Um “homem sentado à mesa”, assim definiu o género dos seus últimos
três filmes o cineasta americano. Depois de No Coração da Escuridão e The
Card Counter: O Jogador (que vimos neste Cineclube vai fazer dois anos)
chega-nos agora este O Mestre Jardineiro, concluindo então uma fase que
muitos consideram terminal. Se no primeiro tomo da trilogia temos o espírito e
a matéria numa digladiação crística - um padre a lutar com a sua crença frente
aos demónios de um novo mundo, de uma nova idade das luzes e das trevas (ecologia
e corrupção) - no segundo a matéria e as luzes de um mundo vicioso e pegajoso
tratam de conter uma pulsão destrutiva de outra ordem, aparentemente mais
profana. Ambos, padre e jogador, ocultam a propensão destrutiva e mercenária
das guerras onde estiveram e para as quais foram meticulosamente preparados, e
logo todas as perdas íntimas correlativas.
O jardineiro do seu filme mais recente domina todas as
fachadas dos protagonistas anteriores, uma questão de ordem e de repetição que
permite controlar a altercação e a sempre possível escalada de violência. Bem
como as marcas do passado literalmente impressas no corpo, expandidas neste tomo,
a aritmética que divide o tempo e o nutre, ampliada ao paroxismo e epitomada, e
um culto que permite um vórtice demencial num vocabulário, terminologias e
História que requer constante interação; enfim, e aqui algo de recente que
recupera a regeneração do plano final de The Card Counter: O Jogador -
decalcado do final de O Carteirista de Bresson – um método maníaco que
não se basta em se consumir no puro presente mas que lança ainda uma crença no
futuro.
Regeneração, precisamente, um dos grandes temas de
toda a história do cinema americano, que rima com redenção. Schrader, que
cultiva a austeridade de Bresson, de Carl Theodor Dreyer e de Yasujiro Ozu
(dedicou-lhes o livro de uma vida: Transcendental Style in Film: Ozu,
Bresson, Dreyer) jamais conseguiu escapar das forças morais e das placas
tectónicas da violência puramente americana, da sua nascença, da sua
construção, constatação, da sua constante destruição e regeneração. Assim, o
espírito transcendental que Schrader encontra nesses cineastas de nações e
culturas díspares – o interior dos seres, o invisível, a alma e a vida escondidas,
a fazerem-se matéria plena, palpável e rarefeita, e as formas cinematográficas
a comungarem dessa austeridade e desse enlevo – rebenta algures no caminho
devido à inevitabilidade de escape originário, um determinismo que se vê bem na
personagem de Ethan Edwards no The Searchers de John Ford, e que é a
bíblia outra de Schrader, mesmo que a não tivesse reconhecido. Forças
aparentemente opostas e impossíveis de comungarem numa cósmica busca
existencialista que tem ainda os pergaminhos de Albert Camus e de Jean-Paul
Sartre a dialogarem com o individualismo e o laconismo americanos.
E o que produz o poder cinemático, o suspense cortante e a
tensão presentes no filme de hoje? E logo a ambiguidade? No fogo lento com que Schrader
faz avançar a narrativa, as germinações e os peões em causa, com toda a
detalhada e maníaca exposição do modo de vida do jardineiro e da vida e dos
segredos das espécies cultivadas, do que ele aprendeu, do que quer passar aos
aprendizes, e de uma constante recriação, exploração e pesquisa, que permite
renomear e renovar quotidianamente o seus cosmos, o que subjaz é uma
complexidade do julgamento das superfícies, um paradoxo latente: torna-se
evidente que toda a contenção e postura correta e elegante de Narvel Roth
aprisiona a violência e a possível obscenidade, isto é, alguém que a cada
instante da sua existência renega e esmaga o seu fogo interior original,
uterino, enganando-se. E que a liberdade, e em última ou primeira instância a
verdade, reaparece nos momentos de pura violência e justiça em que ele devolve
à vida a jovem aprendiz Maya, encontrando-se. Assim, a decência pode ser abjeta
e a violência pura. É esta a importância, a esfinge e o pasmo do cinema de
Schrader no seu melhor.
Então, e a liturgia do futuro, a utopia e os sonhos metidos
numa ampulheta científica, resumida no incrível monólogo interior: «A
jardinagem é uma crença no futuro. Uma crença de que as coisas vão acontecer de
acordo com o plano. Essa mudança virá no seu devido tempo.»? É a infinita
complexificação, tal como são infinitas as multiplicidades de formas e de
geometrias, dos tons e das matizes, de estilos e de técnicas de jardinagem
expostas. Entre a perfeição de linhas e a selvageria, o milagre do tempo (também
meteorológico) e da hora e as omnívoras metamorfoses possíveis, percebe-se que
o futuro será jogado tanto pela assunção do deslumbramento e do raciocínio como
pelo aceitamento e pelo irracional. O espezinhamento da personalidade será
sempre a forma de violência inaceitável. Portanto, a troca da mulher mais velha
pela mais nova, a troca de uma contenção outra pela liberdade e jovialidade, torna-se
lógica no jogo de forças e dependências em causa.
Daí o final ao mesmo tempo lógico e imprevisível, uma dança
que tanto evoca a do juiz Holden no Meridiano de Sangue de Cormac
McCarthy como a do personagem de Tommy Lee Jones no subestimado The Homesman
- Uma Dívida de Honra. Passadas as panorâmicas e os travellings gizados a
regra e esquadro, a planificação Bressoniana que impede qualquer tipo de
brecha formal, constituindo um mundo de autonomias e regras perfeitas, passados
os flashbacks fétidos, toda a descompostura cai. E pelo menos esse
futuro, esse instante, regenera-se para sempre.
José Oliveira
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024
Entrevista ao realizador do filme "O Cordeiro de Deus" rodado na Soalheira
Por José Oliveira
Rodado na vila da Soalheira o filme "O Cordeiro de Deus", traz-nos, lentamente, «as festas da vila misturadas com sensualidade e violência, num enigmático retrato de uma íntima família», segundo a sinopse. Superstições, crenças antiquíssimas, ritos indecifráveis, numa complexa mas delicada cosmogonia que fez parte da competição das curtas do festival de Cannes de 2020. Já na próxima terça-feira, dia 20, pelas 21h30, na Moagem.
Curta-metragem que antecede mais um filme da genial e recentemente redescoberta cineasta japonesa Kinuyo Tanaka, cujo Senhora Ogin, em prodigiosas cores, acompanha a paixão entre a Senhora Ogin (que dá título ao filme) e o samurai Ukon Takayama, um devoto cristão, nos finais do século XVI, quando o cristianismo vindo do Ocidente foi proscrito no Japão. Uma tragédia de contornos shakespearianos que perfazerá, com certeza, uma sessão inesquecível.
- O filme passa-se na vila da Soalheira, concelho do Fundão. Qual a tua ligação a esta região e por que decidiste lá filmar?
