quinta-feira, 30 de outubro de 2014


Pessoas estupendas que perdem a cabeça... trocam a vida fácil por uma bem pior. Como os que falam, falam e falam, expulsam tudo cá para fora e são felizes... e aqueles que guardam o que importa e o que pensam não importar dentro de si, e sofrem. Alguns, no acaso. "Sleep, My Love" é Douglas Sirk já inteirado na América e ainda conservando um perfume letal e letárgico que se pode provar apuradíssimo no soporífico "La Habanera". Existe neste de 1948 uma fúria e um afogueamento que já adivinha aberturas para "Written on the Wind" e familiares próximos - e o primeiro plano do comboio contra a câmara define logo o ritmo e a sanguinidade - bem como uma demência Hitchcockiana que está nos pactos, trocas e perdição carnal, o que não impede uma fluição venenosa que tanto larga das ambições podres dos protagonistas que armam o cerco como de um meio feito de electricidade domada, reflexos manietados e clarões cúmplices. Uma infame claridade que mina a natural escuridão necessária, que a marca para uma convocação de perigos indizíveis, reflexos sem espelho, violação do inviolável. Na cena mais prodigiosa do filme - que é um dos momentos altos das vicissitudes do cinematógrafo e dos perigos que este pode chamar - Claudette Colbert sai do sono para uma vigília suicidiária, e volvendo-se fantasmagoria põe-se pronta para saltar dos agudos píncaros sem rede, guiada pela voz e mente que tudo orquestra. Toda a dura sombra da maquinação começa a abanar, as leves vestes brancas tremem, a faustosa casa que é personagem fulcral como em "Rebecca" agiganta-se monstruosamente. O imóvel torna-se vivo e a salvação no instante final volta a acender uma realidade admissível e sabida. E é a imagem que devora todo o filme e que o irá reconstituir na conclusão.

Um pé no expressionismo e outro na maciça matéria com que a raiva luta. O antes e o depois de Sirk em confronto. Terminando com um plano ao para as estrelas onde o par certo se encontra abraçado com promessas de mundo novo. O confluir e o somar de tudo isso é mesmo capaz de ir para lá desses delírios a que depois chamaram de melodrama. "Sleep, My Love" vai ainda mais longe e fala do sono e do sonho da lógica contra a realidade escancarada. Dos que pedem para outros irem ao nosso cerne e nem notam o chamamento tão real que não se acredita. Por isso me fez algures lembrar o derradeiro Stanley kubrick de "Eyes Wide Shut", nesses prolongamentos entre consciência e inconsciência, nesses cruzamentos e finalmente na amálgama. Novalis escreveu: "Toda a descida em nós - todo o olhar para o interior - é, ao mesmo tempo, ascenção-assunção e olhar para a verdadeira realidade exterior", tudo isto já seria aqui credo ou ousadia. É o dia e a noite que se penetram e interpenetram, como os corpos tão desejosos do mal e do bem. Só ficam perguntas e caminhos cheios de estilhaços, para uma assunção pela ousadia. Quando se perde o medo de olhar o medo. É Sirk ao ouvido.


Obrigado ao amigo PR.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014


Existem alguns realizadores, como algumas pessoas e como tanto na vida, os quais não importa saber a sua exacta dimensão ou categoria. Robert Mulligan é um dos casos mais mal resolvidos de todo o cinema americano, pois basta sentir a silenciosa progressão e o afloramento filme a filme para estar entre os preciosos. Sidney Lumet pode ter um percurso desigual mas criou uma intransigente fortaleza moral que o protegeu em cada fase. E o que me traz por agora, destes três aquele que sempre se disse mais ligado à televisão e às suas técnicas e narração. Chama-se Alan J. Pakula, e bastava ter conseguido manter "All the President's Men" em sussurro no seu alcance desmedido para merecer ser revisto na intimidade.

