quinta-feira, 23 de dezembro de 2010




os céus de "Seventh Heaven"

as névoas de "Street Angel"

as águas de "The River"

as neves de "Lucky Star"


a arte de Frank Borzage, impronunciável. inocente. erótica. mística. espectral. perigosa tão perigosa.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010



“Les perles de la couronne”. Sacha Guitry. 1937. Olhei para a data, já depois da grande projecção na cinemateca e foi quase um baque. Mas dos fortes. De um só vez a confirmação da fraude dos grandes livros sobre história do cinema, dos grandes historiadores e das grandes listas. Das escolas ditas de cinema, cursos, cinefilia. Tudo e muito mais. Constatação que tal história é imensamente mal contada, perpetuada, acolhedora. Põe-se a obra de Guitry ao lado dos Mizoguchi da época, do “Citizen Kane” ou de “La règle du jeu” e não me venham falar de diferenças formais, profundidades de campo, magias por trucagens, ilusões quaisquer, ambiências fora-do-mundo, ritmos ou tonalidades.


Sem antes ou depois.

“Les perles de la couronne” é uma imensa peça sinfónica, polifónica, só aparentemente fragmentada e de mil remissões e correspondências internas e sussurradas – Tarantino ou Altman ou P. T. Anderson chegaram tarde muito tarde e os tais compêndios falam em revolução, coisa triste... - aventureira por mares, castelos de réis rainhas réis príncipes e princesas, naus, espadas, capas, mundos exóticos e esotéricos. Venenos. Idas ao fim do mundo e regressos pasmosos e heróicos. Mulheres belas, mulheres perigosas, mulheres audazes, também doces. Erotismo flor da pele. Crianças ambiciosas tramadas, de olho aberto, donas delas, imperiais.

Um corropio ou uma dança tão pasmosa que atinge o infernal e o imparável. Vórtice ou vertigem.

É também uma tragédia, porventura um grandíssima tragédia numa dissimulada leveza. Famílias dizimadas à nascença da criança que não sobrevive. Sucessões corrompidas. Cardeais orquestradores de interesses e do mal. Crimes fora de campo, crimes no centro do quadro. O tempo que corre corre corre, distende-se, destrói, torna cinzas, executa esquecimentos, irrompe abstracção e favorece lendas, apropriações.

Tudo porquê? Por umas supostas valiosas pedras pérolas de uma coroa que a muitos vão despertar interesse, obsessão, até indiferença ignorância, estabelecer hierarquias, preferências, estatutos, pôr tudo em cheque e em abalo. Pedras da perdição.

De mãos em mãos, de geração em geração, de continente a continente, do mais rico lugar da terra para as profundezas insondáveis e originais dos fundos das águas.

E Guitry a pôr tudo isto em cena é de uma mestria visual e efabulatória tal, de um rigor e ao mesmo tempo de uma vontade e concretização de mundos e ambiências a que se poderiam chamar “fantásticas” ou surreais, terríveis de um certo modo fundo. “Fantásticas”, surreais, atmosféricas, aereadas, tanto como os nevoeiros ou os deslizamentos da câmara que do teatro voa para o mais puro êxtase das possibilidades primitivas, escondidas, virgens do cinematógrafo. É alguém a olhar pela primeira vez fascinado, qual criança mesmo que perversa, excitada e consciente, com ideias e a tudo aberto. Lembro-me de um plano maravilhoso, uma sequência, seguido pelos próximos: uma nau a chegar ao cais, tanto nevoeiro entre os céus o meio envolvente aquelas águas que tantos segredos de certeza guardam. Assim, todas as forças, todas as linhas, todo o palpável, concreto visível, ali num todo, densissimo e suavíssimo, como só os grandes estetas ou os grandes poetas – sim, o Orson Welles de “The Magnificent Ambersons” vem imediatamente à memória, neve névoa opacidades – assim nos mostram e nos arrepiam. Grandíssimo universo dentro do desmesurado universo onde tudo se passa. Depois um certo desfile de crianças e adultos também, tudo composto e belo e terno e forte como aquele que John Ford filmou em “The Horse Soldiers". Fixamentos e deslizamentos onde os termos, travellings ou panorâmicas ou o que quer que seja, adquirem o sentido de inutilidade. Sempre a poesia, a ontologia, a limpeza, as convicções. Medida própria.

Ao mesmo tempo é milagrosamente absurdo ou como se costuma dizer inverossímil. Tal como o exemplo máximo de toda a parte final – nem é preciso falar das pedras que se acham, passam, se perdem... acham – os três homens que contavam re-contavam a verdade ou o mito ou tudo misturado e desfasado. Encontram-se num tempo e num espaço de maneira impossível, casual, mesmos objectivos, fazem-se cúmplices e cada um acha uma das partes da tal coroa dita jóia. Leilões, armadilhas, esperas silenciosas, trinta por uma linha. Acaba-se sobre um grande barco, dissimulação amorosa, sedução, destruição retorno da fonte trágica. Bocas abertas.

Epopeia, delirante fervilhante epopeia. Prazer de mostrar contar sugerir tapar destapar iluminar escurecer. Tudo atravessado por uma ambiguidade feita negrume. Espelhos sobre espelhos partidos por espelhos. Cortante. Tudo em causa.

Guitry, artista maior.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010


Falo de “Way of Gaucho”. Falo num dos cumes da arte de Jacques Tourneur. Western. Aventura. Tragédia. Amor muito amor. Inaceitável não pensar em Diego Maradona nesta ode cântico hino às pampas argentinas, à liberdade e ao fantasioso e feérico. Martin Penalosa, belo nome, chama-se o vivido por Rory Calhoun, homem que chega de longe, anacrónico à sua maneira, incrédulo no que fizeram aos seus irmãos, à sua terra, valores, tradição, à dita liberdade, tudo. Movimento imparável do Gaucho, movimento imparável romântico do filme.

Vem de fora ou do dentro que aniquila e quando pisa as promessas e o mundo da infância e os sonhos já é só mito e utopia. Quimera criminosa para os das leis que torturam e abafam. Todos contra ele e ele a remar contra todos. Há sempre dissidentes, há sempre uma mulher, mulher que por acaso cai nos seus braços como ele caiu nos dela, e toda uma montanha a ultrapassar. “Way of Gaucho” é, como me disse um amigo, um filme de revolução, daqueles em que Langlois poderia ler a vontade de sangue e de mudança nos olhares, nas posturas, num todo vulcânico. Obra falada, obra muda. Todo o saber de Torneur tal como por exemplo em “Canyon Passage”, essa arte perdida de um olhar e de uma paciente construção em que toda a natureza, matéria, mundo, surge sublimada pelo que está em causa nos sentimentos e nas crenças do humano. Inseparável. Vontade e questão inadiável.

Maradona, dizia. Martin Penalosa e restantes crentes. O seu cavalo ziguezagueante e mais leve que qualquer coisa ar, o seu esbracejar, olhar cerrado, lábios como que trincados, tensão da carne, sentimento imparável, fantasioso, as fintas, malabarismos, contorções, maleabilidade, raiva muita raiva, vontade de ultrapassar e de arrebentar com tudo, velocidades estonteantes, olhar místico e profundo e infinito. Elegância, beleza singular das coisas verdadeiras. Dançarino esvoaçante. Nuvem voadora. Super Homem. Revolução, sempre.

Um homem sonha com a plenitude, cosmos absoluto. Opressores sem poder. Vitória ou derrota. Não trair. Olhar em frente.
Nem é preciso evocar “La maman et la putain” (paroxismo, ebulição, terramoto), basta ver os quarenta minutos de “Les Mauvaises fréquentations ” para se perceber e sentir que Jean Eustache era caso completamente aparte do que a Nouvelle Vague (como quer que a entendamos) tinha feito ou andava a fazer. E incluo todos os grandes menos Garrel, um que outro. Também é preciso ter tomates e lucidez. Nada de protecção ou rejubilamento cinéfilo. Nada de erudição a atravessar e a achatar a tela. Zero de aburguesamento de qualquer ordem. Jamais a forma a gritar-se e a vontade iconoclasta a valer simplesmente por si. Sem ruptura por ruptura. E aquela fascinação ou aquela pulsão coisa nova....toda ela está lá, vibrante, cândida, pura, primeira ou última. Inocência dos livres e dos vândalos. Eustache é como esses terríveis poetas, Rimbaud Céline tantos poucos, quer dizer que já aqui algo dói, arde, vêm de dentro, angústia qualquer, mal algum. Lâmina sem Hitchcock Não apenas jouissance ou desconstrução. Eustache queima.

Diferença entre habitar escritórios e viver as ruas. A caneta e a perdição. Muito pensar e abraçar copos. O poder da câmara mas o poder da vida.

Obviamente, muitas excepções. Carax é o outro, que tudo iria depois estilhaçar, arrebentar, tornar pueril, explodir, implodir, escarrar. Lá iremos.

domingo, 12 de dezembro de 2010

"Tenho o mau hábito de não ser pontual, mas eu próprio não supunha chegar tão atrasado. Peço desculpa e agradeço a vossa paciência, sobretudo aos actores e aos técnicos que trabalharam no filme e esperaram por ele durante estes 12 anos.


Muita coisa se passou no Mundo. E no cinema também. Por isso o filme possa parecer anacrónico. Mas para mim sempre foi importante vê-lo acabado e finalmente poder ser visto. Aqui está, tal como foi possível.