A minha ligação é a de que o meu pai é natural da Soalheira. Conheço-a apenas de férias de verão. Eu decidi lá filmar por ser um sítio que já conhecia um pouco, queria filmar numa aldeia do interior de Portugal e já ter algumas imagens na minha cabeça de memórias antigas facilitou. Mas os locais que são filmados são abstratos, ou seja, não têm local definido no filme.
- Essas festas de verão, as tradições, superstições, são bem próximas de quem vive ou viveu no mundo rural português. Como colheste essas histórias e ambiências que percebemos antigas, foste totalmente fiel ou existiu uma reinterpretação da tua parte?
Eu não recolhi testemunhos de ninguém sem ser do meu pai, e por isso mesmo essa recolha foi natural, ou seja, foi feita ao longo de muitos anos, desde que nasci. Ao imaginar este filme não lhe pedi que me contasse certas histórias outras vez, preferi usar as minhas memórias que tinham já elementos inventados por mim misturados. Gosto quando tornamos alguma coisa de outra pessoa nossa também, quando acrescentamos a nossa visão. Acho que é impossível ser fiel, é inevitável mudarmos e acrescentarmos uma história, mesmo que seja quando contamos a alguém a história de outra pessoa.
- O filme abre precisamente com uma potência documental que vai mantendo em pormenores ao longo dos seus quatorze minutos, mas também progride para fantasmagorias e simbolismos mais opacos que vão desembocar no misterioso plano final. Interessou-te esse delicado equilíbrio de registos?
Eu gosto quando se passam coisas nos filmes que não foram bem planeadas ou que fogem ao nosso controlo, e se trabalharmos com animais ou crianças isso acontece inevitavelmente. São agentes independentes tão fortes que não conseguimos domar, e por isso mesmo dão-nos uma impressão de realidade e de mundo. De resto esses registos diferentes fazem simplesmente parte da minha forma de ver as coisas e de filmar um filme.
- Penso que misturas atores profissionais com não-atores. Utilizaste pessoas da região? Como foi esse trabalho?
Sim, entram no filme vários atores não profissionais, nem todos são da região. Os rapazes que trabalham na quinta e os atores que são crianças são. É um trabalho que eu adoro e nunca experimentei não ter não-atores. É só muito recompensador ter uma perspetiva sempre real e fresca e sem vícios, super genuína, e acho que toda a equipa gosta desse encontro.
- E como é levar a máquina de fabricar cinema a lugares que normalmente não são vistos por ele (o cinema)?
Teria de pensar mais sobre isso mas Portugal é um país que, como país europeu, não tem Hollywood e por isso qualquer sítio para lá de Lisboa, que tem imagens muito definidas, pode ser visto mas não é repetido. Ou seja, qualquer sítio onde filmes vai ser especial e vai ser especial conhecer pessoas e dar-lhes a ver o que fazes, como pode ser em qualquer outra coisa. Mas é um trabalho incrível, sobre o qual consegues conversar com quem quiseres e que acho que vai sempre despertar curiosidade, e nisso sinto uma sorte muito grande.
- Por último, podes falar-nos um pouco de referências cinematográficas ou puramente estéticas que sentes que estão presentes em O Cordeiro de Deus?
Quando quis fazer este filme queria muito aproximar-me do novo cinema argentino e em especial duma realizadora chamada Lucrecia Martel. As primeiras longas-metragens desses realizadores têm um estilo mais duro, mais real e usam pessoas que não parecem atores. Sem ser isso, dois fotógrafos a que eu e a diretora de fotografia voltámos várias vezes como inspiração foram o Bill Henson e a Sharon Lockhart.
Entrevista a Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias sobre o filme "Viagem ao Sol"
Por José Oliveira
Viagem ao Sol, o mais recente documentário de Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias, acolhe os testemunhos de crianças austríacas enviadas no pós- segunda guerra mundial para Portugal. Tal como diz a sinopse: «O filme constitui uma reflexão sobre crianças em situação de conflito e pós-conflito e sobre a potência do olhar infantil em revelar um acesso a realidades ofuscadas pelas narrativas oficiais.» É um filme urgente carregado de múltiplos ecos com o presente. A 24 de fevereiro de 2022 rebentou a mais recente guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Logo em março chegaram os primeiros refugiados a Portugal e ao Fundão. Sendo contextos e sociedades diferentes, não há como escapar das ressonâncias.
A revolta de vermos crianças e inocentes ceifados pela guerra, as longas travessias, as alegrias e ambiguidades dos países de acolhimento, a persistência da memória. «As primeiras cores de que me lembro foram vistas em Portugal» assim recorda alguém que pelos anos da segunda grande guerra era uma criança e que agora já tem idade avançada. É um filme comovente e necessário que será exibido pelo Cineclube Gardunha já no próximo dia 30 de janeiro, pelas 21h30, na Moagem. Um dos realizadores, Ansgar Schaefer, estará presente para uma conversa com o público (moderada pela professora Manuela Penafria) que será, com certeza, marcante.
O filme dialoga imenso com o nosso puro presente. Em Portugal, e muito aqui na cidade do Fundão, a questão de sermos vistos e de nos relacionarmos com crianças e adultos de outras proveniências e culturas que vieram de grandes sofrimentos e provações recentes, é de uma imensa importância. É um espelho, uma outra provação, uma reflexão que tem de ser proveitosa. Foi por causa disto que se lançaram nesta tarefa?
Susana: A ideia já tem muitos anos, mas a verdade é que a retomámos a partir de 2015 também pela sua atualidade na altura. Estávamos em plena crise de refugiados, as histórias eram dramáticas e resolvemos revisitar este caso em Portugal. As crianças austríacas, no entanto, não eram refugiadas, elas foram assim designadas pela propaganda do Estado Novo, que, na verdade, pouco fez pelos refugiados durante a 2.ª Guerra Mundial. Decidimos então olhar para este caso e tentar perceber o que nos podia revelar não só do país que era Portugal na altura, mas também do nosso presente.
Como souberam dessas crianças austríacas enviadas no pós-guerra para Portugal, dessa fabulosa micro-história que comenta e ilumina toda a grande história oficial e não-oficial?
Ansgar: Soubemos dessas crianças por causa de uma investigação que fiz há bastantes anos. A temática dessa investigação foram os refugiados judeus em Portugal durante a 2ª Guerra Mundial. Há aqui um facto curioso. Estamos a dar uma entrevista ao Jornal do Fundão, e foi precisamente este jornal que na altura publicou uma série de artigos muito críticos sobre a forma como os refugiados judeus que chegaram à fronteira de Portugal foram tratados. Aliás, esta investigação foi posteriormente publicada em livro e o Jornal do Fundão é citado várias vezes. Por isso para nós é tão relevante mostrar o filme aqui.
Portanto, quando eu estava a fazer esta investigação houve várias pessoas que me falaram das muitas crianças que, diziam elas, tinham vindo da Áustria durante a guerra. Como conhecia bem a documentação dos arquivos portugueses, sabia que esta informação não poderia ser verdadeira. Apenas anos mais tarde percebi que as crianças austríacas não vieram durante, mas sim depois da guerra. A ideia para o filme começou a germinar logo nesta altura.
