terça-feira, 28 de janeiro de 2014

 
 
Toni

 
Por António Simões*
 
Ele não é só o Toni. Conhecem-no pelo Toni do Benfica. O próprio apresenta-se, até ao telefone, como o Toni do Benfica, mesmo que esteja a treinar outro clube no estrangeiro. O Toni do Benfica é mesmo do Benfica. Faz falta ao seu património. Moral e desportivo.
Jovem ainda, oriundo da Académica, para onde havia ido, mercê do olho clínico de Mário Wilson, chegou à Luz na temporada de 67/68. Eu era o capitão da equipa, recebi-o, percebi-lhe a fascinação no contacto com ídolos da sua infância e adolescência. Lembro-me de o levar para Sesimbra, onde tinha alugado uma casa de férias, tinha por objetivo contribuir para a sua melhor ambientação e ajustamento no começo dos trabalhos com os seus novos companheiros e nas responsabilidades que teria de assumir nesse seu novo e tão importante desafio.
Volta e meia, fazemos referência a esse momento. Toni empresta afeção, reconhecimento. Na mítica e imponente Luz, começava a ser jogador de maior corpo, de maior opulência, de maior visibilidade, de maior mediatismo. Também e ainda de maior responsabilidade, algo que não o atemorizou. Entrou na companhia da humildade, foi um dos seus trunfos. Deu a mão ao combate, foi uma das suas virtudes.
Entendeu rápido como é que se jogava com craques, com monstros, assim os concebia. Depois, foi-se impondo, emancipação consumada, já era um igual aos outros. Atuou em várias posições, preferencialmente na intermediária, sempre de utilidade extrema. A equipa aceitou-o bem, ele assimilou a mística. Fez-se campeão num ápice.
Toni começou por ser um jogador/atleta para mais tarde se tornar um atleta/jogador. A mudança operou-se na graça de uma equipa de topo, constituída por futebolistas muito evoluídos. Seguiu exemplos, veio a ser exemplo a seguir. Anos a fio, dedicação inexcedível, deixou uma marca proeminente no Benfica, também na seleção Nacional.
A par de Humberto Coelho, no termo da carreira, passou a figurar entre os mais capazes de transmitirem os valores do clube, o seu virtuosismo, o seu feitiço. Tinha vivido uma multiplicidade de situações, conhecia o Benfica como a sua própria casa. Na hora da transmissão dos princípios, era escutado, é ainda, será sempre, com admiração e deferência. E tem obra, muita obra, foi operário de vitórias, jogador ou treinador, operário especializado, operário abnegado.
Como jogador, era uma força da natureza. Como treinador, era uma força da vontade. Como homem, era e é uma força da bondade, do altruísmo, da filantropia. Líder natural, genuíno, culto. Conversador nato, entusiasmante, erudito. Amigo diferente, amigo mesmo, amigo sério, fiel, fidedigno.
Nunca se demitiu do trabalho. Subiu a pulso, realista, assumidamente realista. Soube esperar oportunidades, sem usar expedientes ardilosos, tudo sustentado por uma plena afirmação de seriedade, de retidão. A paciência foi arma, decerto suportada por muitas lágrimas, em privado ou mesmo em público, mas sem nunca descarrilar do ponto de vista ético. Os melhores, os mais justos, são ou não os que mais sofrem? Toni sofreu algumas vezes, vezes em demasia, não merecia, nunca mereceu. E quantas vezes abafou ou silenciou angústias? Em defesa de quem? Do Benfica, do seu Benfica, do nosso Benfica.
Tem a suprema honra de ter sido, nas últimas décadas, numa história tão longa, o único campeão, pelo Benfica, na dupla condição de jogador e treinador. No último caso, principiou na condição de adjunto, coadjuvando vários técnicos, uns mais reputados do que outros, mas com a lealdade que o carateriza. Já titular do posto, campeão, nem por isso foi preterido, aceitando voltar a ser assistente do sueco Eriksson. Mais tarde, de novo laureado, depois daqueles célebres 6-3, em Alvalade, já nesse dia era treinador à condição, assumida estava a entrada de Artur Jorge, seu companheiro e amigo de tantas jornadas.
A cultura popular tem sinais de crueldade. Prata da casa não faz milagres? Pior do que isso, é menos respeitada, um sem número de vezes. Disso foi também Toni padecente. Que injustiça! Tanta dedicação, tantos jogos de maravilha, até uma imprevista presença numa final da Taça dos Clubes Campeões Europeus. Era fatura que se pagasse? Toni resistiu, o seu amor ao clube esteve sempre acima de tudo e de todos. No meu tempo, já em pleno magistério presidencial de Vilarinho, substitui Mourinho, depois do conhecido episódio de chantagem e da quase fuga para o Sporting do agora afamado técnico. Toni não queria assumir, ao contrário do que muitos possam pensar. Talvez percebesse que, naquela conjuntura, era difícil ter sucesso. Confirmou-se. Batalhou, de forma incansável, mas não foi feliz, os tempos ainda não davam para garantir um Benfica pujante e apetente pelos triunfos e títulos.
Toni, o Toni do Benfica, deu sempre mais do que recebeu. Mora nas cercanias da Luz, ainda hoje diz que o carro se engana e vai a caminho do anfiteatro rubro. Coisas de Deus? Ou coisas do diabo? Coisas, seguramente, de um coração vermelho, cujas hemorragias, de felicidade ou de dor, pronunciam sempre Benfica. Pronunciarão sempre Benfica.
 