Revisão e intimidade, foi o que me aconteceu com "The Parallax View". Exemplo cimeiro (embora na categoria secundária) nos compêndios da americana da década de setenta, representante da paranóia, da difusão e da escuridão ideológica e social desse fluxo e paralisia (primeiro e fundo paradoxo) de tantas revoltas e ressacas, foi de tal maneira esculpido e depurado pelo tempo que pode agora ser visto como jornada de procura e perdição de um homem por aí, neste tanto que assusta. É do mesmo ano do tão triste como e impressionante "The Conversation", e todo o arrepio de Gene Hackman nesse Coppola pode ser o de Warren Beaty - o homem acossado, a ter que mexer-se, sem saber bem o como o porquê e o resto, sem nenhuma metafísica que não essa. A estagnação em movimento, sem ser preciso recorrer às câmaras lentas e aos obturadores manhosos dos topos contemporâneos.

Se basicamente este Joseph Frady é uma antecipação (ou seguimento, se não ficarmos pelo cinema) do John Reed de "Reds", o ser humano antes do profissional que tem um demónio no corpo que o atrai sempre para abismos e guerras, estamos perante uma sombra que já se acomodou a ela mesmo, um alguém pregado na fatalidade do presente. Apanhado numa teia galáctica, tensa e suja como podem ser as da era moderna, essas geopolíticas e ditas aglutinadoras, Frady já há muito se desfez de toda a chamada vida familiar ou privada, da mulher no canto do olho ou do desejo que não o da morte em trabalhos e pelo estômago a moer. Deixa-se ir na corrente, esquece o bom senso que se nota o habitou, joga o jogo, e perde todas a certezas pedidas à redenção. Podíamos ter conhecido melhor este tipo e acontecer uma relação bendita, mas já não se foi a tempo. Um outro nível e profundeza de uma solidão altamente maquinada e diabólica. O estouro de luz final em surdina aflitiva é a violência intolerável, indesculpável, que tanta inteligência abstracta aplicou. A arma abandonada, o olhar de terror e a execução meio aleatória enunciam todas as hipóteses - do anjo ao assassino.

Para lá de bons e maus e moral conforme. Para lá dos arranha-céus e da paz dos rios e dos campos, da horta ou das estufas, das velhinhas oposições e dialécticas entre sombra e luz, umbrais negros e luminoso lar, a treva acabada é mesmo a confusão de todos os valores e promessas. Assim Abraham Lincoln irá assombrar e ser fragmentado em espalhafato e marcha, banal peça num circo rafeiro onde toda a iluminação e acordo se encontram jogados na má definição, sem sorte, pelas arestas e no grão que Gordon Willis não faz mecanicamente mas sim organicamente. Veracidade incómoda. Chegam a irromper os cânticos Fordianos, é verdade, mas já nada exalta ou aquece.

O resto, que é outro tudo, são os olhos e as olheiras de Frady, o seu vivo e o seu morto, as refeições na penumbra, os convidados inesperados que o congratulam pela tragédia, relações condenadas, pele deslavada a lixívia dos cadáveres e luz tetricamente sobrexposta, cegueira geral, a saída do abismo e regresso constante a ele que é o movimento prometido desta era. Esse mal-estar, essa falta de posição na cadeira ou na cama ou no centro, respiração que não sai bem, entre o vegetal e o sonâmbulo. A lei de Pakula finalmente liberta do espartilho da linguagem e da formatação, constantemente à procura do ângulo que ainda se safe. Mesmo que tosco, que pobre na grande linhagem. A intimidade do perto e a repulsa. O vasto paradoxo final.