O vosso trabalho de pesquisa, de atenção e de detalhe é admirável. De facto, o trabalho sobre arquivos é infindável e a vossa paciência preciosa. Não há necessidade de produzir novas imagens se elas já existem com potência inaudita e à espera de serem significantes. Até onde foram nesse desempoeiramento arquivista?
Ansgar: Começámos a nossa investigação em três frentes. Pesquisámos as fontes escritas, como os principais jornais da época, o arquivo Salazar, o arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, entre outros. Nessa altura, o arquivo da Cáritas era ainda praticamente inexistente e fechado à consulta. Mas mais importante do que a documentação foi, de facto, o conjunto de entrevistas com as antigas crianças, hoje adultos e adultas já de uma certa idade. Graças ao apoio da Embaixada Austríaca, e sobretudo ao Ingo Koenig, conseguimos entrar em contacto direto com algumas destas pessoas que nos convidaram para o encontro que fazem anualmente na região de Linz.
Susana: Uma outra frente, absolutamente primordial, foi a pesquisa de imagens. Em arquivos fílmicos, como, por exemplo, o Arquivo Nacional de Imagens em Movimento da Cinemateca, mas também em arquivos fotográficos, como o Século. E, claro, começámos logo a procurar outro tipo de imagens, para além dos arquivos oficiais. Aqui tivemos a sorte de as antigas crianças possuírem ainda uma enorme quantidade de fotografias e, por vezes, até de alguns filmes feitos pelas famílias de acolhimento. Para além disso, fizemos também uma pesquisa em arquivos estrangeiros para obter imagens da época dos acontecimentos, como o arquivo Filmarchiv Austria, mas também em arquivos ingleses, franceses e russos. O principal problema foi, no entanto, encontrar no material de arquivo aqueles indícios que nos permitissem mostrar uma outra história para além da história veiculada pela propaganda do Estado Novo...
Ansgar : ... a de que esta foi uma ação organizada por um país fantástico, governado por um ditador fantástico. Aliás, a profusão de imagens de família que encontrámos tem a ver com o facto de a ação ter sido apoiada por Salazar e de muitas das famílias que acolheram as crianças estarem ligadas ao antigo regime. Eram famílias abastadas, algumas da antiga aristocracia e, claro, tinham os meios à disposição para registarem a estada em Portugal das meninas e meninos austríacos que acolhiam.
E o som, essa narração outra, que é um outro mundo, como lá chegaram?
Ansgar: A criação sonora foi feita pelo Dídio Pestana, que também foi quem gravou a maior parte das entrevistas. Foi um trabalho de estreita colaboração e muito frutuoso. Tínhamos umas ideias, o Dídio foi-nos fazendo várias propostas e, através de um processo de articulação de imagem, som e palavras, chegámos ao resultado final.
E esses choques e harmonias, essas luzes e trevas que não surgem só pelas imagens e pelos sons em si, mas também pelo trabalho aturado da montagem. Quais os vossos princípios?
Susana: A montagem é o momento onde o filme nasce. É através dela que o filme obtém a sua forma final. Posso referir aqui três princípios que são importantes para nós. Um, é manter a autonomia da imagem, ou seja, nunca mostrar uma imagem como mera ilustração de alguma coisa, ou como mero suporte das palavras. Imagem e palavra têm a mesma importância, têm o mesmo estatuto. Muitas vezes, em filmes que abordam aspetos históricos do passado, menoriza-se a imagem. O nosso processo é precisamente o oposto. A imagem revela, a imagem contém informações preciosas dentro dela mesma que não necessitam de palavras para aparecer. Um outro princípio é dar atenção ao que é dito e como é dito e não apenas à vertente informativa que é veiculada pelas palavras. Desta forma, mais do que receber apenas informações, estamos a partilhar uma experiência. Uma experiência pela qual estas crianças passaram, uma experiência que os adultos hoje estão a viver, ao contar-nos estes episódios. E por fim, para nós é muito importante dar espaço ao espectador para pensar no que está a ver e a ouvir. Daí o trabalho preciso que fazemos sobre o tempo das imagens, sobre a forma como montamos os próprios testemunhos.
terça-feira, 16 de janeiro de 2024
FERRARI, de Michael Mann
O fulcral em Ferrari é o embate entre a potência da
velocidade dos bólides e a potência de fixação das câmaras de filmar e da sua
tecnologia acoplada, isto é, do cinema. O corpo a corpo entre duas modernidades
frias, inconciliáveis, autónomas. E que são perfeitas máquinas de produção e de
fixação da morte, da sua transcendência, da sua reverberação, do seu
escrutínio.
Michael Mann, sendo o maior cientista-cineasta americano, utiliza,
num primeiro momento, os seus utensílios primordiais, a câmara, o som e o
desenho dos movimentos diversos no espaço em conjunção com o tempo, para sondar
as correspondências secretas e inquietantes entre Enzo Ferrari e as suas
máquinas automobilísticas. Parece, pois, natural que Mann tenha dedicado anos a
estudar e a desconstruir, a pilotar e a tratar por “tu” os Ferraris.
Assim, muitas vezes, a frontalidade do registo e a gramática cinematográfica são abandonados em favor de uma lateralidade que já é uma narrativa outra, para além da mera biografia, da
mera hagiografia: vemos, entre outros fragmentos passiveis de dissecar, a zona
do pescoço e dos ombros do protagonista, para assim Mann analisar e pôr em
evidência conceitos como a tensão, a pressão, a retração, a respiração, a
entropia, a concentração (do sistema nervoso, do fluxo sanguíneo, etc.), as
veias, os músculos, numa zona essencial e reveladora das ações exteriores no
corpo humano. Por vezes o recurso ao slow motion enfatiza duplamente a
demanda. E, ato contínuo, percebermos a correlação entre a fachada humanamente
construída com a indiferença das máquinas em questão. Estamos constantemente a
comparar Enzo na vida pública, robótico, maquínico, metálico, com Enzo na vida
privada, um vulcão com a sua esposa, um anjo caído com a sua amante. Estamos
constantemente a comparar a morfologia de Enzo com a morfologia das máquinas.
E, num segundo momento, metafísico, mas igualmente direto,
como num grande acidente entre carne e metal, a montagem é essencial: não só
para percebermos todas as motivações dramáticas e históricas – a magnifica
sequência-fusão vulcânica da ópera – mas num mesmo nível para entendermos que
uma escolha como a feita por Enzo comporta todos os tipos de resquícios
funestos: o fantasma da mulher, Laura, as peças queimadas e os interstícios das
carrocerias, as peças e os órgãos mortos pelas máquinas, amigos, filho,
desconhecidos… numa espiral irremediável e interminável… o provisório da vida
com a amante, Lina, o atrito na perceção da máscara utilizada em público e na
recuperação do semblante original.