Poderia escrever muita coisa sobre todo o processo, mas melhor ou pior, já são coisas conhecidas e hoje, a poucas horas da sua exibição pública, confesso o meu cansaço e não vou escrever muito mais.

Muito obrigado a todos os que acreditaram neste XAVIER - "There was a naughty boy...".

E ficai com um poema, para beber com um whisky. Se possível com 12 anos".


Manuel Mozos



PRÍNCIPE DA AQUITANIA, EN SU TORRE ABOLIDA

Una clara conciencia de lo que ai perdido,

Es lo que le consuela. Se levanta

Cada mañana a fallecer, discurre por estancias

En donde sordamente duele el tiempo

Que se detuvo, la herida mal cerrada.

Dura en ningún lugar este otro mundo,

Y vuelve por la noche en las paradas

Del sueño fatigoso... Reino suyo

Dorado, cuántas veces

Por él pregunta en la mitad del dia,

Con el temor de olvidar algo!

Las horas, largo viaje desabrido.

La historia es un instante preferido,

Un tesoro en imágenes, que él guarda

Para su necesaria consulta con la muerte.

Y el final de la historia es esta pausa.


(Jaime Gil de Biedma)

sábado, 4 de dezembro de 2010



Em Portugal só o Mozos e o Pedro costa são capazes de transformar imbecis em homens.

Também é o génio de Capra, transformar os imbecis em homens. O Mozos e o Costa também hipotecaram a sua casa para “meet John doe”.

É essa coragem que admiro, a coragem da irresponsabilidade. Na teologia mercantil, dominada por cálculos racionais, não há lugar para o reino perigosa da infância. Carax, Borzage, Murnau, Welles, Costa resistem com a irresponsabilidade livre do Mal contra a moral bafienta.

"way of gaucho" é do carax!

MF

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010


Carax. montros. nada menos do que monstros. humanidade. monstruosa.

filmes de carax. filmes de monstros. assombros. vigílias. fantasmas. medos. revelações. claridades. temores. tremores. escuros. trevas. fundos. caves. infernos. verdades. espasmos. explosões. catarses. gritos. libertações. destruições. revoltas. negrumes. arrebatamentos. perdições. dilacerações. vómitos. sangues. tripas. achamentos. quebras. uivos. amores. totais. tudo. tudo. sempre. tudo.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010



O infantário Jacques Doillon juntou-se a nós nos anos 70. Tem vários amores na vida
e gosta muito de crianças. Foi o primeiro a confiar-lhes um grande papel.
O Jacques Doillon faz cinema como Le Nain pinta em tempo de miséria e de farrapos
(ou por educação) tudo isso agrada muito aos estetas.
Mas o que me toca imenso é o facto de ele saber embalar os corações e de ter dado a sua vida à ternura.
Mostrar o sofrimento é muito difícil e é uma técnica, é preciso ter bom fundo e a cabeça no sítio -
é a arte católica pobre as piscadelas de olho à Igreja e as flores de macieira.
Mas é a arte.
O Jacques Doillon anda muito cansado acaba de passar a primeira parte da vida a contruir um segredo e a
guardá-lo cuidadosamente. Como temos todos os cineastas nascidos a meio do século por pouco não perdemos
a vida nisso não vamos perguntar-lhe qual é já não é nada mau que ele exista.
De todos os seus filmes eu prefiro La Femme qui Pleure, lembra-me qualquer coisa. Não é qualquer coisa que
eu saiba fazer, mas qualquer coisa que eu sei compreender; tem qualquer coisa a ver com a ambição e a correcção
de espírito. Eu sou mais de esquerda, mas fico impressionado (quando não estou atrás de uma mesa de montagem ou
de uma câmara, porque aí, é a mesma coisa, têm de ver-me, sou anarquista). Mas eu não vi todos os filmes dele, eu
queria dizer que prefiro esse ao La Drôlesse, apesar de me dar orgulho que um de nós tenha ido a Cannes, por causa
da idade e do segredo de há bocado. Mesmo que venha a ser preciso abandonarmos essa ideia do mundo, a nossa idade
por razões de nascimento e de responsabilidade; aliás ele viu bem isso, o Jacques Doillon, os nossos pequenos
previlégios, mas não acho que ele venha a usar isso contra os operários da nossa idade e contra os pais deles, e
é por isso que eu gosto muito dele ele foi formado na escola da vida. Aliás os artistas não dizem grande coisa aos ricaços
porque se fala de amor e de liberdade na nossa geração. Não temos grande poder aliás a câmara é cara.
Cara câmara de Jacques Doillon.
O cinema Jacques Doillon os ministérios da arte ouve-se uma sonata para crianças escrever sonetos e lágrimas
uma vida de província uma razão maior
(um século de cores e de pastéis escondidos no fundo dos baús uma escada um sotão)
uma adolescente
uma casa um jardim (desenho notável) e personagens que um traço muito fino delimita e faz sucumbir
na razão por aflição;
a coragem de uma criança e de uma jovem mãe;
o choro desta última e a sua tenecidade;
os dias castos e os dias em que se faz amor
o amor, a palavra escapou-se-nos, os filmes de amor...
Um dia estou numa pequena sala de projecção perante o filme mais bem representado da temporada, afino o meu violino,
La Femme qui Pleure; as pessoas à minha volta acham que é demasiado verdadeiro para ser bajulado os caracteres, as
atitudes. Aliás o Jacques Doillon poderia defender os meus filmes como eu hoje defendo os deles.Também não sei por que
outro motivo se não pelo que está relacionado com a moda ou o dinheiro digamos pelos sentimentos, para falar de outra coisa
(ou por inteligência, mas isso não se diz).


Philippe Garrel

quinta-feira, 18 de novembro de 2010




João Botelho a ensinar o que Jean - Marie Straub lhe ensinou: "um western de Boeticher pode ser tão bom como um de Ford".
Um Western de André De Toth pode ser tão intenso e vibrante e materialista e cheio de segredos e zonas escuras como um de Ford ou Boeticher.
"Day of the Outlaw", 1959, sem Randolph Scott mas com Robert Ryan, a preto e a branco e não a cores descoloridas , comprimido e irrespirável, pode fazer remissões aterradoras ao cinema de Straub/Huillet. Mas não interessa muito ou interessa tudo.
João Bénard da Costa sobre "Forty Guns", outro insuportável:"Fuller, que sempre foi de conter a respiração, como quando muito se corre ou como quando muito se ama, não foi ao oeste para respirar naqueles imensos espaços, sublinhados pelo scope. Foi para nos comprimir num espaço que é um momento perdido nesse espaço."
Onde Fuller explode e estilhaça e impõe o sumptuoso e doloroso liricismo, De Toth implode e ameaça a catástrofe a qualquer segundo e em qualquer cena. Está tudo nas rugas e na beleza
da planura da imagem e lá dentro muito dentro.

Longe (aparentemente) das grandes respirações orgánicas das paisagens de Ford; Longe (aparentemente) da fúria mineral e do pó dos duelos de "Seven Men from Now" ou "The Tall T"; Longe (aparentemente) dos Straub e de tudo o que eles significam?
Mais perto de Anthony Mann e do seu scope ou bastante mais perto de outro grande e imensamente (criminosamente) esqueçido western fora-da-léi, o feérico "Track of the Cat", do
igualmente esqueçido William A. Wellmen?
Chega de perguntas, chega de "raccords". Chega? O que liga tudo isto é que apesar das traições e das humilhações, dos fracos e das fraquezas, das mentiras e dos judas, estamos em "mundos de homens". Mundos de justiças, de honra, de bater forte e de repor coisas no lugar certo, de tirar a limpo. Onde quem bate nas mulheres apresta-se a levar na boca e onde crianças reconheçem e compactuam com os
de bom coração. Galáxias, constelações e abismos, valores e emoções, sentimentos, que faz de tudo uma e a mesma coisa. Impossivél nos dias de hoje.

André De Toth foi igualmente aos grandissimos espaços e à neve, às florestas e ao frio que corta, enfiou-se nas pequenas habitações como Wellman também o fez no "Cat", revestiu tudo isso
sobre um preto e branco sem meias medidas, denssíssimo/escuríssimo/branquíssimo, aplicou a elevada largura e o rasgamento da lente a um enclausuramento brutal onde só nos limites da profundidade poderemos sonhar e fugir para onde as bordas do enquadramento e a distância adoptada jamais dão tréguas. Aquele suposto verde e aquele suposto branco como nos contos infantis...
A parte final, lá fora, é o teatro (palavra fundamental tanto para a forma cinematográfica como para a dissimulação dos homens que andam pelo filme) do horror onde o paroxismo e a contenção já explodiram e a tragédia e o rasto de perpetuação se confirmam. Sem "happy end" possivél. Sem pacificação.

André De Toth cinesta da matéria. André De Toth cineasta da forma. André De Toth cineasta da mise-en-scéne. "Mise-en-scéne" palavra tão mal entendia, mal aplicada e mal executada.
Mise-en-scéne, princípio do cinema e príncipio do olhar. Princípio de toda a forma.

