quinta-feira, 23 de maio de 2019



As belas mãos do jovem Bonaparte servem para tocar música sublime como que chegada do espaço dos anjos mas também servem para ostentar umas garridas luvas de boxe e matar um seu semelhante. William Holden no seu primeiro grande papel, logo para o inventor e sempre dividido Rouben Mamoulian em “Golden Boy”, quis conquistar o mundo inteiro e só acordou desse sonho quando se destruiu a si mesmo. Noutra potente variação de “Dr. Jekyll and Mr. Hyde” esse verde Bonaparte a longo caminho de Napoleão vai descobrindo no desmame do seio uterino que o maior dos dons tanto pode fazer desabrochar um novo mundo como mergulhar na sombra fatal todas as promessas. Mamoulian, as questões confinadas de Clifford Odets e homens da torrente e do nervo de Daniel Taradash espetam em centro a ternura de um Pai, a filosofia de um príncipe discreto a envelhecer noutro tipo de sombras caseiras, a mulher extraordinariamente sincera e claudicante sobre ondas do quotidiano de Barbara Stanwyck (dupla de Bonaparte em mais um espelho estraçalhado), o mafioso como a outra face da moeda desses todos (com argumentistas convencionais este seria logicamente o vector da redenção), para ser o pai do rapaz morto em combate a apontar de novo o caminho ao perdido ---» cada um tem o seu fardo e não se pode fugir dele. O guião torcido, a morte torcida, a moral torcida, e assim postos na perspectiva ali certa - não a luz a devorar a metragem avançada da treva, antes a treva a ser aceite no indecifrável claro-escuro. O bem e o mal na mistura retintada deste imenso filme sob a pressão de Robert Louis Stevenson.

sexta-feira, 17 de maio de 2019




Alias Nick Beal, John Farrow, 1949

John Farrow, o artesão da fundição “The Big «pichas murchas» Clock”, escaldou em 1949 o mito de Fausto, as escrituras sacro-profanas e todas as teorias do travestismo do demónio na mascarada e no bacanal New Age para atormentar o classicismo mais vertical e humanista que Howard Hawks alguma vez tocou - Thomas Mitchell. Ray Milland ostenta no seu lado negro os esgares, a subtileza e o magnetismo do demónio e em “Alias Nick Beal”, sem esforço, vira o certo e o errado do avesso, até a bíblia sagrada meter ordem nas coisas por alguns momentos em last-minute-rescue. Sem delongas, sem pré-aviso sinfónico nem estereofónico, sem lógicas terrenas ou argumentistas, as suas aparições à P. T. Barnum em negativo surgem literalmente do nada abissal. Se o acordo capital com Mitchell falhar, a ilha das almas perdidas está à espera deles...

Mas essa ilha percorre e contamina todas a neblinas e nevoeiros adormecidos que ressuscitam das águas e de por baixo das árvores na clandestinidade das leis e das políticas, neste mesmo mundo onde nos é escancarada numa plasticidade de impressionismo francês a la Dimitri Kirsanoff ou Marcel L'Herbier que um corpo morrendo e reencarnando as vezes sem conta que o mal maquinar, num parlamento ou numa negociata rural corriqueira, a fundação original permanecerá à espera também de voltar a ser acordada, pelo que quem credita que está a fazer o mal julga que está pelo bem e vice-versa, sendo essa a tragédia. Na densa cegueira, apenas o apelo ao vulcão inicial e único que certa vez nos abalou e nos fez nascer novamente, prossegue, neste caso, as mulheres e um espiríto tão clínico como santo.

Alias Nick Beal” unifica em guerra, entre tantas coisas, o fogo de Jean Renoir e a frieza de Cocteau, para não ir à americana danada de Flannery O'Connor, volvendo-se um dos cúmulos da liberdade cinematográfico, mesmo que vendido por film noir ou crime movie saido da fábrica de sonhos familiar. No seu molde fabril, à espera de uma solidificação outra, a convulsão em bruto explode para onde calha. Mas, para lá da esfera da arte, imaginem o que seria em tempos um anjo bom descer e tornar um Cavaco Silva humano, ou agora mesmo um diáfano qualquer tornar um Trump honesto, a quanta massa de gente isso assustaria?

sexta-feira, 10 de maio de 2019

anos 90, rtp 1, depois das duas da manhã


O Robert De Niro de "Midnight Run" pode começar por parecer um bandalho, um chico-esperto, um impuro e por isso mesmo um puro maverick do cinema americano, mas depois encontra-se com a mulher e a filha que já não vê há demasiados anos e fica-se logo a saber do bom coração dele, da coragem extrema, de um ser convulso que se decidiu apagar, sujar, e entregar quem ama verdadeiramente ao inimigo para não se sujar onde mais importa e para não magoar esses outros que são a metade dele. No embate frontal de olhares, de elipses e de orações com a mulher eterna faz todo o amor que não fez nesses anos e ambos oferecem tudo um ao outro. Com a filha ainda lhe é permitido espreitar o berço da infância e dos sonhos e planar com ela num paraíso perfeito em breves segundos. Tudo aí é perfeito e belo, em oposição aos games com a máfia e com as autoridades, como bela é a relação com o tipo que tem de prender e não prende pois aprende e já sabia que não se pode prender um Robin Hood. Nesse jogo do gato e do rato que ocupa a narrativa toda, coast to coast, prisioneiro e caçador são uma e a mesma coisa, anjos de um firmamento que decidem beber as fezes até ao fim para renascerem limpos. Martin Brest, o realizador, percebeu toda a subtileza e complexidade da epopeia formal americana e assim vemos tudo por uma lente também ela pura e límpida, para uma double bill perfeita com o que Jim McBride urdia em êxtase na mesma época - "Breathless" ou "Big Easy". Fabulático!
p.s: o genial Philip Baker Hall, rugas de Hollywood, sempre no fundo que interessa, tipo John Goodman para Clint Eastwood, outro anjo que do lado que está não pode ser ouvido, mas que permanece fiel. Sidney chamado, porta aberta para o fabuloso primeiro filme longo de P.T.A.