[FRANKFURT/ALEMANHA] 
 
* No brilhantíssimo “António Simões – Personalidades e reflexões do mais jovem campeão europeu da história.” Editora QuidNovi, 2013 
 
Teremos sempre Casablanca

por José Marmeleira, Ípsilon, 20/12/2013

Conversa secreta entre Casablanca e Hiroxima Meu Amor, que surgem nas salas

O que fazer hoje com Casablanca? Vê-lo como um filme de matinée, que cristaliza a utopia de um mundo ideal em que os bons, os justos e a virtude saem vencedores. Ah, doce ilusão, como tantas as que Hollywood criou, impossível ilusão tais os artifícios, os truques, os clichés que ele encena e exprime. Porque não podemos esquecê-los, fingir que não os vemos. O que aconteceu? A inocência secou, o espectador de tanto ver deixou de olhar. Não podia ser de outra maneira. Auschwitz e Hiroshima, o Vietname e tantos outros infernos. A torre de babel erguida pela multiplicação e afirmação das diferenças. A ânsia incontrolável de tudo reduzir a um texto, a uma construção. Demasiadas forças para um filme feito de cartão e olhos brilhantes, em que a propaganda e a história de amor se enovelam. Até o seu lugar na história do cinema, apesar do elogio de alguns críticos, permanece modesto. Esse é o destino reservado aos filmes que não passam de mero escapismo, cultura média para um público médio. Eis a sentença. Como é diferente Hiroxima Meu Amor, de Alain Resnais, com as suas imagens verdadeiras, com o documental a abrir o caminho para ficção, guiando-a. O espectador sabe onde está. Existem, é verdade, coincidências. Ou melhor, há, referências, ou (porque não?) clichés comuns aos dois filmes: o nome Casablanca, cigarros e álcool, um avião que parte, a Marselhesa e um amor impossível. Podem ser explicadas: as artes narrativas pilham com frequência o mesmo repertório e há uma evidente contiguidade em termos históricos: são ambos filmes tocados pela guerra. Mas Hiroxima Meu Amor é um filme de traumas depois da barbárie. Traumas no espaço, nas relações, nos corpos dos amantes (Elle/Emmanuelle Riva e Lui/Eijo Okada) que deambulam atormentados pela persistência do passado no presente e a erosão do amor num mundo cada vez mais abstracto, sem verdade, sem mentira (não é isso que a “Marselhesa” que passa, muda, nos diz em surdina?). Só as leves carícias que trocam, o desejo, lhes transfiguram a angústia (“Dás-me muita vontade de amar”, suplica Lui, o amante japonês). Há uma ternura neste filme que resiste à memória e ao esquecimento que as personagens tanto combatem, tanto temem. E no fim, se não se reconciliam com a História, aceitam-na. Ele é Hiroxima, ela é Nevers. No passado, no presente e no futuro.
 