André De Toth sabe-o tão bem como Oliveira e Rivette e o modo magistral, seco e claro como expõe tudo isso está numa das sequências mais impressionantes de timming, découpage
e utilização da câmara que alguma vez vi. Robert Ryan desce as escadas e prepara-se para incendiar tudo; o seu parceiro está deitado na mesa e não parece lá grande coisa;
Ryan tenta alcançar a garrafa do fogo e é severamente ameaçada; ecos de duelo e de confrontos no ar; Ryan não se encolhe, tenta reforços e ajudas; Põe uma garrafa vazia a rolar sobre o balcão. Magnífico , verdadeiramente magnífico travelling de acompanhamento sobre a garrafa. Um dos mais inacreditáveis e insólitos que já vi. Para a direita. Quando esta (a garrafa) deixar de rolar as balas atingirão as carnes sem piedade. Haverá sangue.
Mas tudo isso é cortado pela entrada dos intrusos que tudo revertirão e porão em causa.
Uma hora depois, mais coisa menos coisa, e já estão os intrusos a sair de casa. Para o inferno. De Toth aproxima-se de uma jovem mulher e aplica-lhe um não menos fabuloso e terno travelling sobre o olhar. Para a direita.
Não há saída e o génio de um imenso cineasta é assim liberto e sentido, na pele.

"Day of the Outlaw". "Track of the Cat". Monumentos singulares. Monumentos sussurados. Monumentos para alguns. "Foras-da-léi, os outros são todos conheçidos". Foi o que alguém me disse e é toda a verdade que importa. Abraço.

terça-feira, 9 de novembro de 2010


O SOMMA lUCE

Filme de Jean-Marie Straub assente no último cântico do paraíso com que Dante fechou esse capítulo da Divina Comédia? Rigorosa mise-en-scène da palavra, do gesto humano e do génio/colosso da natureza?
Tudo isso nos vai dar Straub, com a mesma implacabilidade e precisão de sempre, ou com um novo abismo, esse violento abismo que a imprevisibilidade de um ramo de árvore sacudido pelo vento ou os “incidentes” do som directo permitem irromper, abanar, fazer tremer, quase explodir o que muitos dizem ser um sistema formal perfeito ou um qualquer dispositivo fechado em si mesmo. Apenas duas ou três coisas e uma infinitude de direcções.
Straub sempre foi um dialéctico; um tradicionalista dialéctico; cineasta das furiosas oposições, dos paroxismos em surdina ou das catástrofes em suspiro. Dos transes da palavra feita cântico e dos milímetros cerrados do visível. “Violência com violência”, no principio como no fim, "O Somma Luce" comporta em si uma lógica explosiva.

Peça bipolar; peça uníssona às origens. Do humano e do mundo. Filme de forças antígonas e de extremos que se olham e se falam. Um embate e um reconhecimento.

Ao filme. Créditos curtos, créditos generosos, "O Somma Luce" abre a preto e a preto continua até metade, nesses sete minutos em que a música aterradora de Edgar Varèse nos permite aceder e imergir em qualquer coisa próxima do inferno ou das trevas. Negro absoluto –Ritmo hipnotizante – Inferno.

Da peça musical ao título. Do negro–negro à luz absoluta. Do mais profundo subterrâneo à claridade que cega. Da morte à vida. Do fim dos fins à sedutora e insuportável luminosidade.
Do inferno ao paraíso.

Se Straub constrói este movimento dramático e sensível, imagético e sonoro, musical e vital (câmara, som, texto) a sua inteligência é a recusa de fronteiras estanques e lógicas deterministas. Já sabíamos, o negro medonho pode comportar a mais efusiva das asceses ou das catarses. O negro medonho pode comportar toda a complexidade e segredos do universo. Assim como a luz suprema é tantas vezes a imagem do incomensurável e logo do insuportável. Do absoluto e da perdição. De um cosmos onde aparentemente nada se vê a um cosmos onde demais se vê, do que se tacteia ao que excede, tudo constantemente se reverte e se corresponde sigilosamente. Uma e a mesma coisa. O sentido na eclosão/implusão e as mais fundas trevas impressas na magnífica luz que pela primeira vez Straub escava pela alta definição. Um homem e um texto, o verde terrestre e o azul do céu, a terra original, a envolvência do mundo e o ecoar das profundezas. Matéria.

Danièle Huillet, qualquer coisa assim no filme de Pedro Costa: “O negro não é simplesmente negro, ele pode conter uma imensidão de ruído e de coisas”. De tudo. "O Somma Luce" continua a ser um filme dos dois. Straub-Huillet. E não era preciso socorrer-se aos créditos que tudo abrem.

Uma ode. Uma tragédia. Uma bomba aos opressores. Uma carta de amor.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

“Boxing Gym” um filme de Hawks? “Boxing Gym” um filme de Wiseman. A mesma coisa, pensava eu. “Boxing Gym” ficção? Das mais belas. Porque das mais ternas. Porque das mais sinceras. Humildes. Impossivél neutralizar a câmara. “Boxing Gym” documento? De um lugar, de um mundo dentro de outro mundo, de homens e das suas verdades e origens e segredos e medos. “Boxing Gym”, filme duro, filme meigo. “Boxing Gym”, filme igual a todos os filmes de Wiseman como os de Ford eram sempre igualmente “Ford´s” e sempre absolutamente novos. Frescos. Com todo um novo cosmos para descobrir/redescobrir. O Daniel disse-o bem. De memória, tipo isto: faz parte de um corpus gigantesco que só visto num todo fará pleno sentido. A mim surpreendeu-me. Como me surpreende os filmes de Wiseman. Ou os de Ford ou Hawks, já tinha dito.

É coisa assim: um barraco abandonado, quase quase western. Cá fora uns pneus, carros e nada mais de muito interessante. Lá dentro, e é quase sempre lá dentro que estaremos (do fora, não me lembro muito), vamos conhecendo uma família e os novos membros que a ela se irão juntar. Como filhos acrescentados sucessivamente. Não só homens lutadores, não só mulheres lutadoras. Mas rapazes e crianças. Raparigas e bebés. Todos providos ou tratados com a mesma inteligência e com a mesma altura da câmara e do tempo. Atitude de um primitivo. Mas também atitude de um dialéctico. Dos golpes e dos embates rigorosos ou mais ao menos brutais, aos conselhos da velhice ou da novice, rasgos de generosidade e de trocas. Complementos. Correspondências mutuas. Salvações. Promessas. Coragens. “Boxing Gym” filme moderno? “Boxing Gym” filme clássico? Wiseman está-se nas tintas. Wiseman envolve-os nas suas formas. No seu olhar. Não faz distinções e ao mesmo tempo recupera a particularidade de cada um. “Boxing Gym” filme que capta nervo, esforço, selvagaria e quase sangue. “Boxing Gym” filme que capta o choro de um bebé. “Boxing Gym” filme sem sinopse. Entrámos lá e ficámos viciados. Dialéctica e, claro, ética. A do distanciamento mas também a da aproximação. Troca-se a volta aos compêndios e constatamos que uma é da outra dependente. Sempre. Essa moral de lhes resguardar pela distância justa e logo de os agarrar. Só a distância, nessa linha direita ou quebrada, sabe que nada mais lhe interessa que perscrutar. Mais forte ainda, apreender. Wiseman é portanto um profissional mas principalmente um amador. Voltarei e terminarei com isto.
Volto ao Daniel, da maneira de que me lembro: aquilo são as origens da América dentro de um pequeno espaço fechado; o melting pot.
Nem mais. O que é a mesma coisa que dizer que poderiam ser as origens do mundo. “Boxing Gym” filme big-bang; gesto aglutinador das relações, do companheirismo, do trabalho, das dependências. “Boxing Gym” filme de amor como “La Danse”, o imediatamente anterior, era filme de amor. Amor de uns solitários ou de uns disponíveis – Wiseman ou as pessoas que por lá lutam/bailam – para com os outros e para com o corpo e a alma. Filme carne e filme coração. Wiseman jamais procuraria formas novas e tempos novos, jamais se deixaria levar pelas mentiras do estilo e do mundo que dizem que muda (muda mesmo?), para se mudar a si próprio. Jamais. “Boxing Gym” filme de velho e filme de novo. Filme de sede. Filme de quem mais nada quer do que os olhar e captar a graça. É possível resistir. “Boxing Gym” filme que assenta/re-assenta coisas no lugar. Nas tintas para a técnica embora a conheça de a a b. Nas tintas para a farsa do “novo” e logo algo autenticamente novo. “Boxing Gym”, o filme em que alguém diz – a personagem para mim mais comovente: “se não o fizeres tu, de dentro, ninguém o irá fazer por ti.” E o outro, espécie de irmão ficcional ou sanguíneo, agradece-lhe o conselho. E é como se houvesse choro sem choro. É o mais belo dos momentos.

Fred Wiseman, realizador profissional. Hawks. Fred Wiseman amador. Como os grandes. Como Hawks. A evidência, a funcionalidade, o rigor do olhar realista que atinge a serena poética não gritada. Os amadores são os que se juntam ao lado dos resistentes. São resistentes. Como esse tão generoso e tão duro e tão prático e tão complexo treinador e dono do ginásio do nome do filme.

São os que ainda acreditam na grandeza dos homens por inteiro.