terça-feira, 28 de outubro de 2014


O lar onde a morte se hospeda. A vida suspensa numa longa noite de cura. Sono de entre este e o dia de amanhã. Assim encontrámos Barbara Stanwyck no debate com o seu médico em "The Other Love", talvez ainda sem saber do lume da paixão que os aquecerá no fechamento do filme. Mas tão bom comportamento e saúde dessa cansa. Aparece Richard Conte num acidente e só acidentes e proibições lhe promete sem saber que não deve. Faz saber e redescobrir à pianista famosa que quanto mais rápido e perigoso se viver, melhor. Fogem. E ela entrega-se a ele, ao vício e à musica numa consumição sem horizonte. O vórtice vai-se torcendo e ela descobre que não anda a escutar o coração mas antes o apelo do risco. E volta para os altos Suíços onde o tal protector feito por David Niven se faz uno com ela. E de muitas possibilidades, uma ou duas em que acredito: ou a amizade com a doença à maneira de "A Montanha Mágica"; uma união tamanha que acredita toda a esperança para lá do resguardo puro - por isso o piano toca sem freios. Ou já a morte e o visionarismo do cinema no campo da plenitude sem nome ou estado - Dreyer e a absoluta fonte do Borzage "Song o' My Heart", ou do "Smilin' Through" que se encontra com "The Ghost and Mrs. Muir" algures a planar.

Numa construção que expulsa qualquer fundido de montagem - o hoje cross dissolve ou vulgo "preservativo" - mas antes procura sempre uma correspondência entre os elementos - as cortinas bailantes com as sombras fugidias, os discos partidos com a dança da tentação ou o som do teclado com a aflição e o nervo - o que está em causa é algo tão velho como a consciência - o viver o agora sem pensar nos resultados, ou apelar a algo como a eternidade. Em todo o caso, o engano e a utopia, a mágoa e o zénite. Questão grave que o movimento deambulatório acentua em perdição. Ou salvação. Sem respostas. 


Dos altos, do frio e dos sanatórios para as poeiras e as fúrias incendiárias das podres sementes do ódio que tudo querem envolver em "Ramrod". André De Toth utiliza a câmara para desvendar meticulosamente a partilha do homem com o meio e logo o poder que dá voltas na tripa, demorando-se em contemplações (mesmo que frenéticas e desfocadas) que parecem querer compreender o incompreensível. Da faca e esquadro duro dos policiais de outras andanças, uma esquadria mais resvalante mas tão concreta como aguentada por um olhar que insiste, que nunca dissimula ou descansa na metáfora. Joel McCrea, demasiado terno em palco viscoso, logo vamos saber, entregou-se ao álcool e à desgraça por perder os seus, e tudo o que quer saber é se o deus da terra em que vagueia tem razões para tal. Em torno, a mulher víbora que lhe lança do veneno feiticeiro que sabemos, o amigo de infância (Bill, génio de sorrisos e lágrimas misturadas que só poderia morrer com o cobarde tiro pelas costas) que jamais consegue assentar mas que não lhe vira as costas, o xerife convicto como o granito imperturbável ou os cavalos fieis, e a mulher alva que do primeiro sorriso lançado a McCrea e logo a ela devolvido nos dá a provar do que está certo e errado. Todos esses resistentes assomarão na clareza da moral derradeira. 

Corpos não param de tombar e de implorar junção. Dança ofegante entre o dia que parece revelar demais e a noite cava que preside à grande ruptura. Ramificações turvas em perseguição do recto. Para se chegar ao ponto limite onde toda a lei tem de ser ultrapassada pelo sentimento e pela justiça a sangue conquistada. O aço, o gelo e a imobilidade ecoante nos confins do tempo explodem no plano de preparação do tiro capital e na execução. Volta e reviravolta onde fica claro, na eterna escuridão da velha questão, o perigo da mistura de deuses e homens no nada. De onde o milagre, o além e as transmutações assentam por inteiro nas vontades e nas matérias. E o regresso a casa que se contrapõe ao outro filme de 1947 que De Toth parece fechar da mesma forma sendo tudo diferente. Entre os altos e os rasteiros, todos os embates. 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014