Mas voltemos a Casablanca, esse filme modesto e fantasioso. Tentemos olhar mais do que ver, aceitar a história que nos propõe. Quantos não viram nele, durante a adolescência, um consolo para descoberta das atrocidades nazis? Um refúgio temporário da confusão do mundo? Sim, os olhos de Ilsa Lund (Ingrid Bergman) brilham demasiado, mas nas suas palavras, no seu rosto, ressoam uma beleza e uma dignidade que fazem falta (apaixona-se pelos valores, apaixona-se pelos homens). E Rick Blaine (Humphrey Bogart)? De rosto feio, afundado em olheiras, quando interrogado sobre a sua nacionalidade responde entredentes: “bêbado”. Não arriscará o pescoço por ninguém, até o que passado reaparece ao som de um corpo e de uma canção. Depois, Casablanca far-se-á de luz (com presença luminosa de Ingrid Bergman) e de sombras (quase sempre nas costas de Bogart) e a propaganda desaparece sempre que o piano toca As time goes by. A amargura de Ricky vai, então, transformando-se na ironia teimosa, na maturidade existencial dos velhos (atributos do homem bogartiano, segundo André Bazin). Continuará a fumar e a beber, sem se rir (nunca se ri), sem se entusiasmar, mas já se libertou do passado. E esse momento acontece cedo: quando autoriza que a orquestra toque a Marselhesa sob a direcção de Lazlo. Por isso quando Ilsa lhe confessa não saber o que está errado e o que está certo, ele já decidiu por ela, por ele, por todos, com as sombras e a luz transformadas em nevoeiro. É um dos momentos mais belos e justos do cinema e, por isso, dos mais memoráveis. Setenta anos depois da sua estreia, Casablanca resiste não apenas enquanto filme (e é um grande filme) mas, como obra que, com as suas ilusões, nos ensina uma conduta, uma ética. A de um homem de cara feia, fumador, que, a favor dos bons, aceita a condição humana com a maturidade existencial dos estoicos. Onde estão eles hoje e os seus filmes?
 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

 
 
Tantas certidões de óbito que desde sempre se enganaram que não dá para acreditar. Violentos tiros, acidentes brutais, desfigurações cruéis, cinzas primeiras. Silenciosos rasgares, bizarrias e estraçalhares trágicos, avisos terríveis, acusações directas, vinganças. A causa da solidão foi a que mais virou a cara ao papel e à tinta derradeira de tantos homens ou de tanto ser, solidão nunca escrita, sempre calada. O arrepio de não saber onde ir ou o que fazer e para quê, a questão primeira e última da finalidade, o amor jorrante tristemente não dito, nada matou tanto como essa vadia. A morte é uma flor que só abre uma vez, começou por escrever o poeta Paul Celan num dos seus mais dolentes e lúcidos versos, para acabar soprando que Abre sempre que quer, e fora da estação. Houve quem já trouxesse este tipo de vento da barriga da Mãe, houve quem o possuísse nas rajadas da vida.
 
Nos velórios é que nos costumámos lembrar do que andámos a provar…Astros, cometas, gazes, poeiras. Espaços tempos infinitos convergindo aos terraqueamente cronometrados milésimos. A terra batida ou o macadame diário, o bom dia dos simples e a vénia forçada. O pão que se dispensa à saída da venda, o copo que não se bebeu sem justificação, a pança a abarrotar de pura gula. Equações simples, instinto afiado. Senhor, animal. Criança, charlatão. Essa morfologia das coisas, a ascese transfiguradora, secreta correspondência entre tudo de tudo.
 
