sábado, 9 de maio de 2015






"O "milagre" de The Grapes of Wrath, como o de Young Mr. Lincoln do ano anterior, tem a explicação numa convicção que não é "colada" por imposições propagandísticas, mas provém duma certeza de nível muito mais profundo. Ford não "cantou" Lincoln ou a família Joad para servir os interesses duma política (embora seja outra questão saber se efectivamente as serviu) mas porque moralmente o seu credo se identificava totalmente com as ideias expressas nessas duas obras. São filmes sem dúvidas nem manhas - actos de fé e de esperança - filmes de um crente que nenhuma dúvida, oportunismo ou servilismo, atravessa. Realizador e "mensagem" identificam-se plenamente e, por isso, o olhar é tão límpido, a beleza tamanha e a força tão pura."

João Bénard da Costa, na folha da Cinemateca Portuguesa sobre "The Grapes of Wrath".



"Não acenda a luz. Não é real quando está claro. Só é real quando está escuro." é o credo que a vida ofereceu à suposta louca que é Charlotte num delírio comum que Robert Aldrich teceu em 1964. Criatura refugiada nas sombras há tempo demais para um terráqueo, vacilante de si e dos seus actos, dos seus próximos e dos alheios, ou nunca soube do essencial ou então esse essencial deixou-a no seu mísero estado. "Hush...Hush, Sweet Charlotte", pobre dela, de alguns tantos sãos, assim se chama o filme em lengalenga arrastada e tortuosa como as cabeças que vão rolar.

Se também pouco vemos, se cada um deles pode ter piores motivos para o mal do que o outro, se a manipulação é a ordem, então a luz cegante e excessiva e trucidante que inunda todo o espaço e cada canto de sombra faz parte da contradição e da irresolução de que vamos participar. Tanta luz que só serve para cimentar a dúvida, desmultiplicar reflexos, certezas; ou para descarnar o rosto, a pele e a carne velha de andar à nora que ostenta Bette Davis no seu cúmulo. Para lhe drenar o sangue e mortificar os olhos. Entre manipulado símio caduco e recém-nascido monstro assustado, infante aflito e abusado e crepúsculo que não cai mas quer cair (sujos monstros fetais são os que a amam interessadamente), as suas deambulações e insónias apegadas à caixa de música da perdida infância elevam o excesso e a perfusão à secura e também a um osso. Picados e contra-picados em materialização do gesto salvador ou maquiavélico original, distâncias intoleráveis, aproximações redentoras, serenidades escondidas e infernais batidas.

O barroquismo que às vezes em Aldrich tomba para o número e para o supérfluo escolar, para a caução de todos os armados em Tarantino e com a última pirotecnia estilística na ponta da caneta e da montagem, entra sonhos, passados e medonho presente adentro e apanha a imagem da inocência nessa cara pasmada. Nítida e nua. Que é o medo já sem máscara. Eterno medo e a grande questão da existência. Tanta fúria, som e desequilíbrio e o que fica é uma melodia antes de se vir ao mundo e à sua luz indecifrável, a carta não desvendada e o olhar para o que já correu. Horrivelmente e ternamente.

sexta-feira, 8 de maio de 2015



A crueza em "The Beguiled" vem logo do símbolo da companhia que o possibilitou, as estrelas, o globo e o grande vazio cheio de ruído. E corre como sangue ou gangrena para os retratos belicistas da guerra civil americana; imagens fixas mas furadas e perfuradas por uma fúria que faz adivinhar algo, segredos e sombras e peso, que não se deseja adivinhar. A crueza vai-se espalhar, já mais como peste e morte, para a crueldade, e o tempo que se segue vai ser de dualidades, descoloração e envenenamento. Embalo cantado e envenenado. A casa das meninas e mulheres volve-se campo de batalha terminal. Os anjinhos vivificam apenas a parte demoníaca do ser. A seca reclama a tempestade. Ordem, nexo e desejo alteram-se inexoravelmente. Don Siegel, o pai de Clint Eastwood, abandona a linha recta e ousa soltar e calcar os estilhaços e os cacos que tamanha condensação e violação provocou - o vazio sexual e moral desliza para a saturação alva e viciosamente religiosa e tudo se mistura e macula até ossos, tripas, vísceras e perdição se encontrarem.