Ainda, o confronto imagético, sónico e visceral: a câmara de
filmar que muitas das vezes deixa de acompanhar, lado a lado, o objeto
dramático central das corridas, os carros com os pilotos, para ir contra eles,
em contradição de encenação, de mise-en-scène, de inteligências. Aí já é o
cinema, o cinema de Mann, a humanizar-se e a querer competir com o ronco dos
motores supostamente inultrapassáveis, essa fabulosa criação humana, que, relembrou
Mann aquando da primeira vez que vislumbrou um Ferrari, lhe pareceu uma besta,
uma fera, um animal colossal fabricado pelo homem. Homem que se quis Criador,
Deus, tentando ultrapassar as bestas das selvas que nos apareceram no mundo
conhecido.
Mann a ousar que as particularidades estritas do cinema,
esse meio incomensurável que Eisenstein não admitiu que servisse só para contar
histórias, não alcançassem “apenas” as particularidades estritas da velocidade
e das suas leis intrínsecas, mas que se tornasse (o cinema) besta, alma,
selvageria. Uma selvageria precisa, orquestrada, disciplinada, por isso é que
quando Enzo explica ao filho que «tudo o que funciona (flui) na perfeição é
belo», lhe esteja a entregar a mais bela das dádivas, bem mais importante do
que o autografo do ídolo sempre adiado. Essa frase é na mesma medida a síntese
e o epitáfio do trabalho de Mann.
O natural ultra-romantismo final, um pai a apresentar um
filho vivo a um filho morto, no cemitério humanizado de todos os dias, é a
imagem acabada e perfeita deste quebrar de barreiras inquebráveis, deste violar
de leis invioláveis que o homem, enquanto máquina ou besta sedenta, ousa sempre.
Quando se ousa para além dos limites, não existem limites, seja na ciência
perene, seja nos bons modos e costumes. E tanto a Terceira Lei de Newton como a
fatalidade de um corpo esfriado onde o coração deixou de bater podem ser
revertidos.
Ferrari é um monumento ao poder dos Homens, à sua
racionalidade tantas vezes irracional, irrazoável, que os faz avançar. Um
parceiro perfeito, e igualmente da família do sublime calado, discreto, em
filigrana, complexo, do Bobby Deerfield de Sydney Pollack, a quem o
filme também é dedicado.
quarta-feira, 10 de janeiro de 2024
Os Melhores Momentos de 2023
Num dos poemas do livro POESIA, de Daniel Faria, lê-se: Quando eu era uma criança de muletas / Estudei o alicerce de coisas paradas / Observei as coisas que se moviam / No olhar estático das coisas que meditam. Era cirúrgico / Como o homem que opera nas pupilas as artérias do seu próprio / [coração.
Todas as obras que me tocaram em 2023 foram geradas numa
longa paciência, depois de postas de lado, esquecidas, duvidadas, ressurgidas,
esquecidas novamente. Todos os seus autores estudaram o assunto ao milímetro,
ao milésimo de segundo, durantes décadas ou numa noite de décadas. Por isso é
que o Ferrari de Michael Mann, que agora estreia, está justificado, é
majestoso, é único, para lá dos chavões críticos caducos: Adam Driver não é
Enzo Ferrari, é um Enzo Ferrari, não interessam os sotaques, interessa a comunicação
universal do coração, o embate das máquinas só ecoa os embates dos seres-humanos.
Tal como o motor e restantes peças de um desses bólides, tal como o corpo e a
alma (ou o espírito, ou a mente) de um humano, há o sublime e há o seu
contrário, há o universal, o corrupto, a cedência lamentável, combinados com o
único e com o indivisível.
Erice morreu mil vezes antes desta sua (para já!) última
obra total, morreu nela e com ela, e chegou a tempo de cegar e de abrir os
olhos a quem ainda acredita, seja em luz ou em amor. Raul Domingues voltou
durante anos a fio, por períodos definidos, à sua terapia pela terra, com a
terra e com os seus, e a terra e os seus acabaram por lhe devolver,
transcendido ainda, o seu labor em consonância com os ciclos, com o universo,
com a natureza. Khalik Allah ou Eduardo Coutinho, que parecem mais apressados,
só lá chegam, ao íntimo dos seus semelhantes, porque ainda conservam dentro de
si leites maternos e curiosidades infinitas, a alimentação primeira e a atenção
pela distância e pelo toque.
FILMES:
– Saint Omer, de Alice Diop
Tudo faz parte de tudo. Jamais o que é posto em movimento
poderá ser apagado. Em último e primeiro caso nem se trata de redenção, mas sim
de natureza. A natureza omnívora. Que nos escapa. Que não é aquilo que julgamos
que é. Diop concentra tudo, natureza humana e cósmica, nos tribunais terrestres
e nos enlevos espirituais, e cada um tirará a sua soma. Com Diop há perdão e
razões para todos.
- Terra que marca, de Raul Domingues
F. W. Murnau e D. W. Griffith. O cúmulo de concreto, o
cúmulo de fantástico. Meter em escala monumental homens ou folhas. Colher o
amado e revelar a ameaça. Com 35 mm ou Mini-Dv, a questão é sempre a mesma. O
fogo central que tudo anima ou pode animar. A plenitude ou a ambiguidade. Mas
em fogo. O objetivo é fazer ver, diria Griffith. O objetivo é fazer sentir,
diria Murnau. Em ambos, as chamas da lucidez e da paixão.
- Fechar os Olhos, de Víctor Erice
Jorge Luis Borges e Howard Hawks em acordo perfeito. O
máximo labiríntico e o máximo frontal escavam um mesmo caminho penoso,
escalavrado, demencial e sonhador rumo às concavidades da nossa escuridão e da
nossa solidão lacustre, eterna.
- Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese
Griffith.
King Vidor. John Ford. Sam Peckimpah. Michael Cimino. Quem acompanhou
esta via, a via do nascimento dos Estados Unidos, da violência, da contradição
e da ambiguidade ontológicas, sabe que todas as monstruosidades, excessos, overacting,
subtilezas, etc., que Scorsese poe em marcha, são a matemática exata da experiência
do caos americano. Abraham Lincoln a falar com Trump... visões infernais.
- O Rapaz e a Garça, de Hayao Miyazaki + Fairytale
- Sombras do Velho Mundo, de Aleksandr Sokurov
A tradição do pesadelo e o pesadelo da tradição. Miyazaki
revolve tudo e maravilha tudo. Sokurov destrói tudo e reinicia tudo. Novos e
velhos mundos em luzes proféticas.
(RE) DESCOBERTAS:
– Yakuza no
hakaba: Kuchinashi no hana, de Kinji Fukasaku, 1976
O lirismo é sempre uma reportagem, uma radiografia, uma
ciência, do calor e da tensão do presente do homem em relação ao meio
impassível.
- Nippon-koku Furuyashiki-mura, de Shinsuke Ogawa,
1984
O cuidado com o nascimento do arroz e o cuidado com quem viu
o horror absolutos merecem o mesmo tempo, todo o tempo, e a mesma dedicação,
toda a dedicação. E cuidado. Uma e outra coisa são dependentes. Sublime
conexão.
- Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho, 2000
A potência da disponibilidade de almas, da aproximação de
almas, do encontro de almas. As relações acontecem pela disponibilidade. O
cinema acontece pela disponibilidade. A verborreia da alma e o silêncio da
verborreia. A arte mais aparentemente simples é a que mais exige. Leve como uma
pluma. Constantemente alerta. Até à exaustão.
LIVROS:
– A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, 1919
A odisseia da pobreza e da corrupção humanas desembocam no
pegar ao colo um novo bebé, sempre um novo bebé, uma nova luta, uma nova luz. O
milagre constantemente prometido.
- Horácio. Poesia Completa, tradução de Frederico
Lourenço, 2023
Sem comentários apropriados. Uma promessa.
- POESIA, Daniel Faria, 2012
As palavras, o silêncio, a poesia, no tempo anterior à nossa
vinda; nascidas muito antes de chegarmos; antes de termos compreendido.
DISCOS:
- ENTER
THE WU-TANG (36 CHAMBERS) 30TH ANNIVERSARY (COLORED LP W/OBI)
E foi há trinta anos que uma nova humanidade autóctone
cruzou e fundiu hemisférios e continentes e oceanos e céus e espiritualidades e
categorias para acordar uma nova sonoridade arrancada aos silêncios de todos os
desprezados de todos os tugúrios.
EVENTOS:
– STREET OPERA exposição de Khalik Allah, Galeria
Imago / LEFFEST 2023
segunda-feira, 4 de dezembro de 2023
Horas e horas de aventuras na pequena caixa…
Hours and Hours – os filmes para televisão dos grandes mestres de Hollywood é um ciclo fundamental que a Cinemateca Portuguesa levará a cabo de 2 a 30 de dezembro próximos. Fundamental, sem dúvidas, pois permitirá percebermos o que foi outrora a produção televisiva americana, em comparação com os serviços online de streaming que hoje proliferam. Na “idade de ouro” do cinema americano – «Horas e horas de drama», escreveu o crítico Bill Krohn sobre a oferta televisiva que era disponibilizada pela televisão americana a partir de meados dos anos 50 –, grandes cineastas trabalharam para a televisão e, nesse contexto de produção, deixaram o seu cunho pessoalíssimo. Em muitos casos, rejuvenescendo mesmo o seu trabalho. Tudo isto ocorreu num período que foi praticamente até aos anos 70, apanhando a geração da Nova Hollywood.
Andy Rector, programador
americano a viver em Portugal, concebeu com a Cinemateca este longo ciclo, que
permitirá ao cinéfilo mais dedicado descobrir zonas menos iluminadas tanto da
carreira de grandes cineastas consensuais – John Ford, Samuel Fuller ou Orson
Welles – como de impagáveis tarefeiros da série-b – Phil Karlson, Stuart
Heisler ou Joseph H. Lewis – que encontraram no formato televisivo os meios e a
economia ideal de trabalho. “Tarefeiros” que tiveram assim oportunidade de
orquestrar uma reviravolta nas suas carreiras, levando a um vasto público
obsessões pessoais e grandes ideias temáticas e formais que poucos ainda
conheciam. Andy ainda não tinha nascido quando este segundo período dourado foi
possível, e começa por explicar a sua relação pessoal com estes telefilmes:
“Foram realizados e transmitidos principalmente entre 1954 e 1964. Não era o
género de coisas que fossem revisitadas e repetidas pela TV nos anos 80 e 90,
quando eu era criança. Com a exceção da série The Twilight Zone, que era exibida todos os anos numa maratona
televisiva, todo o dia e toda a noite, na véspera de Ano Novo. Tenho a certeza
de que nunca vi o episódio realizado por Jacques Tourneur, chamado Night Cal (1964, exibido no ciclo), mas
vi As Máscaras (1964, também no
ciclo), de Ida Lupino. Um episódio muito famoso. Para um adolescente americano
do final dos anos 80, era um padrão cultural sentir-se superior e ridicularizar
os filmes ou a TV dos anos 60 ou anteriores.”
Em comparação com a produção
televisiva dos dias de hoje, seja em canal aberto, seja nos serviços streaming, a ausência de personalidade
atual chega a ser chocante. Ao explorarmos os catálogos da maior parte das
operadoras, deparamos com padrões normativos que retiram a possibilidade de
exploração de novas formas e ideias. Contam-se pelos dedos de uma mão os cineastas
importantes que conseguem continuar livremente a experimentar nos serviços
pré-pagos. David Fincher, Martin Scorsese ou Michael Mann são cineastas
importantes que estão a fazer trabalhos com cunho pessoal num novo meio que
privilegia os conteúdos e os temas contemporâneos em detrimento das marcas
autorais. Não serão os únicos, mas, como veremos na Cinemateca, a abundância
pretérita é incomparável. Continuando com Lupino, uma realizadora pioneira no
contexto americano, Andy prossegue: “Quando vi a piada grotesca que está no
centro de As Máscaras, ri com
escárnio. Mais tarde, ao ver os filmes angustiantes de Lupino dos anos 50, e ao
ler sobre ela, não ri: percebi que As
Máscaras é um trabalho sério de Lupino, e podemos tentar mostrá-lo como
tal. Os seus filmes costumam ser sobre pessoas imutáveis forçadas a viver
vidas predestinadas, e esse telefilme tem que ver com isso... No seu trabalho,
Lupino parecia não ser capaz de se conciliar com a vida e a sociedade do seu
tempo.”
É fácil perceber que, na altura
da produção e exibição destes telefilmes, o autorismo e, em alguns casos, a
experimentação e pesquisa formal não foram entendidos por todos. Foi também um
dos segredos desses realizadores talentosos e inteligentes, uma das lições
essenciais dos clássicos: não chamar a atenção para o seu estilo e para os seus
interesses persistentes, daí as elipses narrativas e a concisão formal terem
atingido nesse período um dos seus apogeus. Veremos neste ciclo cineastas e
personalidades muito diferentes, modos de narrar diversos, trabalhos feitos
puramente em estúdio e westerns
filmados em campo aberto. The Brush Roper
(1955), realizado por Heisler para a série Screen
Directors Playhouse, oferece ao eterno secundário Walter Brennan um dos
seus melhores papéis, absolutamente nostálgico e sedento. A ternura de Frank
Borzage, com a câmara sempre perto do leito amoroso, junto das almofadas e dos
afetos, está intacta em A Ticket For
Thaddeus (1956). Orson Welles e a reportagem feérica, num inclassificável
tratado sobre o verdadeiro e o falso, antes de F for Fake, em The Basque
Country (1955), nunca exibido pela TV americana. Em The Honest Man (1956), Frank Tashlin urde uma série de peripécias descabeladas em torno de joias, a
honestidade e o poder da sedução, continuação intacta do seu interesse pela
dicotomia teatro/cinema e das respetivas distâncias e efeitos. A descida aos
infernos pela mão segura e frontal de Allan Dwan em High Air (1956), aquando da construção dos túneis para o metro de
Nova Iorque. Os eternos falsos culpados de Hitchcock e uma pedagogia final
desarmante em Bang! You’re Dead
(1961), para a sua famosíssima série Alfred
Hitchcock Presents. Enfim, outra preciosidade rara é Flashing Spikes (1962), de Ford, que perfaz a moral e o jogo de flashbacks de O Homem que Matou Liberty Valance.