Film noir é realidade. Noir, negro, escuro, desamparado, despido, términus. Tanto quanto o melhor verismo, naturalismo, realismo. Toda a contenda das luzes e das sombras, dos volumes e da fantasmagoria, todo o inferno de ângulos de câmara, descentramentos vários, filtrações dúbias, reflectores e deflectores torcidos, só serviu para expor essa evidência. Reconhecimento do corpo e coração e bafo, anatomia do lugar e da hora. Estamos neste mundo e ele foge-nos. Caleidoscópio evolutivo e irreparável que séculos e séculos de evolução não conseguem amainar.
 
Era apenas um homem. Richard Widmark, Harry Fabian, no “Night and the City” de Jules Dassin. Foi há uns tempos que num tasco tão igual a tantos sujos outros apanhei um bêbado genial que por acaso acumulava as funções de servente e disc jockey e dono, e que depois das típicas e genuínas considerações e divagações só permitidas a alguns felizes nesse estado atirou: só há uma coisa que me deixa fora de mim, a coisa do coitadinho; coitadinho, coitadinho o caralho, cada um faz por si…e se possível por todos. Genial remate e moral para o ser humano maravilhoso que lhe estava marcado nos olhos, na voz, na vertical inteireza, na raridade que não dá por si. Passado pouco tempo lá voltei e o seu estado sóbrio já o atrapalhava nas bebidas oferecidas como na não lamechice da sua colecção de discos já todos riscados de sempre a mesma cantiga.
 
Apenas quero ser alguém, é o que brada furiosamente para o calhas o artista sem arte Harry Fabian, a eterna terna convulsa criança como também lhe chama a amada de Gene Tierney; terna e violentamente atormentada por marcas imemoriais da raça. Dos seus delírios de grandeza e dos sonhos irresponsáveis até à madrasta sorte e à sua preguiça do deixa andar; desenrascanço inocente e apelo dos brinquedos e da noite cortado por uma chico-espertice que lhe assola as veias, HF faz parte da casta dos perdidos que jamais atiram a toalha ao chão, que vão à luta mesmo que sem chances nem anjos, que quanto mais levam mais procuram, flirtando com a morte como quem joga seduções com a mais formosa e fatal das mulheres.
 
O que me leva, à maneira do impagável Baptista-Bastos, a outra estória completamente verídica – quem o conta está aqui, quem o quer saber vai lá – a despropósito, e que se der uma luz suplementar a tudo isto será daquela qualidade atraente que a do Bar Cid adquire às sete da matina juntinho ao Tejo. Ainda no milénio passado o Pai dos meus dois melhores amigos de Bracara Augusta era construtor civil, outro mestre da aritmética da não-ilusão e das soluções artesanais que a crescente tecnocratização obrigatoriamente abateu, desses que em todos os Natais, Páscoas e férias grandes e muitas vezes pequenas oferece uma jantarada à sua classe operária, neste caso a trolhice de corpo inteiro e pura como só ela. Na churrasqueira habitual e despejados os garrafões de tinto habituais, talvez já depois do concurso de anedotas em que o Pintor insistia em Bocage com ou sem graça e era humilhado e de toda a confraternização seríssima e porca, surge um descontrolo aparentemente sem causa de alguém que eu não me recordo o nome mas que penso seria da dura áreas das betoneiras. Sou o maior Filho da Puta, dizia ele em loop, o maior Filho da Puta, o maior à face da terra. Não és nada, és um amigo como não se encontra, gritavam-lhe e confortavam-no, para ele insistir raivosamente e emocionado que sim, que o era, que mais do que isso, era o Filho da Puta número um. Eu sei-o, sou o Filho da Puta número um. Podiam-lhe falar em Primeiros-ministros ou dirigentes futebolísticos que ele não cedia, àquela hora tardia e na circunstância era o Filho da Puta número um. E Deus e os homens que o conheciam sabiam que no dia seguinte de pica-boi ele não iria ter competidor à altura, seria o maior dos profissionais e tipo porreiríssimo para o que desse e viesse na obra ou na intimidade. A coisa do Filho da Puta – proibido confundir com a filha da putice ordinária - ficava ensombrecida em recantos ou elipses que ainda menos homens saberiam. Antros benditos onde o cinema não tem qualquer hipótese de convocatória e que por isso mesmo só com ele pode rimar. Estou a falar desse inesquecível trolha ou estou a falar de Harry Fabian numa das mais portentosas criações de um actor sem herdeiros? Continuemos na obra de 1950.
 