O resultado é tudo menos límpido e frontal e o que Balzac escreveu há décadas e décadas derreadas continua a valer: "The heart weighs the fall of a fourteen-year-old Empire and the dropping of a woman's glove in the same scales, and the glove is nearly always the heavier of the two." A tortura é muito mais grave nos rostos dissimulados, crípticos e inocentes do que quando se corta uma perna a serrote. Mas na loucura qualquer um cai quando o acaso ou o universo ou o nada conjecturam, e à danação geral o homem sem rumo de Eastwood volta a olhar novamente a virgem como numa madrugada inicial, novos outra vez, perscrutam-se renovados e do escriba francês vai-se ao poeta americano: "No matter how far wrong you've gone, You can always turn around", sussurrou e gritou Gil Scott-Heron antes de ir conhecer a terra da verdade. Dir-se-á que o mal abstracto e que agiu tão concreto se impôs, que os amantes crucificaram e que a tragédia se consumou. Mas quando certos limites se passam e certos bens se abafam... é como se a coisa ou o espectro desse a volta e dali só possa brotar o contrário. E o mais tramado, seco, difícil de engolir, é que a ambiguidade é o cerne da terrível fábula. Para se atingir um vislumbre de verdade não se pode condenar ninguém, todos podem ter as suas razões pois foi o tempo particular que urdiu os sentimentos, colheitas e tempestades - isto sem relativismos de culpa ou cauções filosóficas. Para encontrarmos a passagem dali para fora, só com a nossa luz própria.

Terrível teia e estação em que falta desenvolver tudo. Mas o que continua a impressionar e a suportar todos os alicerces e covas é a mão e o olhar de Siegel. De instinto e sensibilidade afiada, é a sua natureza irrevogável, não se deixa cair ou mumificar em ilustrações do gótico literário ou arquitectónico sulista, assim como tudo problematizou na parte humana. Temos um borrão onde as árvores e as folhagens monstruosas deixam pousar aleatoriamente ou não as suas garras e correntes, os corvos que matam as pombas e largam a má sorte, o glauco térreo e funéreo, o sol tolhido, o ar cortante como facas e difuso como a ameaça, a mansão altiva e temperamental, tradições com derivas e sonambulismos. Mas é assim porque é assim e Siegel arranca a potência visual e lírica da paisagem tal como a arrancou no meio contemporâneo dos seus policiais urbanos. Nada a enfatizar, nada a romantizar, filma directo e sem filtros (sépias sem filtro) pois sabe do que calca e do que prova e não prova. As coisas estão lá, basta colher e trabalhar e rejeitar conforme a pulsão e temperatura, não é preciso dar a ver até à usura e apagamento. Picasso, Pollock, os grandes classicistas que o ensinaram, com certeza uma Carson Mccullers ("The Ballad of the Sad Café" arrancado) e por aí fora. Mas sobretudo seguir o rasto e o rastilho, até ao osso, tripa, víscera. O que é a ter toda a força.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

(Para efeitos de arquivo deixo aqui um texto que escrevi há uns tempos sobre "O Som da Terra a Tremer" de Rita Azevedo Gomes. Não é só sobre esse filme mas também sobre alguns outros da cineasta. Foi para a primeira edição dos Filmes Proibidos que se realizou no Fundão em 2013. Vale a pena a descoberta da obra. Abraços a todos.)




“O Som da Terra a Tremer” data de 1990 e é a primeira longa-metragem de Rita Azevedo Gomes. Antes disso ela tinha trabalhado com nomes que embora de proveniências distantes e com certeza de sensibilidades diferentes, partilharam a ousadia de um cinema completamente solitário, marginal, complexo. Tenha sido com Manoel de Oliveira ou Werner Schröeter, João César Monteiro ou Luís Noronha da Costa, nos guarda-roupas ou na cenografia, Rita Azevedo Gomes participou numa facção importantíssima daquilo que foi uma ruptura radical com o cinema clássico e mesmo com diversos modernismos das novas vagas surgidas nos anos 60. Para o resumir simplesmente, um cinema que ousou congregar no seu estilhaçado corpo o artifício do teatro, o ritmo da música, a narrativa da luz, a importância, o peso e o poder da palavra. Isto de todo nunca linear, sim oblíquo e camaleónico.  