“Boxing Gym” filme de um homem.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Cinema sempre foi coisa de vândalos e de foras da lei. Eu sabia-o. De vencidos e de resistentes. De quadrilhas e de amor nú no palheiro. Kids estilhaçados. De verdade e de chagas arrancadas das profundezas do íntimo. Do whiskey e das bafaradas. Cânticos de pássaros a esmagarem todos os barulhos dos carros e do fumo e do resto. Gigantescas construções esbatidas-demolidas na pureza das águas originais. Trop tôt, trop tard. Sam. Jean - Luc e as suas cartas/filmes/tudo/nada. Esse mágnifico Ventura que ainda ecoa num rosto e numa voz. O Guest que percorreu o mundo inteiro sem pedir nada em troca. Os líricos dos filmes de guerra sem armas. Clássicos-revolucionários e revolucionários-clássicos. Os que fazem sempre as mesmas coisas e coisas sempre diferentes. Filmes. Apenas filmes. Fim. Princípio. Princípio. Fim. A História destruída pelo coração. Abaixo as escolas. Abaixo o meio. Os vândalos, sempre. Os escondidos. Manuel ou Manel ou o último romântico-cavaleiro à face da terra. Lost West. Track of the Cat esqueçido. A bela do coração roubado. Falaremos…

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

King Vidor. King Vidor. King Vidor.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

- Sente-se optimista ou pessimista em relação ao futuro do cinema?

- Pessimista. Por causa da palavra "audiovisual".

Robert Bresson, anos 80.

sábado, 9 de outubro de 2010


Em 1989 Hal Hartley rodou a primeira das suas já muitas longas-metragens. "The Unbelievable Truth". Onzes dias e meio de filmagens nas casas dos amigos e nas ruas vizinhas, sustenta o mito. Vários empréstimos ao banco conseguidos por parentes e coisas assim, continua o mito. Não conheço muito deste cineasta, que nascido nos finais dos anos 50, em Nova Iorque, é arquivado nos compêndios de história ao lado dos chamados “independentes americanos” da década de oitenta, com Jim Jarmusch, Gus Van Sant, Spike Lee, etc. Nem isto me interessa para nada. Nem o próprio filme chega perto dos meus ideais de cinema, da minha família, do meu sangue. Falando como falaria um “critico sério”: a narrativa envereda por trejeitos forçados e pelos truques básicos; os maneirismos e excessos de um burlesco de pacotilha abundam; há música perto do insuportável; uma moral a querer ser Languiana e assim talvez justificar o título análogo ao filme do cineasta alemão; existem mesmo personagens irritantes e há beira do delírio, a quererem fazer-se actores à força toda. Para não referir, veementemente, que formalmente Hartley navega por aguas flutuantes mas, admito, de uma ingenuidade que por vezes enternece : ora planos feitos imagens mil vezes vistas – movimentos rápidos e montagem a abrir – ora a amabilidade do fixar da câmara e do melhor ângulo com a melhor luz. Uma ausência de escritura e um anonimato que nesses – raros - momentos percebemos que existe um artista de corpo inteiro em potência. E aqueles intertítulos...

Mas não são estas as verdadeiras razões porque o filme me interessa, nem a perfeição – palavra que rejeito, palavra assustadora, falsa – têm alguma coisa a ver com o que me faz mover. A vibração e os sentimentos, sempre. Um sopro de desilusão e de romantismo - que não se deixa ver - que insufla de energia a fragilidade e a singeleza das estruturas. Quase todo o filme dá a ideia de planar uns palmos acima do solo.

É que no meio destes verdes anos existe um extraordinário acaso e um extraordinário par – um rapaz e uma rapariga, claro - a mais velha história do mundo contada com uma fascinação e uma sensibilidade secretas, um pudor que me é impossível esquecer.

Ele é Josh, saído da prisão por supostos homicídios e à busca de uma boleia para a terra natal. É mecânico, mas todos lhe perguntam se é padre. Anda sempre vestido de preto e de cigarro na boca, um atrás do outro. Parece um pouco desinteressado da vida e é detentor de uma sinceridade assustadora. Não parece esperar muito do mundo e dos que nele habitam.

Ela é Audry, mais jovem, idealista, e não quer entrar para a faculdade. Têm obviamente problemas familiares e é obcecada com ideias apocalípticas. É de uma beleza mais do que estranha e rara, daquelas de ir até ao fim do mundo ou de saltar a fronteira dos abismos. Também se veste de preto.

Existe como que uma predestinação escrita no vento ou na imensidão do universo que fará adivinhar que mais dia menos dia, num qualquer virar de esquina ou num pedido de lume, eles se encontrarão.

Encontrar-se-ão, obviamente, e o móbil para tal será o livro que não mais parará de ler, até um dia, cada um com o seu. Existe a faísca. Existe o inexplicável da atracção. Ela vai dar-lhe trabalho e vida. Ele todo um novo mundo.

Parece não existirem dúvidas. Tiro e queda. São ideais um para o outro. A beleza combinatória da junção é nada menos do que lancinante. Ele de preto, ela de preto. E os rostos claros, claríssimos, a iluminarem ou a escurecerem ainda mais aquele encaixe que por vias alternativas poderia ser o original. Um principio de tudo. Como naqueles belos jardins em que se olha para o nada e para o tudo.

O preto é aqui a cor da queda e da salvação e do amor. Nada mais próximo e tocante do que estas tão elegantes e selvagens criaturas - et pour cause?

A coisa, o romance, não vai progredir como o esperado nos livros e noutros filmes da vida. Entre festas falhadas que permitiriam a noite perfeita de amor, desaprovações paternais e o inexplicável dos afectos e supostas redenções (ele afinal não deu um dos tiros de misericórdia – melhor? pior? indiferente?), uma bifurcação que faz lamentar que os dois não se atirem um para cima do outro e que fujam para muito muito longe.

Outra das audácias do filme é a mutação/resistência dela e o enraivecimento dele. Ela torna-se modelo de revistas e não falta quem lhe queira fazer a folha. Esquece por um hiato as convicções politicas e económicas, mas resiste. Resiste e não se esquece do coração. Ele deixa-se de ressentimentos ou de recalcamentos, emancipa-se de um peso e dos receios, arremessa furiosamente o tal livro contra o castelo onde a princesa se prende e foge, fogem, mas é o pequeno grande passo que faltava, o big bang. Ambos mandam lixar as promessas com segundas ou terceiras intenções, devolvem os dinheiros dos “falsos Judas” e fiquam entregues a si mesmos, sem compromissos.

O final. Entre o “you have to trust me” dela e o “i don´t trust in everybody” dele, Josh pega em Audry quase como John Wayne pegou em Natalie Wood, e dá-lhe o beijo da revolução.

Ela com uns trocos no bolso, ele sem as ferramentas da profissão, podem finalmente cumprir ou tentar cumprir as promessas e os sonhos dos Deuses quaisqueres.

“You heard that””listen”…e ambos e a câmara se viram para o céu e a música do fim do mundo irrompe. O principio de uma era ou o fim? Tanto faz. Impagável a liberdade. Liberdade, a mais bela palavra do mundo.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Da boca de Jean Eustache saiu certa vez a mais bela descrição de um filme que eu me lembro de ler, foi assim:

“Lembro-me de caminhar em Paris, de Montparnasse ao bairro XVIII, de caminhar a pensar, como numa caminhada que trouxesse o tempo de volta. Quando cheguei a casa, a minha avó falou-me durante muito tempo. Tive a impressão de que me falava de coisas importantes. Quando lhe disse: "Mas, escuta, temos de registar tudo isso", ela respondeu: "Mas enfim, são coisas que não são bonitas". "Isso não me interessa", respondi, "é preciso registar as coisas, bonitas ou não, elas são importantes, elas são grandes." Arranjei algum dinheiro para comprar película a preto e branco 16, aluguei duas câmaras, pedia Théaudière que cuidasse delas e a Jean-Pierre Ruh que fizesse o som. E o tempo do filme, foi o tempo da película, as duas câmaras a funcionar alternadas, de seguida, sem corte. O filme era assim a história da película, do início até ao fim. Ao mesmo tempo, como era cineasta de profissão, era um filme de um cineasta profissional e um filme de família, um filme amador em 8mm rodado na praia.”

Ou seja, Eustache pensou, ou sonhou, mas concretizou, teve essa tremenda ousadia, esse espantoso gesto de humildade, refazer algo que o cinema sério prometeu servir: um grande (incomensurável) arquivo de pessoas e de memórias. Para sempre. Apontar uma câmara a alguém com muitas coisas para dizer – e todos tem coisas para dizer, a sua narrativa – filmar até a fita acabar e gravar o som, a palavra e o que a envolve. Com todo o saber e com toda a simplicidade. Está feito. Assim mesmo. Fê-lo, não ficou pelo sonho ou pelas promessas.



2007. Wang Bing. “He Fengming”. Ou no título internacional: “Fengming: A Chinese Memoir”. Ou ainda, mais delicadamente: “Chronicle of a Chinese Woman”.
Como Eustache, é o filme que todos poderiam idealizar. O filme que todos poderiam fazer. Cinema sempre foi coisa de amadores. Amadores que tudo lhe retribuem. “Não sabemos mais das imagens do que o resto das pessoas”, penso que afirmou Godard um dia. Trinta e tal anos depois as fitas rareiam e o digital possibilitou tais dádivas ainda mais possíveis. Wang Bing também apontou a sua câmara a uma pessoa querida e deu-lhe o mundo todo. O tempo todo. Ela, senhora também de idade avançada, caminha até casa, abre a porta, senta-se e desvela infinitas histórias, e, tirando mais três ou quatro planos dela a movimentar-se pela casa, é o que vamos ter durante umas três horas e tais. A violência de um interminável plano fixo ao serviço de uma abundância desmedida de factos e de ficções – porque jamais a memória poderá reter só o “verdadeiro” – de amores, desamores, tragédias e festas, choro e riso.E a presença e o peso que ela exerce sobre a cena, como acontecia com Odette Robert, é verdadeiramente vulcânica, arrasadora. É o plano que estremece tantas vezes com os ditos e com as expressões, o olhar, as rugas e o falar dessa imponente e bela senhora. Questão de paciência e curiosidade. Através de tudo isso, das confissões de soslaio às grandes epopeias, toda a história de uma nação (a chinesa, a dela) e de um arco temporal fugidio que poderiam ser as histórias e os tempos de toda uma humanidade. Todos nós estamos lá num cantinho e ao mesmo tempo tudo é dela, só dela. Tocantemente intimista e singular e surpreendentemente universal.