Há nuvens negras que se deslocam apressadamente para o sul
há filas de canas que oscilam e fazem ao vento a elegante reverência da vassalagem.
ou pelo menos da boa educação tudo se anima vibra soa na noite
O vento vai vencendo obstáculos dispõe cada vez de maior espaço
anexa pela violência territórios que ainda há pouco lhe opunham certa resistência
ensaia agora a sua vastíssima valsa na ampla sala da noite
canta uiva produz esse inimitável som impossível de procurar nas páginas dos
dicionários

afina a voz para as mais agudas notas do seu canto dilacerador e íntimo
Virá o dia muitos corpos afastarão finalmente da fronte os últimos véus do sono
muitos olhos procurarão a luz sentirei mais minhas as pontas dos pés
o canto quezilento e quebradiço dos pássaros no pátio nas árvores nos beirais
disputará o lugar à voz do vento nos meus ouvidos
Voltarão primeiro um por um depois em bandos os cuidados
as pontas dos cabelos compridos de mulheres jovens entrar-me-ão para a boca
mas é provável é mesmo muito provável que algures nalguma parte profunda e
perdida do meu corpo
continue vazia arejada e arrumada com o pó limpo uma sala exclusivamente reservada à única pessoa verdadeiramente importante
até que um dia eu para sempre me veja disperso no vento e não passe
talvez de um secundaríssimo instrumento na complexa e simples orquestra do
vento

RB




Comedy-drama about life on a not particularly important ship of the US Navy during WW2. A sinopse do imdb ao "Mister Roberts" de Ford, Henry Fonda, Joshua Logan, Thomas Heggen, Frank S. Nugent ainda, e obviamente Mervyn LeRoy, é perfeita. O barco da lavagem de roupa suja, da espera e do tédio, das mulheres ao largo, da prisão, da má fama. Uns que não pensam nisso tais como aqueles que não pensam na vida e na importância dela, e os que dentro dela, como dentro da guerra que neste filme nunca vemos, se pelam por tocar. Fonda sonha e tem visões de si no campo de batalha desde o príncipio, não por medalhas ou heroísmo, mas pelo fogo dentro dele, incêndio junto com solidão que o verga e desvitaliza. Está inaceitavelmente triste e dividido na pasmaceira mas ao lado dos jovens que cedem ao maior dos tiranos por cima deles, a escabrosa personagem de James Cagney. Os ferimentos e questionamentos do seu lugar ligam-no bastante ao Wayne de "Rio grande" - há uns dois planos dele como lobo descarnado junto da amurada que só Ford pode ter filmado - mas na cena crucial em que ele cospe verdades à cara de Cagney (que só foi desenhado assim para a cena e o exemplo ter mais sentido) sobre carreirismos e orgulhos bélicos, revelando que o maior mercenário pode estar atrás de uma secretária, expondo-o ao ridículo em rima com o pano de fundo em que vivem ou trabalham, é a catarse e a validação - tal negociação da liberdade dos homens do lixo tornou-o ali o terno guerreiro. Depois ainda se perde, literaliza o ódio ao chefe, imola-se mesmo perante o destino irreversível. Mas o seu espírito abraça tudo e a atitude final de Jack Lemmon faz parte da herança dos grandes.

Fonda queria tudo como na peça original, essa verdade, os Homens e o Meio como tinha visto e feito no teatro. Ford só queria saber da potência e beleza da luz, das piadas baixas com enfermeiras e bebedeiras, do supostamente secundário. E o verniz estalou, caiu molho entre os dois, nunca mais se falaram. O filme mais problemático de cada um. Não vou dizer que não importa o que LeRoy filmou pois é tudo Fordiano, como não me estenderei sobre o genial "Young Cassidy" que ele nem cheirou e que é um topus da sua obra. "Mister Roberts" faz jus ao título, e o que importa é o momento agudo e fino em que esse coração grande e despedaçado escuta o célebre discurso depois da tempestade - as pontadas, o calor e o frio, a contradição e a grande farsa a falarem ao íntimo. Poucas vezes se senteu tamanha desamparo, tamanha profundidade da desilusão, e a transfiguração. A precipitação seguinte, a tempestade derradeira e a moral brotam da ferida da inadaptação. Inaceitável estado perene da raça, círculo sem saída, que as supostas manobras de diversão de JF apenas tornam humana demais, contrapondo ao habitual choro e enlevo oficial a força do olhar de frente e do sorriso. Entre o rosto magoado demais da cena nuclear e a bandalheira que ninguém quis, tudo cabe. As utópicas serpentinas da abertura, e a ressurreição final. Evidentemente que o seu filme seguinte devastaria o resto.