“O Som da Terra a Tremer” pode ser a história de um escritor assombrado pela sua própria ficção e fantasmagoria ou então um grande vitral ou colagem onde todas as artes que enunciei e muitas mais lá cabem, isto é, uma narrativa mais ou menos linear ferida por elementos oníricos ou uma exposição de obsessões e cumplicidades em clima alucinatório. Uma reflexão sobre a deriva do artista ou o sangue, os encarnados e operatismo de Schröeter vistos pela fixidez e duração de Oliveira.  

Primeiro plano, depois de um genérico de pinceladas e sombreados, para encontrámos o escritor ao trabalho, na sua secretária. Um movimento de câmara para a frente sobre uma janela transporta-nos a mais sombras e reflexos. Fala-se em jardins mas corta-se para um mar imensamente azul em que se começa a pressentir o infinito e o alcance da proposta. “Muitas vezes se passa no mesmo sítio e não se reconhece”, começa por divagar o escritor numa das muitas frases que compõe esta melopeia deambulatória. De seguida o papel e as palavras, e a linearidade descola-se. Sabemos que o escritor está com um livro em mãos, explica-se, e entre “a história de quem não pode viajar…e mesmo assim fica satisfeito” e “O Marinheiro que se satisfaz com a sucessão de dias…o sal, mar, tudo novo a cada dia” está lançada a dimensão da sua busca e da sua divagação.  

A pintura, inequivocamente representada no surgimento de Manuel de Freitas. Que surge suavemente do negro a luzes de fogo de candelabro e se deita no encarnado fulgurante do sofá. Nota-se a tensão, num extraordinário e difuso plano enquadrado entre a superfície de um espelho, quando o escritor pede à ouvinte que lhe explique o livro dele. A História do marinheiro Cipriano. Todas as voltas e reviravoltas num novelo intrincadíssimo que também é Vertigo de abismos Hitchcockianos. 

“Essa como que inconsciência a que gosto de chamar a parte de Deus”. É a primeira vez que se vai escutar esta frase vinda do “Paludes” escrito por André Gide que aqui é condição decisiva. Voltámos ao mar, vemos um marinheiro contra ele filmado, um longo correr da água e uma imobilidade do corpo. Entrámos na ficção do escritor e o escritor encontra as suas próprias personagens. A suposta dimensão do real e a sua oposta começam literalmente a fundir-se ou a ameaçar-se. Isto pela mente de alguém que escreve para agir e de uma construção fílmica que cede aos resvalamentos sem aviso ou anúncio.  

Degrau cedido aos longuíssimos e irreconciliáveis planos do homem deitado no cosmos surdo e branco ao som do Vivaldi – (andamento lento do Concerto nº 10 do op.3 (L´estro Armonico) - que logo têm como resposta a amante ou companheira do escritor sobre o ecrã branco de um projector.

“É preciso compor, o artifício é obrigatório” É a definição produtiva ou a sua tentativa que nos é oferecida pela boca do próprio escriba. Caminho de fé nesta démarche. “O importante é a emoção…”, continua ele, “esta nunca é falsa…o erro vem do juízo”.

Por isso tem toda a lógica que a citação seguinte, num filme de citações como todos os de Rita Azevedo Gomes o são, seja de Leonardo, coisa com intuitos de ordenação do universo: “A pintura é uma poesia muda…e a poesia é uma…uma pintura sem…”. Somos nós que temos de tentar acabar o pensamento e assim entrever uma lógica.

Princípio do mundo e busca da limpidez é o que nos diz o alvo quadro da mão do marinheiro com a maçã contra a água, depois de se afirmar que “Rápido é o tempo, o grande devastador das coisas criadas”. A ficção da ficção e um retrocesso cósmico. 