Quando o negro que aprisiona todo o filme permite vestígios de luz e utópica transparência para o conto e a dita magia penetrar e obscurecer a tela, já esse pequeno gigantesco delinquente de fama feita corre, suspira, geme, pede desculpa e vai mais além no golpe, engasga-se e apraz-se como que eroticamente. Ser pululante ou super-herói invasor de telhados, chaminés, ícones, à beira do céu e de estrelas que o olham com pasmo por estar onde costuma estar a animalada ou perto de Deuses. O seu movimento é o movimento do filme que por sua vez é o da vida dele. Contendo todas as energias do chamado bem e do chamado mal, do bom homem e do seu oposto. Movimento total que nunca se decide, em fluxos enviesados, estabilizações enganosas, escorregadelas constantes, sem nunca entrever um centro de equilíbrio, coisa sadia. HF não anda, desliza, voa, baila, ri e ri-se, chora, aflige-se, solta-se. Viu e ouviu o mais grave mas também aposto que sabe da beleza suprema que não muitos mais sabem. Gene Tierney, sim, mas também os brains and guts que se orgulha de ter e que ainda aposto que rasga o que muitos de nós não rasgámos para nos borrarmos todos. Esse início é extraordinário e representativo como água queimada e fogo gelado porque nos apresenta na cara a complexidade de alguém, a impossibilidade de etiquetas e mitos estúpidos. É um movimento de um simples e uma correria sacra, cósmica, eterna, além.
 
E a penúltima cena, essa sublime e comoventemente desossada antes de ir parar à fossa ou a um paradeiro de escassos. Quando vai ter com uma velhota que de certeza andou com o monstro ao colo, lhe terá dado leite e não se lembra de dele não se lembrar. Ele aterra ali naquele País tão bonito de humildade e não lhe pede um doce mas pede que o ajude a parar de correr. Arrepende-se possivelmente porque já sente a morte como antes nunca a tinha sentido e começa a desfiar passado, as coisas que eu fiz, ela amava-me, tive perto do topo e da fama, aquele rosto, etc, etc. E ela reaparece ou aparece daquela maneira como só ao cinema foi concedido, sempre coisa de aparições, coisa de varinha mágica e realidade escancarada e viril e perigosa, de inexplicável e de contracampo fulgurante, para abraços últimos, olhares últimos, beijos últimos. E faz-lhe saber mais do que amor, de admiração, trabalhaste mais do que todos…sempre nas coisas erradas. Que faz raccord inconcebível com algo que lhe infligiram lá para trás, aquilo de quem nasce hustler vai morrer hustler. Hustler que quer dizer mais do que o aparente. Monstro que se meteu com monstros de outra ordem se calhar eunucos. E não falo dos monstros da luta livre ou greco-romana que o iludiu mais uma vez ao negócio da sua vida. Ou todas as ordens cambiadas – pois há monstros maus, monstros bons, monstros generosos, monstros vingativos, eróticos, sublimes, feios, bonitos… E novamente o corrupio catatónico, a afogação, entropia. E todas as desconfianças, demências, acusações. Reverso do amor que jamais os cimos, os controladores dos fios e das agulhetas, lhe permitiram soltar sem a cópula que o corrompe.
 
O esgoto, o cigarro na vez das flores, o apagamento. E a solidão vazia, o vazio da solidão. Certidão de óbito cancerosa. Era só um homem. A outra gaveta, a do género…Dassin e o contraluz, nevoeiros crepúsculos ou fumo de cigarro de vida e de morte, predestinação…Dassin agarrou em tudo para penetrar no mais fundo da ferida como no mais fundo do sexo se entra já arrasado de cuidados…e tudo se simplificou naquela verdade dolorosa em que se sabe tudo e já não sabemos mais nada. Só um homem.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2014