sexta-feira, 10 de outubro de 2014



Assim como "Anatomy of a Murder" era segundo Serge Daney o périplo de um parvo (carinhoso) que entre duas de pesca e o regresso à barra do tribunal reaprendia a amar; ou "The Big Steal" a odisseia de outro apressado que não consegue cortar o cabelo na tamanha vicissitude do ofício; "Gideon's Day" trata da Autoridade e da Desautoridade que até aos confins da noite não satisfaz a mulher com o salmão tão desejado. E, nestes casos como tanto em John Ford por este período, as pequenas coisas da vida chegam às grandes e umas e outras já são a mesma coisa no novelo geral. A côdea a saber tão bem como o miolo. As altercações entre Lee Marvin e John Wayne na Taberna Irlandesa como o episódio de Dodge city em "Cheyenne Autumn", não esquecendo descabelamentos à maneira do pedido de casamento marítimo no "Submarine Patrol", comportam o essencial. Desvios da grande engrenagem e da grande história. Estradas secundárias piores que carreiros. Um valente prego no pão na tasca desafamada.

Esquecendo os topos, as irrisões, os escapes, talvez fosse de bom proveito ver as cores de Gideon's em relação às cores de "What Price Glory"; o classicismo à frentex e Shakespeariano de Joseph MacDonald / a guinada do Inglês Freddie Young, companheiro de David Lean e da sua paciência que aqui mais parece um revolucionário operador free cinema em sabotagens camufladas. Para lá, ou cá, nunca o saberemos, da leveza, dos tais episódios sem grande importância ou gravidade, dos peixes fora de água (já não falo só do salmão) ou das lições exemplares, um emaranhado que destapa a rotina, cede posse ao inesperado, troca os eventos e a sua ordem capital; suspende o fluimento e privilegia um ângulo, uma questão e uma sombra alheia em relação ao que vai ganhando peso; enfim, num relativismo que não nos diz que isto não é assim tão mau ou que o sentido é não ter sentido, antes que no meio deste caos à sempre lugar para o quadro em que o empenhado Inspector acaricia e recupera instantaneamente nos braços da sua amada. O beijo da salvação. Manto das redenções. Aparição da tal luz inextinguível da confiança e do amor.

Que saia a correr novamente e que o final rime com os princípios e os meios na tal aceitação do "que remédio", que o peixe na última da hora vá ser comido por outra boca... a cavalgada prossegue, as caravanas continuam a rumar a Oestes novos, os quartos e o amor sempre no contra-campo que será sempre o centro do campo. Ford a mandar às urtigas os arqui-inimigos? Não juro por nada, mas já em 1958 e fora do seu terreno e da sua lenda, ultrapassava a afinação do thriller contemporâneo, o humor macabro do seriado, a manipulação narrativa dos masterminds (continuo a falar de JF e não de Hitchcok). No ano a seguir regressou aos lados e à poeira da Califórnia para filmar como se filmam politicas e junto ao desassombro do Irlandês-Americano de Spencer Tracy. As voltas...