“Griffith filmou a biografia de todos os homens e mulheres à face da terra”, escreveu João Mário Grilo. Bing ofereceu a Fengming uma via de catarse e ofereceu-nos a todos nós uma espécie de espelho e de previlégio que em algum dos lados nos podemos ou haveremos de nos poder vislumbrar. Sem a profissionalidade das equipas do “grande cinema” ou das pressões. Uma peça familiar, uma peça manual trabalhada em porcelana, com o máximo do saber. E o filme é o milagre do presente em que o vemos, como testemunhas e ecos, a evidência do olhar que abre infinitas brechas de sentimentos e de emoções. Histórias e mais histórias, sensibilidades, sensações, "déjà vu´s", recordações, alegrias e medos. Não há que filosofar, “o que é, é” e nessa experiência de tempo pode-se chegar ao absoluto. Não há filme mais verdadeiro, não há filme mais fantástico e aventureiro. Resistência e liberdade, é o que ele nos diz. É o que Bing e Fengming nos dizem. Mesmo que a solidão seja terrível.

Não há génio, nem em Eustache nem em Bing, e quem os quiser seguir, e mesmo que só daqui a dezenas de anos um ser qualquer descubra no nada uma velha cassete qualquer e a veja e sinta alguma coisa, valerá a pena.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010


"O homem enfeita-se com a sua sorte". Paul Valéry

“A Religiosa Portuguesa”, quarta longa-metragem de Eugène Green, prossegue em terras lusas o fulgurante e singularíssimo universo da sua obra artística anterior, que não só cinematográfica.

O Mito do “Sebastianismo”, revelações religiosas, comoções maternais, a procura de um “eu” ou filosofias aparentemente profundas, “film on film”... o cerne da obra, como sempre em Green não é verdadeiramente isso e as “grandes questões” podem ficar para quem mais nada vê e ouve e se fecha ao mundo e à sua indizível ode de modelações e de belezas aparentes e místicas, visíveis e invisíveis.

A cena inicial, em que um recepcionista de hotel interpretado por Manuel Mozos- só poderia ser ele, o grande cineasta do “Xavier” da minha salvação e de uma Lisboa sufocada e escura, intimista e luminosa, onde as suas personagens tentam entender essa complexidade exterior e interior, ou seja, do lado da vida e dos sentimentos – para lançar o mote: “não gosto de filmes franceses intelectuais”; Não sei se Green gostará deles ou não, mas tenho a certeza que os deste não o são.

Coisas simples, coisas vitais. “A Religiosa Portuguesa” é como uma viagem a uma paisagem e a um mundo a que não estamos habituados e se nos revela numa plenitude que não o esperávamos. Que nos arrebata e nos atira para o lado. Que nos cala e deixa sem ar. “Ver e sentir claramente, passo a passo.” Calmamente. Contemplar as fulgurâncias e os segredos do que nos entra de maneira fulminante pelo olhar e pelos ouvidos e deixar-nos enternecer. Estar aberto às opacidades e acreditar nessas coisas que arrepiam a pele e dão significância à palavra medo. Caminhar, caminhar, caminhar. Ser envolto pelos nevoeiros e suas gradações efémeras e mágicas (palavra perigosa esta). Só quem já se deixou perder pela amplitude de um cosmos próprio e universal, pelas possibilidades da escuridão e da claridade é que pode compreender o gesto.

“Ando por Lisboa à deriva e sem saber onde parar e não a compreendo, nunca sei a sua verdade, seduz-me e intimida-me, atrai-me e ignora-me, absorve-me e…” e aqui já só falo eu.

Green vêm de fora e este é o olhar dele, esteticamente e eticamente fiel aos seus princípios; aberto a um novo meio. Nada de mais justo. Nada de mentiras.

Existe uma história, se a quisermos e se nos quisermos consolar, que é aquela em que uma actriz vinda de Paris mas que também fala português vêm rodar um filme a Lisboa e ao mesmo tempo descobrir a cidade e libertar-se nos virares das esquinas, nas auroras e nos crepúsculos dessa luz que dizem ser única. Mas também pode ser o filme de uma “maluca” que não têm medo da negridão – Diogo Dória e a sua “cave” só podem vir mesmo do mundo dos mortos – e se entrega às loucuras, ao irracional e aos prazeres. Ela pode ser uma bonita burguesa de boas intenções e de grande coração ou apenas uma libertária de filigrana que engana muito bem - e bem sabemos que andam por aí muitas. Beijos, elipses de noites de amor, filosofias espontâneas e meias absurdas com uma freira que ela imagina ser sua dupla, etc. Cada um que vá pela sua ficção porque o que interessa a Green é mesmo esse “teatro do mundo” - como lhe chamou Bruno Andrade num texto fabuloso - esse espectáculo ilusório do real, essa encenação que só os poetas apanham dos agressores. Graciosamente longe dos naturalismos, das cópias conformes, dos realismos e dos mais “ismos”; Também sempre pronto a recusar o simplismo e as chaves de “cinema literário” ou ancorado à literatura que muitos rapidamente sugerem. Aqui o romanesco é menos evidente e mais subtil e subterrâneo do que nas obras anteriores – Flaubert em “Toutes les Nuits”, por exemplo - e trata-se então de filmar – literalmente, laconicamente - a palavra. “Sinto que filmo a palavra onde os actores são absolutamente mudos”, disse Green certa vez.

Uma viagem pelo universo do sensível e das fantasias, à beira do infantil e do iniciático, conduzida pelo ponto de vista da mulher mais bonita que um pequeno miúdo solitário já viu. Quase me pareceu o “Moonfleet” de Fritz Lang e toda essa encantatória redescoberta. As águas dos mares e os penedos não enganam.

“Desde o genérico, que nos são dadas a dinâmica e a respiração de "Moonfleet". Surge uma onda num penhasco, enrola-se e depois desfaz-se contra as rochas, e dela apenas resta um turbilhão de espuma. No segundo, terceiro, quarto planos, etc, as ondas sucedem-se, sobrepõem-se, plenas de uma violência contida, por se desfazerem, enfim, com furor. Por que razões estes planos do mar e das ondas são os mais belos alguma vez filmados? Mistério inexplicável da arte, excepto se admitirmos que o olhar do poeta pode penetrar o mundo tão intensamente que torna magnífico tudo o que vê. A poesia reside na verdade e no conhecimento.” Jean Douchet, Cahiers du Cinema, Maio 1960. 50 anos depois, alguém nos vêm relembrar.

Sombras no negro, luzes no claro, candelabros…velas, certezas e incertezas. Um pouco como em Leos Carax, mas onde este é louco e explosivo, lírico e demencial, Green é ascético e hierático, contemplativo. Há coisas irreveláveis incrustadas naquelas rochas e naquelas árvores, nos túneis e nos céus mais do que perfeitos; Como há coisas no sangue e no interior ou na dita alma de cada pessoa que ninguém jamais imaginará sonhar.

As panorâmicas iniciais e a subida final da câmara pela iconicidade de uma cidade. Os fados que a elas se sobrepõe e que irrompem dos seus autores e pelo espaço, o vazio de uma metrópole e a sempre brutal e terna frontalidade com que a câmara enfrenta rostos e a precisão das palavras. Esse fluir tão atento e pacificado com que a máquina se move. Coisas antigas, coisas de estúdio, as lições de homens velhos e sábios e as heranças. Coisas novas, coisas pioneiras, nada é certo e o cinema nunca se saberá o que é, tudo em causa. Green acredita nos fantasmas e nas crivações seculares e é dos que sabe que pelas aparências do visível tudo pode impregnar. É um dos grandes cineastas materialistas, como é um dos grandes cineastas crentes, religiosos, litúrgicos. Matéria em bruto e possibilidades de milagre pós-mortem – o assombro final de “Le pont des Arts” ou o delírio sebastianistico defronte de uma discoteca nas docas. Além-vida.

A poesia, sempre a poesia a alastrar por uma suposta prosa ou por aquilo chamado “mundo real”. Obliqua, desconexa, concorrente, paralela…Green pressente as rimas infinitas e em horizontes não circunscritos. Ouve-se inglês, francês, português. Vê-se Castelos e capelas, cafés e bairros daqueles em que todos sabem de tudo, fala-se sobre Paris e em promessas e habita-se uma Lisboa tão imponente e concreta como fugidia e impermeável. Sinfonia perfeita como o descer e o subir dos eléctricos. Deriva casualistica como as folhas e os ventos que guiam "a bela" em direcção aos fados e aos destinos voláteis como os sopros e os sussurros.

O “film on film” não nos diz nada e só nos mostra umas coisas e umas promessas quebradas – da vida à ficção e do “corta” à vida é uma questão de recorte de mundo e de justiça poética; sem delírios e sem embustes. “Não choro mais pois tal não proporcionou”. O realizador olha o mundo e os seres e estes devolvem-lhe a sua natureza e o seu génio da origem. Honestidade, simplicidade e crença.