E a música vai subindo de tom, orquestrando as coisas e os seus tempos. Os desejos vão-se materializando, o vago e etéreo vai-se cimentando. E a terra parece mesmo tremer aquando da descida das escadas de uma nova aparição. A menina encontrada no comboio, descoberta numa luz cegante no momento anterior. E assim a personagem do escritor pensa também ela ter sonhado. Entram planos vagos de aves, vento, areia ou sal, e pensámos em Sophia de Mello Breyner e em toda a pureza redentora. 

Volta-se intercaladamente ao escritor, ao outro lado ou à outra dobra, e este diz que a personagem precisa dele. Sacrifica-se por ele. E então lá do outro lado a aparição faz-se carne. Literalmente, profanamente e justificando o noção e sentido do sublime. Ambos se tocam. Encontram-se. Acariciam-se perto do mar e um livro passa de mãos. A música estremece e a cena fecha em mar cheio. 

Vamos ficando com a menina, que se torna eixo primordial, e entra o acaso e a sua fatalidade. E a cena com João Bénard da Costa que lhe diz que “o acaso é a única coisa que não acontece por acaso” e que entre tantas coisas lhe vai descrevendo um quadro de Van Eick, as suas tintas e inexplicável, a duração de vida de um casal ou o desabrochar de um poeta. E assim todos os vórtices e linhas do emaranhadíssimo novelo que este filme é, são levados a contemplar o seu precipício. Nas palavras de João Bénard da Costa vislumbramos a luz do que lá dentro se passa e do projecto de Rita Azevedo Gomes. Cada coisa é vital, tal como o manto vermelho da virgem de Othon pode ser o quadro todo. Os acasos é preciso percebê-los. 

A partir daí, do Homem ou do Espectro de João Bénard da Costa a pegar no livro dela e a encontrá-lo na sua própria casa e depois encontrar o escritor que o escreveu a si mesmo e à história em que está, todos os níveis misturados. Onde estamos e em que realidade? Em que sonho? Em que volta? 

Música autónoma. Pintura autónoma. Existências autónomas. Como Bach e Mozart e Vivaldi falantes no caos. Como a selvajaria pulsante de Agustina-Bessa Luís a responder ou a casar com os céus chamuscados Mário de Sá Carneiro. Cada cena de “O Som da Terra a Tremer” é um mundo e o filme todo. E o filme todo é a utopia da magnitude que convoca. 

Melopeias ou polifonias ou coro de citações literárias e outras que criam uma estrutura narrativa fragmentada, convulsa; desemboca numa estrutura narrativa própria, com vida orgânica a partir de outras fontes. Coisa una e singular. (ao utilizar palavras dos outros cria as suas própria e as suas formas). Manufactura que irá ser levada ao paroxismo no seguinte “Frágil como o Mundo”, de 2002, em que se tudo deriva do liricismo terminal do verso de Sophia - Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo… - acolhe no seu corpo mais uma vez Agustina, Camões, o que se sabe e o que não se sabe, visto que todo este processo não só agrega como muitas das vezes inventa. Infinitesimais nuances, frases que se apegam e se refazem, se afastam, combinam, fendem e soldam, entram em belicismos produtivos e explosivos, etc. 

Fazendo tudo isso como uma colagem pictórica, um mosaico, capela imperfeita ou barroca ou belissimamente tosca…alcançando desse modo o estatuto de um grande fresco estético…os seus verdes e vermelhos, etc, como os descobrimentos épicos em sintonia com o mais original e originário Amor intimista…transforma-se num quadro que vale também por si. Num quadro ou numa existência ou alma. Assim muito rima este “O Som da Terra a Tremer” com o mais recente “A vingança de uma Mulher”, de 2012, erguido supostamente em coerência com Barbey d''Aurevilly e as suas fêmeas diabólicas, visto que o hiato de vinte anos entre as duas obras cria o espaço para um combate corpo-a-corpo entre a questão velha do teatro e a mais nova do cinema, o irreconciliável e o inevitável, sendo o corpo de Rita Durão e todo o papelão e falso envolvente transgredido ou posto em duelo para uma verdade mais funda e antiga – carne e palavras e matérias em sobressalto, procurando significações seculares. Todo o imaginário romântico, sangrado e decadentista daquele que eu considero de entre todos a sua máxima influência e obsessão, Werner Schröeter, acossado pela pulsão sexual que a isso está inerente, essa ascensão e queda como caminho para o orgasmo e respectiva exaustão, Goethe e Lautréamont no mesmo plano, Santos e Demónios em altar comum sem retórica preferencial, o excesso, o excesso até ao fim e a fruição do efeito.  