quarta-feira, 8 de outubro de 2014



Minor ou Major, mas ressalvando já que o acho espantosamente à altura de tudo o resto, "Mary of Scotland" é uma das viagens mais indómitas e delirantes da obra de Ford, que continua a escapar aos chamados Fordianos por aparentes desvios incontroláveis, daí muita da sua rejeição. A romântica e acossada Hepburn imprime o seu carácter e a sua vontade à forma, ao ritmo e ao tom incandescente como irredutível de um todo sôfrego mas imponentemente erigido. A marcha vai da surpresa inicial e da paz podre, sempre com a inquietação ontológica a acariciar o repouso (anunciada nos grandes-planos nunca tão grandes), cavalga para a vetusta inveja e para o desafio ao fanatismo vestido de profecia moderna, liberta-se e desfaz-se em enganadores acordos e nas pagas fatais; para antes da abismal e pacificadora - é este paradoxo a chave - ascensão aos céus, ter o seu momento absolutamente perfeito do instante fugaz. Momento que complementa em êxtase e eternidade com o filho arrancado dos escritos. Estrelas negras, cadentes, brilhantes, ofuscantes, talvez propícias, recantos sombrios da infância e do segredo do berço convocados para pincelar o que nunca vemos e já só nos chega pela palavra e pelo rosto indomáveis; são esses mistérios universais que tecem e ordenam as sombras, que obscurecem os quadros em vertiginosas composições numa consonância com o tremente presente, são elas ainda que desafiam destinos. Vinte dias de amor a valer a plenitude, esses que jamais se trocariam por séculos de Reinação. E o amor e a morte para lá da lógica comum, numa irracionalidade que quebra todas as barreiras dos tempos e dos espaços, toda a física, resiste e ultrapassa a prova do toque da carne e da posse do corpo, atravessa e devora raios, trovões, árvores e firmamentos caídos, mares e rezas em suplicio final. Êxtase dos sentidos e dos fundos. Romantismo anárquico (mas com foco bem claro) e aniquilador (o que não mata endurece) da mesma fibra de Ethan Edwards, em limites e deslimites que anunciam toda a pancada de um futuro François Truffaut (é comparar a "L'histoire d'Adèle H.") ou que para trás falam a Barnet ou Murnau. Camilo. Schubert. Inarrumável. Pulsante.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014


Culminando a espantosa colheita iniciada em "The Shamrock Handicap", continuada com "3 Bad Man" - e terá de se contar sempre com "The Blue Eagle" que só por si convoca o terreno mais ferido e complexo de Ford - "Upstream", numa mascarada triste como poucas por tão clara exposição, fecha o círculo das vontades e dos humores humanos tão incisivo como. Um mundo dentro de um mundo onde o surreal opera subterraneamente como que advindo da cena do hospital que em Shamrock tudo fazia planar para outros níveis; e no qual a ânsia de poder jorra com um brilho mais letal do que a pólvora de Bad. Finalmente, já a aparência se tornou infinitamente mais importante do que a convulsão. O galã já esmagou Hamlet. E as câmaras só apanham o sorriso ensaiado e o gesto composto, abrindo todos os campos para as monstruosidades e deformações de "The Last Hurrah". Por isso há que abrir os olhos para o estupefacto Ely Reynolds, ver onde ele se posiciona, o que revela, escancara, do que foge, e o dito tão enigmático que solta pouco antes de se esfumar. You´ve done lost me, secreto mas tão significativo e orgânico como os vírus do seu outro filme com Ford. O mesmo vírus.

domingo, 5 de outubro de 2014



(lembrança de treze meses)

Aquele homem que está ali, tanto ano no estrangeiro, e não pára...podia gozar a reformazita descansado... valha-o Deus, mas também...se pára, morre. Tantas vezes escutei disto sobre o homem da enxada que nem aos domingos a arrumava, como sobre o habilidoso das ferramentas que tinha a garagem aberta dia e noite, que se tornou fácil reconhecer esses Homens de Vida. Em "E Agora? Lembra-me" reconheço pelo menos dois dessa estirpe, que não são somente os feitores (bricoladores) do filme, mas na mesma medida bombeiros, cientistas, amigos, músicos, homens da câmara de filmar, pioneiros, sábios de barbas, já muito antigos e de sorriso infantil. Que não se entre pelos romantismos mais pueris adentro, não se trata de depender de fazer filmes para viver, mas sim no confronto com a danada da morte que dizem a certa altura não estar longe, continuar a fazer o que na longa vida sempre se fez, igual a si mesmo, subir rio acima com o dedo partido. Muito longe da sumptuosa curtição da convalescença à Benjamin ou Walser e afins, sempre a dar-lhes trabalho. Aquando da morte de João César Monteiro de chofre - trata-se de um bloco sem tempo - em vez de exaltações costumeiras e reverenciais, corta-se para o máximo de barulho e de raiva, à violência assim responde-se com outro tipo de violência, interior, e atinge-se o sagrado.