O "génio" de Green é o "génio" dos grandes, não se submeter a modas nem trabalhar para festivais (pobres imbecis de Cannes, jamais o aceitariam) e para os supostos críticos – bela palavra que certo dia existiu - invejosos e chauvinistas (os que querem Lisboa para os Lisboetas), antes se deixar imergir, lucidamente e perdidamente, pelo temperamento do mundo e pelas suas incomensuráveis riquezas, agarrando-lhe toda a matéria que o enforma e fazendo sentir e vibrar o que apenas temos tanto medo de pressentir. E algo novo, raro, indecifrável surge e o cinema continua. “A Religiosa Portuguesa” é um assombroso filme de assombrações num mundo que existe. Só não vê quem não quer ou quem já não está habilitado.


quinta-feira, 24 de junho de 2010

“Charley Varrick” abre com céus à Rembrandt ou à Delacroix e com cheiro a western pleno ou crepuscular. Raios de sol a queimarem a objectiva. Amarelos e vermelhos mansos. Crianças ou bailarinas a brincarem. Lances de água a esvoaçarem. Uma rapariga a ser assobiada por rapazes, uma calma inaudita – a “Americana” junto ao gado, se quisermos – que parece não deixar adivinhar o que se irá passar logo de seguida. Porque não nos enganemos, é um filme de Don Siegel, e essa espécie de paz e de lirismo já contém dentro de si a violência e a pérfida que o universo olhado por ele quase sempre ostenta. A natureza e o mundo poderiam ser inteiramente belos e os afectos ainda mais belos, como no início, mas os tipos e as tipas que vamos acompanhar não ligam pingo para isso, ali é cada um por si e o que importa é sobreviverem ao caos que eles para si inventaram. E se tudo começa tão “perfeito” e tão imaculado é logo na sequência seguinte, a do assalto ao banco, que Siegel mostra o artesanato e o amadorismo que assim trabalhados por ele abrem todas as brechas possíveis e impossíveis para a máxima vibração e intensidade e delicadeza de cada plano, de cada coisa que lá dentro mexa, toda uma imediatez e liberdade formal que dialoga com a complexidade humana. Siegel não ilustra nem dilata, apenas filma e monta, daí o milagre daquelas paisagens e daqueles ângulos nas profundezas da América, as estradas envoltas pelas montanhas intermináveis, o ritmo próximo do que experimentámos. Muito sangue, muita traição, muitas balas sobre a carne e muita dissimulação. Mas Siegel sempre soube que, e citando Manuel Mozos a propósito de Peckimpah: “Não se é bom, nem se é mau, nem melhor, nem pior. Apenas se é.” Os perversos de “Charley Varrick”, a começar pelo próprio ou pela sua mulher, passam o filme a fazer as coisas mais horrendas e inaceitáveis, mas também, num breve olhar ou numa pequena comoção que pelo rosto lhes perpassam, toda uma sensibilidade advém e é então que sentimos que não estamos a ser enganados e que o mundo não é a preto e branco, tudo bom ou tudo mau.

É Walter Matthau e a troca dos anéis, as suas velhas histórias com lágrimas ao canto do olho; É o solitário Andrew Robinson e o desespero constante do seu olhar de menino, não há nem haverá ninguém que o ame e isso paga-se caro; É o mafioso que não resiste a empurrar uma miúda num baloiço e a dizer-lhe o que os “bondosos” diriam; Existe sempre o verso e reverso, o positivo e o negativo, algo que ficou lá nos fundos e que poderia, se tivesse calhado, estar nos cimos. Daí, claro, também temos o que não gosta de putas e que literalmente varre tudo o que lhe aparece, é a peça gélida, a “excepção da regra”, o mal absoluto que existe forçosamente, o alguém que “é assim”, sem redenção possível. Mas Siegel nunca os desampara e filma cada um do jeito que merece. Emoção, emaranhado de sentimentos, contradições, fogo. Humanidade, campo de batalha, cinema – tal como Fuller explicou para Godard. Não trocaria este arcaísmo narrativo e estético por nada do que a suposta perfeição e tecnologia que a suposta Hollywood de hoje me tenta oferecer. Ponto.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

LES FILMS DE NOS 25 ANS. 1984. Boy Meets Girl. Libé meets Carax. Oui, il existe encore de jeunes cinéastes assez fiers pour parler d'eux à la première personne. A Cannes, nous avons beaucoup aimé «Boy meets girl» de Léos Carax.

DANEY Serge


Un frêle fantôme hante tout le festival, celui du premier film du jeune cinéaste (peut-être) génial. La «révélation», comme on dit dans la presse, l'«espoir», l'assurance que le cinéma continue, produit ses Rimbaud et ses «poètes de sept ans» contre vents et marées, qu'il repart à zéro, qu'il ne meurt pas. Mais en même temps, parce qu'on a trop vanté de talents qui n'ont pas tenu leurs promesses, parce qu'on a appelé «jeunes cinéastes» des débutants tardifs qui n'étaient plus des adolescents depuis longtemps, parce que les producteurs en mal de relève-chair fraîche ont brûlé trop vite de jeunes talents à coups de budgets trop lourds, cette hantise n'ose plus trop se dire. On se contente de savoir gré aux jeunes cinéastes d'aujourd'hui de porter avec eux la sensibilité des années 80, de «ressembler» à leur époque, alors qu'ils n'y ont, évidemment, aucun mérite. Ils arrivent maintenant, très maniérés, souvent nostalgiques, agressifs par force, ignares et très cinéphiles. Ils savent bien qu'il leur est difficile de faire aussi facilement scandale que leurs aînés et qu'il y a une révolte, quelque part, dont on les a privés. Mais ils arrivent, nécessairement.

Hier, nous avons vu Boy meets girl, premier long métrage de Léos Carax. C'est un vrai premier film et c'est (parions sur lui) un vrai auteur.

Mais comme on l'est à son âge, c'est-à-dire à 23 ans. Le film est évidemment inégal, bancal et troué d'impasses, mais il respire le cinéma et il date de 1984. Les comédiens ont l'âge de leur metteur en scène, le héros, Alex, ressemble à Carax comme à un frère, et ils ne parlent que de ce qui les encercle: le mal de vivre, l'envie d'en avoir déjà fini, d'avoir une oeuvre derrière soi, le goût et le dégoût du monde, la pudeur, les idées noires et un ego à toute épreuve. Par ailleurs, Carax a, chose rare, un don pour la poésie.

Un film comme Boy meets girl ne gagne rien a être raconté. Pas parce qu'il y aurait un mystère à préserver dans l'histoire qui n'est jamais que celle ­ bressonienne ­ d'un jeune garçon, la dernière nuit avant son départ pour le service militaire, entre une fille qui l'a quitté et une autre qu'il rencontre, déjà «entre le chagrin et le néant». C'est que le mystère est dans la sûreté de la mise en scène lorsqu'elle donne ce sentiment intenable de précarité, dans la beauté des soliloques à la voix blanche, sans filet.

Il y a deux copains discutant sur les berges de la Seine, la nuit, et l'un se précipite sur l'autre, il y a des confessions sexuelles, très osées et très douces, en voix off, un flipper ouvert et qui clignote quand même, un enfant qui commence un monologue ravagé dans le métro, un homme muet qui reproche aux jeunes «de ne pas parler», des enfants oubliés qui pleurent dans une pièce un soir de réception, des disques volés par amour, une chambre de bonne éclairée par la lumière d'un frigo ouvert, l'orgueil des peines d'amour perdues et une absence quasi totale d'adultes.

Un jeune auteur (Carax?), c'est quelqu'un qui sait qu'il a déjà vu beaucoup de films, vécu peu de choses (mais difficilement, déjà) et qu'il n'y a pas de temps à perdre pour commencer à les dire. Parce qu'on fait le cinéma avec ce qu'on a. Autobiographie et programme exalté de vie à venir (fulgurante), puis moments d'aphasie où l'hommage au cinéma muet n'est pas une coquetterie cinéphile mais un mauvais moment à passer. Horreur d'errer dans un monde «déjà vu» mais «pas encore vécu». Jeune vieillard qui ne pourra que rajeunir.

Il y a quelque chose d'aujourd'hui dans le regard buté d'Alex et de Mireille, adolescents même pas paumés, tout juste «ajoutés» au monde qui les entoure . Et il y a aussi quelque chose d'hier dans leur façon de vivre leur vie comme un destin, mais au futur antérieur, comme dans un roman du XIXe siècle. A même le mur blafard de sa chambre, Alex a dessiné, grossière, une carte de Paris sur laquelle il porte soigneusement les lieux et les dates de tout ce qui fut pour lui «une première fois». Belle image pour un premier film: naissance, premier baiser, première tentative de meurtre, etc.

Il y a aussi quelque chose d'aujourd'hui dans cette manière de Carax de recommencer le cinéma autobiographique de la nouvelle vague (de Godard à Garrel, mais aussi de Skolimovski à Bertolucci), plus dans le Paris lumineux libéré des studios que nous découvrait Coutard mais dans un Paris nocturne, obscur, contrasté, entre chien et loup, strié de néons et de faux jours, le Paris de tous les cinéastes de sa génération.