Mesmo na altura em que os Cahiers du Cinéma inventaram a famosa
“teoria dos autores”, apelidando os artesãos clássicos de verdadeiros
originais, estes trabalhos continuaram a ser de difícil acesso fora do seu país
de origem. Daí que o espanto de Andy aquando da descoberta destes tesouros
enterrados seja potencialmente equiparável à que muitos espectadores poderão
ter quando descobrirem que, em menos de meia hora, surpresas incontáveis
estarão à sua espera: “Há cerca de 20 anos, o meu mentor e amigo Bill Krohn
pôs-me nas mãos uma VHS de Night Call e
disse-me: «Há muito mais de onde isso veio…» Disse ainda que não devíamos ser
preconceituosos com esses trabalhos para a TV, pois os grandes cineastas nunca
os trataram como enteados do cinema. Eles tratavam a TV como uma continuação do
seu cinema, com o mesmo nível de mestria e determinação, muitas vezes com os
mesmos colaboradores.” John Ford, a bíblia do cinema americano, foi sintomático
e lacónico sobre essa velha contenda, conta-nos: “Ford foi muito prático a respeito
da televisão. Abordou a questão como um homem livre, dizendo: «Há uma mão que
nos puxa para a produção de filmes bons, mas baratos, para a TV, e outra que
tenta fazer filmes de qualidade para cinema.» (...) «...sejamos realistas, The Rising Of The Moon foi filmado de
tal modo que podia ser usado como três histórias para TV. Nas longas-metragens,
a duração de uma imagem depende da história. Encontremos as histórias certas
para fazer, e depois decida-se a sua escala e potencial de mercado!»”
Por isso, outra das premissas
importantes deste ciclo é que cada bloco – alguns cineastas, como Jerry Lewis
ou Karlson, só terão direito a uma obra para TV – tecerá rimas e diálogos com
uma longa-metragem do mesmo autor. O que é bastante significativo, complexificando
e rasgando horizontes. Se pensarmos que
Hitchcock realizou Psico com a mesma equipa da sua série
televisiva e que levou a técnica multi-câmaras para o centro da sua mise-en-scène, aprofundando substância e
abismo, conclui-se que o seu cinema ficou a ganhar. O que parece o caso inverso
ao de Samuel Fuller. Na sinopse sobre Dogface
(1959), para o programa da Cinemateca, Andy escreve: “Dogface, produzido independentemente por Fuller como piloto para a
CBS, é uma obra plenamente Fulleriana:
a necessidade irrequieta de representar a sua versão da Segunda Guerra Mundial,
os duelos de acesos diálogos, os grandes-planos carregados com o pó e o suor
dos bombardeamentos, o uso de animais alegorizando a inocência e o
condicionamento, as minúcias de como as guerras são travadas e justificadas
pelos homens que as vivem. Dogface
foi rejeitado pela CBS. Fuller preferia o cinema: «O que descobri com a minha
incursão na televisão foi o quanto gostava de fazer filmes. Estava habituado a
ver as minhas personagens num grande ecrã.»” O que não impede que Dogface seja uma das obras máximas de
Fuller, com a mesma carga demencial das suas obras para cinema e uma
antecipação do polémico e cada vez mais urgente Cão Branco, alegoria terminal sobre o racismo e a inocência.
O critério das escolhas foi
plenamente sopesado e pensado, mesmo com a condicionante de não existirem boas
cópias de muitos telefilmes: “Eu diria que o critério foi escolher obras em que
o realizador esteve de alguma forma em harmonia com o seu material, tendo feito
um trabalho forte. Tive ainda em conta os seus prazeres e ressonâncias… dentro
e fora do cinema.” Claro que as escolhas de um programador são também pessoais,
e, assim, Andy reservou-se o direito de “proteger” alguns dos seus cineastas
prediletos: “Borzage fez apenas três episódios de TV; um deles, ambientado
durante a Guerra da Coreia, não tem o coração no lugar certo. Por isso, não o
vamos mostrar. Já os outros dois, The Day
I Met Caruso (1956) e A Ticket For
Thaddeus, são obras elevadas, intensas, maravilhosas.” E, importantíssimo,
a sempre preciosa missão de resgatar realizadores maravilhosos ainda não vistos
como tal: “A inclusão de Heisler, Karlson e Joseph H. Lewis no ciclo é uma
espécie de provocação, uma insistência minha na sua inclusão no cânone. Mas
isso é completamente incontroverso se observarmos o trabalho deles; são
cineastas inegavelmente significativos e distintos, até mesmo clássicos, e os
seus trabalhos para a TV são ricos.”
Andy não destaca nenhum filme em
particular, preferindo encarar o ciclo como um todo comunicante, resguardando
todas as declinações possíveis para cada realizador, todos os seus enigmas,
todas a portas de entrada, de saída e os corredores formais e narrativos entre
o pequeno e o grande ecrã. Daí a pertinência do ciclo: “Todos estes filmes são
joias imperdíveis. Há simples prazeres, mas também há coisas para aprender.
Todos somados, constituem uma montanha irrefutável de histórias. E não apenas
histórias, mas formas dinâmicas e artesanato dedicado. É importante ver estes
filmes hoje. São o oposto do alheamento narrativo atual. São incrivelmente
condensados, a antítese do carácter excessivamente longo, disperso,
monocromático e repetitivo das séries de TV e do cinema contemporâneos
(Netflix, etc.). Como todas as retrospetivas, é uma missão de resgate do que
foi perdido, esquecido ou roubado das nossas sensibilidades atuais.” É neste
ponto da conversa que o seu amor por Jerry Lewis se torna contagiante, falando animadamente
dos famosos shows de 24h produzidos e
supervisionados por Lewis, filantropia em estado puro, onde estranhos
convidados, provocações inauditas e interrupções súbitas fizeram Andy concluir
que Lewis “foi o Glauber Rocha da TV americana!”
Montar um ciclo deste género é
também uma aventura cinematográfica e detectivesca, e arranjar os filmes e as
cópias certas, localizá-los, prescindir de uns em favor de outros, pode demorar
longos meses. A deceção pode tomar conta da empreitada, a tarefa de trazer ao
de cima mundos inteiros, de descobrir ou redescobrir universos soterrados pode
ser penosa. Um trabalho que tem tanto de arqueologia como de resignação.
Arqueologia no sentido quase literal de desenterrar película ou vídeo.