Ruy Belo, instantâneos caseiros, Francisco de Holanda, Santo Agostinho, GoPro última geração, dslr ou reflex, 360º esvoaçante ou plano fixo, um segundo e um minuto, anatomia terminal, Serge Daney, fórmulas nucleares e esmiuçamento cerebral, jardinagem, montagem sonora e escapadelas à cinemateca, memórias fugidias, presente severo, alegrias convulsivas, misérias, manual de instrução e anarquia, aritméticas com crenças, o mal do remédio e o remédio do mal, íntimo e público sem falso pudor, mil e uma voltas numa respiração e movimento cósmico que afasta qualquer estratégia deliberadamente intelectual, é assim pois é o que se tem à mão no momento como que oferecido dos altos, o que se adivinha em comunhão com o que se filma e junta, o primado do instinto e do selvagem. Como o da garagem que arranja o escavacado relógio e humilha o MacGyver ou o Tio Manel que rega as batatas de forma inaudita.

Se quiser aproximação, e acobardando-me com o sacramental Cinema, já nada se via e ouvia assim desde Robert Kramer, desses poucos que podem utilizar a tecnologia de ponta da alta definição para compor harmonicamente e sacar do telemóvel ou do bloco de notas (ou contentam-se em "filmar com os olhos", tão bela expressão, tão bela atitude) no instante decisivo para salvação, penitência, vingança, ou porque só isso mesmo pode ser. Sabem e tal, como os riscadores das cavernas, os cultores dos borrões ou os mestres do claro-escuro, que a questão nunca esteve na ferramenta, neste caso na resolução da máquina ou na categoria da lente, mas sim na emoção, verdade à prova de crítica. Por isso, trema o quadro, esteja a exposição mal feita ou note-se o salto do profissional para o amador - assim como Ford em "The Searchers" depois do mais belo plano do mundo com Wayne a pegar Wood ao colo em direcção aos céus corta para um rabo escandaloso a ser picado - estarão sempre certos, só o coração comanda. "E Agora? Lembra-me", como tudo o resto destes profissionais da vida, vive no impacto do presente e na regeneração perpétua, olhando todas as coisas e retribuindo.

sábado, 4 de outubro de 2014



A beleza desamarrada. Puritanas destapadas, erótica animalística, chicote na carne, pulsão violadora. O gótico em Stroheim, como o horror e o inconcebível da apoteose final do leito da morte e do nojo em boda, irrompe da constituição e fatalidade nossa dentro deste palco. Sem precisar de recorrer às prateleiras do exotérico, aos simbolismos poeirentos, ao tacão falso de autor. . . Nem o para além do bem e do mal justifica. Tão certo como respirar.


sexta-feira, 3 de outubro de 2014





"The Shamrock Handicap", 1926. Jamais alterar a personalidade conforme a circunstância. A certeza de Sean Thornton. A dureza de Ethan Edwards. O calor de Rutledge. O espanto do real. A grande caminhada e a ternura na cozinha. Todo o arco a decorrer naturalmente.


Ou, por Jean-Claude Brisseau:

“A coisa que mais me toca no cinema de Ford, algo que desapareceu completamente no cinema, é o facto de os personagens serem confrontados à decepção e ao fracasso, serem obrigados a digerir uma humilhação – diríamos agora uma ferida narcísica – e continuarem a viver assim mesmo, sem chorar como pirralhos. Tenho o sentimento de que no cinema actual os personagens obedecem unicamente às leis dos sonhos. É inimaginável hoje conceber um filme como "They Were Expendable". Os personagens de Ford aguentam, continuam mantendo uma certa grandeza."