notas autobiográficas

nascimento: Lisboa, Maio de 1948, freguesia de São Sebastião da Pedreira


«Nasci inoportunamente de um casamento que não deveria ter acontecido. Um pai nascido numa família abastada mas arruinada, de valores decadentes. Mãe de família elitista, remediada, de valores elevados. Já existiam duas meninas e, da esperança que eu fosse rapaz, o prémio de consolação foi ter nascido bonita. Cresci entre mulheres, alternando estados de depressão com os de revolta, sem obter grandes resultados. Para fazer o complementar dos liceus, frequentei nove colégios, tendo sido convidada a sair de alguns. Casei aos dezoito anos com um esquizofrénico de quem tive um filho, que cedo se fartou de tudo isto; morreu aos trinta e um anos num acidente de viação. A minha passagem pelo cinema começou em Bruxelas, quando desisti de estudar psicologia (tentativa de entender o então meu marido, que se fartou de o ser e partiu algures para o Brasil) e resolvi experimentar uma escola de cinema que me pareceu bem mais divertida. Já em Lisboa, tive a ilusão de poder conciliar a subsistência com uma vida criativa e mais comunitária, participando na formação de uma cooperativa de cinema, a Cooperativa Virver. Aprendi muito sobre o comportamento humano e o suficiente sobre cinema, que me permitiu realizar O Movimento das Coisas. Depois, já desiludida, fechei-me em casa a bordar, desenhar, pintar, ler, ouvir música, e a receber os velhos amigos do passado e os novos que não estivessem ligados ao cinema. Assim sobrevivi durante alguns anos, saboreando a liberdade de gerir o meu tempo graças ao apoio da família e de alguns amigos, e ao meu trabalho na criação e restauro de peças e objectos que vendo em antiquários. Recentemente, arranjei trabalho numa loja de fotografia para poder vir a ter uma reforma um pouco menos miserável na velhice.

Manuela Serra, 2000

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

 
 
Armistícios, canhões, espadas, lama e glória, pólvora, fé, danação, remissão e eco. Catedrais magnânimas e fedor de hospital. Marchas, sinos, ecrãs a cinza queimada. Genuflexão a cortar para os delírios febris dos amputados e dos loucos. Alegrias sem nome. Verbo redentor. Movimentos circulatórios indefinidos do cinema ligado à crosta do mundo pulsante. Atracção por meio da violência e inevitável repelimento ao mesmo nível. Eu sou a Ressureição e a Vida, disse o senhor…Isto é não dizer nada dos três minutos inaugurais do “Broken Lullaby” escavado aos altos e aos baixos por Ernst Lubitsch em 1932. A Terra em chamas e a Terra em paz. Finada essa sequência em que ao maior gáudio corresponde a mais cegante e ensurdecedora das visões e da música, vai-se mais fundo. O corpo de Cristo pregado morto há eternidades. A câmara desce abissalmente a pique e no mais angustiado presente revela a mais desgraçada existência possível. Depois da multidão confluente e una, o individuo isolado e destroçado da eternidade. Ajoelhado e pronto para tudo. Retrancado mas implorante. Mas nem Padres, nem Deuses, nem acreditares etéreos. Nem o mal se decide na sua famosa eloquência. A mais estralhaçada prece metafisica será sempre calada pelo aperto mais físico. O físico mais assumido, o tal absoluto físico ou a suposta coragem que daí pode advir, a latência destruidora a todos inerentes, também dobrará os joelhos perante ciclópicas batalhas internas. Da Santa Casa impotente aos regozijos do Inferno o movimento é tão circulatório e brutamente oposto como o buraco que precede o berço e se segue à morte. E a Virgem e Filho e estética religiosa e pictórica e ética só apressarão o caimento das despes. Coisas assim postas, a lógica do ilógico salto para um abismo sem fundo nem lei que só pode ter a ver com o curso da câmara atrás descrito.
 