Resignação pois algures no caminho se percebe que alguns filmes estão
irremediavelmente perdidos, enquanto outros poderão ser recuperados:
“Infelizmente, a disponibilidade destes telefilmes acabou por desempenhar um
papel muito importante nas escolhas. Cheguei a incluir na lista o episódio de The Lawman realizado por Heisler,
chamado Yawkey – um dos westerns mais compactos e económicos que
já vi –, mas a cópia em vídeo não era projetável.” Mas o impensável surgiu via eBay, quando mais filmes importantes
pareciam prestes a serem riscados: “A certa altura, planeei mostrar seis
episódios de Joseph H. Lewis. Um grande mestre dos movimentos de câmara, do
preto-e-branco e das filmagens em estúdio para cinema, e isso foi totalmente
evidenciado na TV. Uma espécie de Murnau da TV. A dado momento, parecia que eu
e a Cinemateca não conseguíamos encontrar uma única cópia boa para exibição.
Estava prestes a eliminá-lo completamente da lista. Depois, pensei: devia dar
uma última vista de olhos no eBay.
Estavam todos lá, em cópias de 16 mm, vendidos por alguém que disse serem da
coleção particular de Johnny Crawford. Johnny Crawford é o pequeno ator dessas
séries!”
O que faltou, o que foi
impossível exibir, e, em muitos casos, essa impossibilidade teve para Andy a
dor de uma unha arrancada, é tão importante como o que iremos ver. Podemos
mesmo arriscar que o ciclo constitui um ensaio para uma segunda parte, ainda maior,
que virá um dia. Com toda esta aturada pesquisa, Andy conseguiu mexer e limpar
um pouco do pó dos arquivos, muitos deles mortos, desprezados e ignorados.
Assim, terá renascido o interesse por estes pequenos-grandes filmes: “Ao fazer
este ciclo, encontrei algumas pessoas nos arquivos que estão interessadas. Mas
não estão no poder. São uma minoria. Este trabalho de recuperação não está na
moda. Em Los Angeles, a preservação do cinema clássico e mudo está a ser
completamente abandonada (é uma das razões pelas quais vim para Portugal; há
mais respeito, mais trabalho em torno da História do Cinema). Para levar a cabo
restauros deste género, seria necessária a colaboração de muitas instituições,
arquivos e museus de cinema.”
Durante o mês de dezembro, na
Cinemateca, Joseh H. Lewis terá a mesma altura de John Ford, os grandes e os
pequenos mestres serão tratados com a mesma acuidade, e o trabalho para
televisão irromperá como um Paraíso Perdido onde todas as possibilidades estiveram
em aberto. O pequeno formato será projetado nas telas dos grandes formatos, com
toda a importância política e, portanto, estética que tal gesto comporta. Um
acontecimento, repetimos.
José Oliveira, novembro de 2023
Versão ampliada de uma peça publicada no suplemento ípsilon do jornal Público a 1/12/2023: https://www.publico.pt/2023/11/30/culturaipsilon/noticia/acontecimento-cinemateca-filmes-televisao-mestres-hollywood-2071664
Khalik Allah, no turbilhão das imagens; notas insuficientes para um universo de pureza complexa.
Khalik Allah consegue arrancar ao
real (pessoas e mundo, pessoas no seu mundo) o cinema e as memórias mais
eletrificantes do presente. Tudo irrompe fantasmagoria, desconexão, mas tudo é
presença absoluta. Eletrificante mas
igualmente o cinema mais terno, o retrato mais belo possível, numa troca justa,
de mãos vazias, por necessidade, questão existencial. Black Mother será
exibido pelo Cineclube Gardunha no dia 14 deste mês de outubro, no ciclo Janela
Para o Mundo e apropriadamente no Centro para as Migrações do Fundão.
Nascido em plenos anos oitenta do
século passado, nova-iorquino, assume o hip-hop como fonte primordial de
inspiração e de modo de fazer, essa forma violenta e pulsante de representação
propensa ao improviso e à irmandade, aproximando-se também do jazz, seu irmão.
Usar a câmara de filmar, de registar, como um instrumento, muitas vezes de
improviso, musical, como John Coltrane, disse KA um dia; ir além da forma,
mergulhar diretamente no conteúdo, disse também, e aí estamos na brutalidade e na
novidade que trouxe o hip-hop. De mãe jamaicana e pai iraniano, autodidata e
diletante, criado na dissociação The Five-Percent Nation, que é central
no seu percurso e que o mesmo KA definiu assim, belamente, deste modo: «The
Five-Percent Nation nasceu de pessoas que foram delinquentes de rua,
crianças com idades entre oito e 16 anos. Agora, muitos desses irmãos são mais
velhos, nós chamamo-los de “deuses mais velhos”. Para os Five-Percenters,
Harlem é Meca e Brooklyn é Medina. Basicamente, a The Five-Percent Nation
começou quando Clarence Smith, ou Clarence 13X, estava na Nação do Islão sob a
liderança de Malcolm X. Decidiu deixar o templo e começou a ensinar que o homem
negro é deus. E levou isso para as ruas. Chamou-lhe “sabedoria suprema”, com
essas 120 lições, que tu memorizas e aprendes a citar. Deu essa sabedoria às
crianças que eram membros de gangues, e isso realmente ajudou a dar orientação a
esses jovens. A escola destrói o apetite das pessoas pelo conhecimento. Tu não
queres ler nada depois de leres esses livros que eles te deram. Tu ficas tipo,
"Foda-se o livro", mas depois de seres estimulado, tu pensas, “Uau, a
educação é realmente altamente, é altamente ler”. Foi isso que a The
Five-Percent Nation fez por mim.»
Muito naturalmente foi POPA WU
A 5% STORY a sua primeira experiência de fôlego em cinema, um documentário
e uma aventura na mente de Popa Wu, um membro predominante da Five-Percent
Nation e patriarca dos Wu-Tang Clan, o grupo de rap mais imbuído desse
espírito. Documentário constituído por cabeças e corpos falantes e por imagens
de arquivo foi, segundo Allah, gratificante de fazer pelo significado, pois
conseguiu trabalhar com os seus Deuses, mas também desgastante, pelo tempo e
pelas complicações de quem ainda é aprendiz de um ofício que não domina, mas
que tem necessidade de se lançar a uma empresa épica. E de dentro dessas
imagens e desse espírito recebeu como que um chamamento da realidade. Da sua
realidade. Da sua pertença. Dos anos oitenta e do poder sedutor e genuíno das
ruas. Da realidade vociferada pelos Wu-Tang ou pelo seu outro Deus, Nas - «One
love, like Nas», afirmou rotundamente certo dia. One love define
todo o seu trabalho até hoje, a procura do conhecimento, da sabedoria suprema,
a fotografia e o cinema como um meio (medium, uma máquina
incomensurável) irmão na captura da realidade e logo da sua elevação
espiritual. A consciência de que tudo está ligado com tudo e todas as coisas
são comunicantes. KA, que descobriu a fotografia pois um dia teve necessidade
de oferecer um retrato a um membro dos Wu-Tang, GZA, vai unir essa técnica
primordial com a sua posterior evolução pelo movimento (cinético, apenas se
quisermos), ou seja, o cinema, e conceber, de um modo único e primeiro, que tudo é uma e a mesma coisa. Todas as suas
fotografias serão como filmes, com carradas de luz, movimento abissal e
narrativas camaleónicas, e todos os seus filmes serão fotografias, carregados
de retratos, memórias e atmosferas espectrais. Pode ser que à imagem dos
fractais tudo seja uno e infinito por dentro e por fora do seu próprio
mistério. Cada filme é a continuação do anterior, continua a dizer KA; se na
sua disciplina de fotógrafo a exposição à luz se faz contínua, incessante,
relacionada, a uma exposição sucede-se a seguinte até ao fim do rolo, igualmente
no cinema um plano sucede ao outro e tem que falar com ele, etc… One love. Fotografia
filmada? Fotografia filmada com som direto indireto? Importa captar
esses príncipes e princesas, reis e rainhas, sem julgamentos, seja com que meio
for, à luz justa e protetora. Acima de tudo importa captar. É o princípio
básico e limite de Picasso, quando afirmou que mesmo preso continuaria a
pintar, nem que fosse com merda a servir de tinta.