Qui est Léos Carax? Un double d'Alex, mais encore? Léos non plus n'est pas grand, il porte des vestes immenses qui le font paraître encore plus jeune, il ne parle pas beaucoup, il a fait un court métrage (Strangulation blues), il ne vit que du cinéma. Il ressemble aussi au Léaud qui volait des photos de stars dans les 400 coups. C'est lui, souvent, qui vient demander à une vendeuse d'une grande librairie de cinéma parisienne si elle n'a pas «des trucs nouveaux» sur Godard. Des affiches ou des photos. Car, le lecteur l'aura compris, Godard est un dieu pour Carax.

segunda-feira, 21 de junho de 2010


(…um certo “trabalho”, um certo momento, sem pedir desculpas, obrigado.)

Chantal Akerman – cineasta do corpo e do gesto.


“Ainda há pouco vimos na Cinemateca um antigo Dwan, um antigo Frank Lloyd, um antigo Vidor. O que descobrimos é que o cinema não é a arte do movimento – o movimento é sua técnica –, é a arte do movimento verdadeiro. O que o cinema redescobriu foram os gestos dos homens.”


Jacques Serguine


"Já nada acontece aos seres humanos, é à imagem que acontece tudo"

Serge Daney, sobre a televisão



Para pensar o fundamental do cinema de Chantal Akerman, o que julgo então ser a sua teoria e razão de ser, analisarei três momentos que considero serem decisivos na sua obra. “Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”, de 1975, sendo este o filme que irá constituir o centro da minha análise, mas também “Je, tu, il, elle “, logo do ano seguinte, 1976, e, por fim, um filme de 1993, “D'Est”.

“Jeanne Dielman”, monumental obra de mais de três horas, vai-nos deixar entrar na rotina de uma dona de casa, ao longo de três dias, apreciar as suas tarefas, a relação com o seu filho, a maneira como vende o seu corpo a homens, mas também iremos às compras com ela e a veremos a tomar conta de um bebé, entre tantas outras coisas.
Todo o cinema da realizadora Belga é assente, construído, através de um dispositivo formal fortíssimo, em que a fixidez da câmara – radicalíssima cineasta do plano, da composição e do tempo – nada mais está interessada do que ver, ou melhor, rever/redescobrir, o movimento dos corpos e dos gestos dos humanos.
Neste sentido, todo este portentoso cinema materialista, nada tem a ver com as vanguardas puramente formalistas que por esta década (a de 70) explodiam, e onde o homem ou não existia ou então era puerilmente vislumbrado numa dispersão estética à beira do histerismo, esse cinema politicamente engajado e com fome de provocação e de ruptura, que, volto a frisar, está claramente nos antípodas de Akerman, como dos Straub, por exemplo.

Essa coisa do “film is a gun” será sempre o oposto do cinema da Belga, porque ela filmará sempre “por”, “a favor de”, por amor e nunca contra.
Akerman está então mais próxima de um classicismo (embora, e isto também é fascinante, comungue de muitas das questões que enformaram o dito “cinema moderno”), no sentido da clareza do relato, da simplicidade (anti-simplista, essa simplicidade/complexidade), da solidez, da concisão e mesmo de uma vontade de contar coisas.

A frontalidade de Akerman (ausência de planos-picados ou contra-picados, nesse ponto de vista sempre à altura dos homens) , a forma como cada plano dura o que têm que durar para que se possa ver a tarefa ou acção que está a ser executada pela personagem, a insistência na pura rotina e na banalidade das tarefas (poder-se-ia dizer, “banalidade da ficção”) só nos faz ver o que já pensávamos que não interessaria – por precisamente pensarmos estar demasiado visto – ou seja, a maneira como um corpo se mexe, os gestos das mãos ou as expressão do rosto trabalham e mudam, como se anda, como se come, como se desespera, etc., uma infinitude cósmica de pequenas coisas que na realidade definem o humano e o tornam um “ser politico”. Chegar aí pela minúcia da representação, da paciência e do interesse fazem a singularidade da arte de Akerman.
Mas se por vezes (muitas, na minha opinião) Akerman e este filme chegam à emoção – e sem dúvida que chegam – esta não é arrancada às normas e estratégias da “ficção normalizada” e da psicologia, do aconchego onde o espectador se pode facilmente rever e pacificar, chegando então a ela (à emoção) de um modo mais complexo e grave – Bresson não andará longe – pois toda essa ausência de psicologismo faculta um manso desespero em filigrana que nos faz sentir um mal estar e um desespero que irão culminar na cena final do crime, nesse extraordinário plano em que Jeanne Dielman, sentada à mesa e com sangue na roupa, tem estampada em si toda a aflição do mundo. (Favor comparar com o último plano de “Singularidades de uma Rapariga Loira", de Manoel de Oliveira).





“O cinema mostra-nos geralmente pessoas, acontecimentos, lugares que não conhecemos; não há razão para isso nos dar a impressão de que são aqui, mesmo ao nosso lado”, Daney sobre o naturalismo, precisamente também aqui queria chegar.
Para ficar claro, não se trata de naturalismo puro, não se trata de realismo puro, muito menos algum tipo de maneirismo, trata-se sim de algo de incaracterizável e da ordem das origens: como se move um corpo, um andar, a beleza de tudo isso e a câmara como o único objecto que o permite captar – uma ciência do olhar, tal como o microscópio na investigação.

E se Akerman, muito através da violência do plano fixo e da atenção ao corpo, redescobre e nos dá a ver, de forma cristalina, o movimento dos Homens, será também importante constatar que também nos faz redescobrir um certo movimento do mundo. Tanto pelo fora-de-campo, em que uma infinitude e riqueza sonora entra no quadro e se faz matéria, ou a luz e fluxos vários que pelas janelas perpassam, no entanto, penso que o mais vital será mesmo a forma como podemos atentar ao que está no centro do plano e se distende até às bordas do enquadramento. Porque, sabemos, o mundo não se move como na ficção corrente e seus truques, ou na televisão, onde a cada fotograma algo de forçado, “extraordinário” e por vezes anedótico tende a acontecer. Aqui, no cinema de Akerman, é algo mais próximo da vida que se plasma na película, o extraordinário do não extraordinário, os hábitos e o passar do tempo, as relações, a exasperação, tudo sem os ganchos narrativos habituais – basta ver todas as cenas exteriores, a justeza do tempo, a distância do olhar, a compreensão dos ritmos, a respiração certa.
Tudo isto se pode dizer que, comungando de uma ética semelhante, se diferencia, por exemplo, dos já referidos Straub ou de Pedro Costa, mesmo de Philippe Garrel.
Sem o interesse “Straubiano” do engrandecimento das gentes comuns através da dicção da palavra e dos grandes textos, da pose e do épico; também diferente da maneira como Costa devolve a dignidade e toda uma beleza dos seres e do seu mundo a gente real, as suas memórias e forças; um pouco ao lado do modo como Garrel aponta a câmara, de fronte a quem filma, e faz desse gesto e consequência a gravidade e razão do seu cinema, Akerman partilha com eles, vigorosamente, essa ontologia materialista do olhar e do fluimento temporal, esse primitivismo que é a razão inicial do cinema – dar a ver bem visto, os Lumière, sempre.

Mesmo o uso da palavra, repare-se como em “Jeanne Dielman” ela é utilizada: nos momentos de maior acção/compenetração, ela é quase inexistente, sendo relativamente próxima ao cinema de Jacques Tati, usada como essencial ou nota de rodapé; pelo contrário, quando ela surge quase berborraicamente, é nos momentos em que só ali ela (a palavra) pode ser assim usada, nos encontros onde a comunicação é inevitável e as personagens a tomam como vital e, de certa forma, passível de catarse.
Existe um movimento dramático fortíssimo em “Jeanne Dielman”, por vezes da ordem do existencialismo, que têm a ver com a razão da ausência de um pai no filme – e que surge explicada numa carta de um seu irmão – que é o que faz mover, meio cega e meia surda, por vezes imparável, a personagem, numa atitude que lhe permita elidir um desespero latente. E todo este movimento vai em crescendo, mas numa total e impressionante surdina, que culminará, obviamente, na cena do crime, mas que se notará na fabulosa sequência em que Jeanne Dielman vai pela única vez à varanda de sua casa, funcionando essa tomada de ar como algo vivificante. A construção da sequência é particularmente notável: do fora para o dentro a decoúpage sublinha ainda mais o “tempo real” (num filme que vive nessa ilusão, e que condensa com um peso e uma densidade essenciais os blocos de tempo/duração que compõe os três dias) e os elos para dar a ver uma angústia e um sentimento de perda que fazem adivinhar que algo não acabará bem; como logo na cena seguinte, ela sentada e a campainha a tocar, pela primeira vez, duas vezes – ali, nesses momentos, é a alienação a tomar corpo.
Por fim, o pudor, a ética e distância de todo o filme, de cada plano e de cada som – que juntamente com a subtileza com que a elipse é trabalhada e amplia o todo de segredos e não-ditos – aparece como algo perfeitamente essencial e incomum. Note-se como o filme trabalha a curiosidade e desejo do espectador, nas cenas de prostituição, por exemplo, em que a porta se fecha sempre e nos deixa do lado de fora e nos ignora, até que se “abre” no último dos dias. Mas aí, nesse momento desconcertante e de uma urgência indizível, tudo é o contrário do habitual e do esperado, do apetecível, um mal estar que nasce da malaise da personagem – o oposto de uma certa pornografia das imagens (imagens no sentido amplo da imaginação) que faz por exemplo a “glória” de um Lars Von Trier, onde tudo nos surge escancarado. Toda uma ética em processo.
O mesmo com a distância, que à maneira de Brecht ou de Bressom, jamais ousa aproximar-se do que não é aproximavél, do interior complexo e indefinível das pessoas, do intimismo único. Apenas os percursos, os gestos, os corpos, precisamente.