O que a guerra faz aos Homens. O que a vida faz aos Homens. Viver mata, nas suspensões animalescas ou nas naturais catarses. Paul Renard, entre Peter Lorre, os amadores de Robert Bresson ou qualquer um de qualquer quadrante que se sujeite, é esse pobre que no campo oficioso de batalha matou o seu próximo e nunca mais teve sossego aquando da pausa do circo. E nada o ilude, nenhuma areia lhe chaga a vista, e possuído decide penar para a terra do defunto parceiro de ofício, vaguear no seu cemitério, conhecer os dele, do que esse cheirou, amou, pisou, prometeu. Quem crê em mim, mesmo que tenha morrido…O que por aqui acontece noutro A Perfect World jamais é da ordem dos fardos ou da expiação. O que advém e agrega neste A Perfect World são as chamadas almas e os chamados destinos totais, vagueantes, clamantes. Crentemente ou nada disso o que nos aquece e arrefece lado a lado ao mapa irrecusável dos encontros.
 
Se é pela música que no términus Renard e a noiva viúva se unem e a nova aurora brota todos os mais belos primeiros raios de sol, foi pela música que tudo se despoletou, entre cartas decoradas e olhares sem correspondência possível que todas as dimensões abrem. Amar vivos em relação ou ainda em corelação com os mortos, como das sombras vincadas do questionamento se irá fazer a única alva luz exequível, castrar todos os horizontes biológicos e demasiado humanos para almejar totalidades plenas. Ernst Lubitsch a abrir alas, túmulos e vidas para Max Ophüls e Manoel de Oliveira, Cartas de Desconhecidas ou Virgens Mães. Ali naquela sinfonia mais do que perfeita, todos os fantasmas e todo o tempo.
 
Falava assim em mundos perfeitos quando tanta tortura e transgressão para o final feliz? É preciso que se repare e se sinta o Sol muito forte de Renard e da mulher que o acolhe, do Pai e da Mãe, uma temperatura e uma beleza para lá do decente ou do comungado, que tudo descarna rumo a tesouros prometidos e há muito vilipendiados. É esse sol e essa gravidade que se solta na mágica, surreal e absolutamente verdadeira cena do cemitério das Mães. Vêm chorar os filhos, tocam-se, falam, mas o poder da palavra e da expressão perde a sua estudada etimologia e decência outra vez e elas falam de receitas caseiras, quantidades de açúcar, pecados e malandrices, descobertas ainda e para sempre, amam-se sem o dizerem, agradecem-se sem obrigados, volvem-se adolescentes e assim ressuscitam os seus e tudo. O cinema como crença na reposição e no milagre. …viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá…
 
E a câmara ao encontro dessas estrelas maiores, desses eclipses supremos, incalculáveis, a sua energia, mecânica e ciência a chocar com esse desprendimento cósmico do corpo e da alma, da dura matéria e do celestial evanescente, sol de alegria e chuva das lágrimas, chumbos na carne e mimos maternos, tudo de tudo a ser acariciado pela lente ou cuspido ou uma coisa e outra ou só uma delas, tudo a ser quebrado, o vidro da lente a partir-se, todas as vibrações e ondas e físicas e químicas e oferendas Bíblicas a chocarem lá pela objectiva e já nos espaços fora dela e nos off, a emaranharem, a criarem novos desconhecidos e a retirarem incertezas. Maquinismos, saber antigo, dúvida, carácter, dos Homens e dos Deuses. Tesouros de alguns poucos esventrados como oferenda suprema de uma prática cinematográfica que nunca cai na usura mas ao mostrar conserva mais ainda a raridade. A máquina de Ernst Lubitsch ou de quem a quiser, o Sol nosso e o sol da Terra. Não nos devemos meter com alvuras e brilhos potentes demais, desconhecidos demais, talvez a não ser que a resposta como dádiva a isso seja igualmente suprema demais - é a generosidade em “Broken Lullaby”, o seu amor em progressão como mais tarde Jean Renoir faria com os elementos naturais, animados e fecundos presentes em “Le Dejeuner sur l'herbe”. É preciso que se mereçam ou nada. E anunciado um Mundo Perfeito que, mal dos nossos pecados ou equação simples demais, quanto mais ao alcance mais irrealizável. Ou todos os opostos se encontram no desencontro perfeito.