Field Niggas, um filme-memorial
de 2015, estabelece, juntamente com Souls Against the Concrete, o livro
de fotografias lançado em 2017, o apanhado das milhões de constelações com que
ele interagiu entre a 125th Street e a Lexington Avenue, em Harlem, o seu
espaço sacro. Documentário, ficção, fotografia, tanto Field como Souls
o são, assim como as plangentes curtas-metragens anteriores – como Antonyms
of Beauty ou Urban Rashomon – ou os retratos avulsos de um
auto-considerado street photographer. Field será sempre
relembrado, e revivido na memória, em grandes-planos, grandíssimos planos de
rostos e de corpos inolvidáveis. É sintomático que muitas fotografias, que
serão base para Souls, passem de mãos em mãos em Field, sendo Field
e Souls uma e a mesma coisa. Todos estes filmes citados e outros, como
aquela que considero a sua obra-total, Black Mother, de 2018, estão
carregados de efeitos técnicos e de efeitos de retórica, como câmaras lentas,
as pontas dos planos com fogo, as cores carregadas, etc. E o som, jamais sendo
direto e batendo (sincronizando) com a imagem e com o ser-humano falante,
é o mais direto dos sons que hoje em dia existe e também o mais íntimo, pois
sendo abstrato e único, é o som de quem fala e ao mesmo tempo o som dos
milhares de seres análogos aos que vemos, o som finalmente coletivo. É o sonho
de Serguei Eisenstein e depois de Godard levado a um extremo prático redentor,
da arte do cinema como arte privada e universal no mesmo fôlego, da arte de
enfrentar o real e de o transcender. É KA que opera a sua pequena câmara,
focando-se nas prostitutas, nos desistentes ou na família longínqua com
todo o coração – e aqui a maneira terna e subtil como conversa aproxima-se do
brasileiro Eduardo Coutinho, que tal como Liev Tolstói arranja sempre perdão
para toda a gente, amando os policias como os ladrões – importando primeiro o
seu corpo, as suas expressões marcadas e o infinitesimal, os seus movimentos, o
seu real concreto; e depois vai gravar as palavras noutro lado, sem ser
importante o sincronismo; e o verbo, liberto da redundância e das amarras da
indústria do cinema, torna-se espírito, alma, fantasma.
Uma nova resolução das imagens,
que incluem o som – resolução inaudita que nada tem que ver com a tecnologia
utilizada, pois nem falamos de ultra HD (4k…6k…), mas sim de 1080 básicos;
uma revolução, um vislumbre e uma epifania em desenvolvimento, a acontecer
diante dos olhos num milagre bem concreto. Tal experiência só me tinha sido dada
a ver, no mundo digital, no Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa; as peles
escuras, branquíssimas ou de tons indefiníveis dos protagonistas, os olhos
gigantescos como crateras ou cegantes como estrelas, misturam-se com os néones e
as diversas luzes da cidade, e tanta coisa de tanta composição apartada e de
matérias opostas fundem-se ou comunicam-se profundamente, concorrendo para um
mistério que só pode ser a base daquilo a que se chama experiência estética; e
tal só é possível pois o cineasta acredita, faz de coração, de alma, algo que o
exercício da análise não pode concluir. Poesia, agora sim, justificada; é a
essa liberdade e ao mesmo tempo a essa complexidade que KA e Pedro Costa
chegam; toda a primeira imagem, como toda a primeira aparência, é inundada por
contrários, complementos, dialéticas, contradições; entenda-se poesia tanto
como filiação a uma escritura como à pura pincelada plástica, logo
metamorfoseando-se e atingindo as especificidades e as potências únicas do
cinema, isto é, a sua poética mesma. Os filmes de KA são um embate
violentíssimo com o concreto – tal como um Biggie Smalls enfrentou o seu puro
presente e a sua tensão – e um enlevo de almas – o fluxo interior a brotar
carradas de tons melódicos e de vísceras que só assim são descarregadas porque
outra alma permitiu a revelação, longe da pressão cinematográfica regrada. Fotografias,
de cada um em frente à câmara, e filme, movimento e som; ou som e movimento da
memória, da alma, pura arte do retrato, e o cinematógrafo como incomensurável
meio de fixar.
Black Mother é, segundo
KA, partido em três trimestres, mais o nascimento, o que dá quatro partes –
nove meses mais o nascimento. O primeiro trimestre funciona como uma
introdução, pura etnografia afetuosa, retratos de fruta, de cocos, pessoas na
rua, rituais… o segundo trimestre começa a descer sem apelo nem agravo, a cavar
fundo, e surge o colonialismo, ódio encravado, clareamento da pele… no terceiro
tudo se volve mais espiritual, com o funeral e os seus ritos cifrados… e
depois, o nascimento. KA encontra na Jamaica um círculo de movimentação mais
amplo, que serve eternos-retornos e concisões estratosféricas, explosivas,
secretas, nunca dispersando ou, quando isso acontece, tudo logo conflui para a
água, o Deus presente nesta obra ou nesta oração silenciosa que se volve
absoluta. Uma oração por todos. E todos os formatos e diversos maquinismos são
válidos, HD, super HD, película 16mm, HI-8 ultra caseiro, drones,
estabilizadores… fotografia, cinematógrafo, e o que fica, a cada frame e no
final, é um êxtase e um enlevo espiritual, One Love, como nos famosos
versos de Nas, a aproximação justa, o reconhecimento mútuo, perfeito, aos seres
e às coisas, visível e opaco. No final de Black Mother, entre o terceiro
trimestre e o Nascimento, KA desliza do funeral para a barriga da grávida e
depois do bebé nascido para uma capela, um movimento e um congelamento, um
retrato, que abrange, silenciosa, indizível e delicadamente, o cósmico
movimento da condição humana. Todos os trimestres e períodos mesclados. O
pequeno e o grande, o estanque e o sónico, em convulsão e em silêncio.
José Oliveira, outubro de 2023