“Je, tu, il, elle “, logo realizado após “Jeanne Dielman” é um filme onde Akerman leva ao paroxismo o seu interesse pelo corpo e pela sua fisicalidade, pela sua nudez (e obviamente não me refiro somente às cenas de sexo). Trata-se de uma obra em três partes distintas que são no entanto inseparáveis na sua lógica interna e orgânica. Começamos com uma mulher sozinha num quarto (Julie, a própria Akerman), uma voz off em que ela diz que teve de partir, e daí por diante vamos ter um desfilar de planos/quadros sensuais onde, por escrita de cartas e mudança do aspecto e organização desse espaço único e concentracionário, assistiremos a uma enfatização da pose, a uma utilização/exploração do corpo que se diria à beira da pantomina ou do lúdico, mas que a meu ver corresponde mais a esse desejo de constatação do primado do corpo e da carne, do íntimo, algo que já era importante em alguns momentos das suas obras anteriores. E veja-se que se formalmente a câmara se liberta um pouco, já temos ligeiríssimas panorâmicas que seguem um pouco a personagem pelo quarto, a frontalidade e a fixidez continuam a ser o credo da cineasta Belga e o dispositivo essencial para a sua empreitada, continuando a não existir qualquer rasto de “assinatura” ostensiva de linguagem, mesmo que aqui a luz adquira uma expressividade e uns contrastes que na obra anterior eram completamente apagados por um esbatimento da luz e do “logos” da técnica. O que não oblitera soluções e caminhos surpreendentes, como logo no plano inicial, com o prolongado foundou a negro e a voz off a imiscuir-se nessa escuridão – coisa próxima de alguns experimentos de Duras ou Godard, ou da “Branca de Neve de Monteiro.

Saímos para fora e para o segundo grande bloco do filme, espécie de road movie atípico, e o filme mudará. Ou seja, se por um lado as personagens possuem um nível de psicologia diferente dos filmes anteriores – já se notava no que Julie dizia em off no bloco anterior – e surgem mais expostas, porventura mais frágeis e em busca de algo, de um qualquer sentido, Akerman vai-nos pôr no centro de estímulos ópticos e sonoros puros (à maneira de Deleuze), num hieratismo permeável que se por um lado rasgam o filme e a sua lógica até então, surgem vigorosamente como mise-en-scène propulsora do estado de passagem, do sentimento de viagem que esse bloco transmite. E o tempo entra nos planos, literalmente, como na inadjectivavél e incaracterizável cena em que Julie e o camionista comem num restaurante e uma televisão explode de sons e rasgos de luz, em fora-de-campo, cúmulo então dos ditos estímulos visuais/auditivos – personagens defronte a todo um mundo de imagens e ruídos onde não sabem bem como reagir, e aí surge uma espécie de espanto contido. Algo também próximo do sensorial que, no entanto, nunca ousa descolar-se num enlevo qualquer, tudo permanece magnificamente sólido e centrado.
Vamos ter uma cena de masturbação, toda insinuada e em off visual, e a certeza de que o pudor e a inteligência da sugestão e da distância continuam centrais na ética e na estética da Belga.
Por último, o bloco final, em que Julie chega a uma casa e uma mulher a espera. Elas saúdam-se, comem, fazem sexo. O filme acaba. Nos gestos de saudação temos uma serenidade e alegria sincera e ao de leve. Sentadas na mesa e a comerem sente-se a pura mecânica de algo de vital. É nas cenas de cama e de sexo que todo um prazer em bruto explode e o “cinema do corpo” praticado por Akerman atinge alturas únicas e raramente igualadas. São corpos e desejos em movimentos viscerais, pulsantes, circulares, devoradores, animalescos, em que toda uma materialidade é posta em cena e sentida – o peso, as dimensões, as amplitudes de cada circulação, a pressão da libertação. São apenas três planos, que duram bastante, e ali vemos todas as potencialidades de um corpo, da ânsia e da carne, pressentindo-se também toda uma relação e passado. Elegante e justa volúpia porque enquadrada e derivada de tudo o que o filme têm para trás. Portentosa ode ao humano.



“D'Est”, realizado em 1993, viria trazer outro tipo de questões e de formas ao seu cinema, embora todas as questões de fundo, nomeadamente a inteireza ética, continuasse a ser inviolável. Acusado à altura por Jean-Luc Godard de fazer uma “estetização da pobreza”, penso no entanto que nada poderia estar mais longe da verdade. Aqui, como em todos os filmes dela, curtas-metragens incluídas, o que temos é um sistema formal fortíssimo, de aço, “Languiano” à sua maneira, que permite dar conta da matéria da cena e do mundo constantemente castrado pelo varrimento e pela escritura do enquadramento, sem deslumbramentos ou falsidades. Escritura – mas sóbria, lúcida, nada ostensiva e jamais dispersiva – que aqui surge várias vezes pela forma do travelling e que faculta percorrer e ver limpidamente uma grande e imensamente rica paleta humana que constitui as gentes de Leste, mais propriamente da Rússia pós-comunista. Travellings combinados com a dureza dos estáticos planos dos interiores, em que aí o olhar fica parado no intimismo do dentro.



Repare-se como a leveza dos movimentos de câmara parece por vezes fazer nascer um ascetismo que não faz parte nem de Akerman, nem das famílias do cinema em que ela se insere, mas é então preciso dizer que não se trata de algo da pura ascese, não há ali nenhuma metafísica ou Deus a pairar, sim uma delicadeza – sempre – e uma distância e ritmo interno ao plano que nos permite deter o olhar e percorrer o todo das pessoas e dos lugares, quase numa tridimensionalidade que fará corar todos estes novos filmes que se vêem com óculos.
Acto de revelação. A medida e o ser do travelling em Akerman, tal como o plano fixo, é o do redescobrimento do homem e da sua grandeza, por inteiro, esse gesto de dar claramente a ver o que já pensávamos não interessar, o que já tantas vezes olhamos que já nada distinguimos - um simples passeio descomprometido, uma espera na paragem do autocarro, uma criança leve e inocente, alguém a gerar música - e aqui sim, muito próximo da importância que tantos os Straub como Costa dão à maneira como se enquadra e engrandece o homem e a sua colossalidade. O Homem, o que remete para o fundo o contexto, o espaço, as datas. A câmara de Akerman só nos cura dessa patologia dos temas e dos debates, de “um tempo” marcado, entregando-nos uma espécie de eternidade, de suspensão cósmica, de força e de fragilidade. Uma questão de integridade, de planos (que permanecem como espaço resistência, de ontologia, de técnica e de respeito por uma matéria que está no mundo antes de se apontar a câmara e vilipendiá-la, que é o que acontece a quem não pensa o plano como algo do cinema, com a profundidade, o enquadramento, o fora-de-campo, etc.) e não de imagens (os tais simulacros, os derivativos da publicidade, os híbridos da multimédia, etc.). O resto é saber filmar, estar à altura de. Sempre foram estes os fundamentos do cinema de Chantal Akerman.

segunda-feira, 7 de junho de 2010









"The Sunchaser ", Michael Cimino, 1996

segunda-feira, 31 de maio de 2010

There’s something in the act of “making” cinema that I don’t have: the desire to impose oneself. Not out of virtue but out of the inability to bet on oneself, to believe in oneself. I believed in my destiny, a kind of pale star, but I didn’t believe in me. As a passeur I stayed in the middle of the fjord, waiting for one of the banks to call me, or to take me by the hand, and since that never happened I began to send little messages, both written and oral, giving news from one bank to the other without myself belonging to either of them. I wasn’t on the side of the normal people who laughingly consume movies, nor was I on the side of the specialists, of the doers, the artists, whose experience will end up proving that they too are very normal, which is to say that there isn’t much point in idealizing them.

I stayed in the middle of the fjord so long that I ended up–it’s happening to me today–scheming, making up part of the landscape, like a rather dignified scarecrow or a modern art statue. I waited patiently for someone to see me, and since I was incapable of making myself seen, I waited for a few to venture over to my side, the side of cinema, which is the only one in which I can exist favorably, and as soon as they showed up I over whelmed them with all that I had never been able to tell anyone. I never had to produce evidence of my existence or of my value because the key to my existence was under the watch of the cinematic house of mirrors, with a prisoner for a father, and my value was what my mother gave me at my birth. What value? Zero value, simply that I exist.

Serge Daney, obrigado, muito obrigado.

quarta-feira, 26 de maio de 2010



Acto de revelação. A medida e o ser do travelling em Akerman, tal como o plano fixo, é o do redescobrimento do homem e da sua grandeza, por inteiro, esse gesto de dar claramente a ver o que já pensávamos não interessar, o que já tantas vezes olhamos que já nada distinguimos. O Homem, o que remete para o fundo o contexto, o espaço, as datas. A câmara de Akerman só nos cura dessa patologia dos temas e dos debates, de “um tempo”, entregando-nos uma espécie de eternidade, de suspensão cósmica, de força e de fragilidade. Uma questão de integridade, de planos e não de imagens. O resto é saber filmar, estar à altura de.