Tudo ordenado, dirigido ou animado (aquecido) por uma sinfonia musical feita polifonia, abrindo mais os sentidos e os nexos desta obra de múltiplos caminhos e significados. Como atalhos, pistas secretas e carreiros subterrâneos violando o grande trajecto universal. Ou, se se preferir- e depois de tudo isto é o que eu prefiro – simplicidade e abertura, o que Rita Azevedo Gomes propõe e nisso trabalha afincadamente, é a sua liberdade e desassombro enquanto criadora. Ao mesmo tempo tão fiel inovadora. O que desemboca inevitavelmente no Instinto, tão primordial e inevitável nela como em Agustina-Bessa Luís, coisa felina e inocente entre o leão e a criança pasmada pela descoberta de uma nova maneira de ver e de compor, uma maneira de não saber fazer ou de não querer fazer as coisas como ditam as normas e os profissionalismos. Instinto que jamais se compadece ou confunde com mediocridade, antes coisa uterina que sente o peso do mundo e dita a sua emancipada forma.

“Sei do tempo…da terra…do caminho” é uma das últimas citações. Antes de outro “Possivelmente sonhei…Vem Luciano!”. Seguidamente o mar convulso deixado para trás num plano inverso ao inicial rasga o ecrã.  O escritor e a amante ou simplesmente a mulher encontram-se e desencontram-se. Ela está de véu negro. Bela imagem da hora e meia em que estivemos. Eco para nascenças e finados outros.

E regressámos às sombras e magias de um pequenino teatro que deve ser o do mundo.

Fim.  

terça-feira, 5 de maio de 2015





A quente há coisas que não se devem fazer, mas, ai de quem não queira ver, "Visita ou Memórias e Confissões", filme que Manoel de Oliveira nos quis mostrar depois da sua morte física, é a capela final e perfeita que compõe e fortifica toda a obra e toda a vida. Para abrir a todas as significações, complexidades, sentidos e sentimentos que as palavras do próprio Oliveira como as de Agustina Bessa-Luís abrem. Tal como a lua - a lua dos Lumière ou a de Méliès - no seu volume consumado e na sua posição mais estratégica só semeia ambiguidades, assimetrias, leituras, possibilidades - Toda a beleza. Desde o genérico falado até à movimentação silenciosa da câmara que nos começa por ligar o poder e ordenação da natureza com o poder e ordenação dos homens, até à revelação da casa como mundo dentro do mundo - questão dos eternos retornos em concentração máxima, de dentro, por dentro - logo irrompe todo o centro e borda - as árvores como metáfora perfeita - da demanda que foi muito para além do Cinema mas que só nele como arte total pôde ser concretizado assim: Deus. Ideia e presença de Deus não como mera religião ou conforto, antes visão do absoluto. Visão e fé, assim Deus surge desde o negro inicial até ao final, na música e pelos verdes e encarnados dos jardins, no corpo hirto e guerreiro do cineasta (e desportista, aviador, inventor, etc.: "o descanso não é uma lei urgente!") até à fragilidade sumptuosamente romântica da sua bondosa, igualmente guerreira e prática esposa Isabel. Deus em tudo, naquele anjo de mármore que recebe outros anjos até aos retratos que devolvem o espírito e a inteireza. O mecanismo, a matéria, carne, verbo, o invisível, pecado e amor, num todo que apela à pureza - Oliveira explica isto no filme de forma definitiva - caminhando fantasmagoria e supremo presente para um sempre. Naturalmente, invenção sem freios, de onde os ecrãs compósitos, imagem fixa em relação passional com a movente, filmes dentro de filmes e mundos dentro de mundos outros ainda, não são festa da técnica mas antes a técnica em vida essencial, organismo que permite todas as voltas e todos os voos, isto é, transcendências. Igualmente as confissões demasiadamente terrenas, os crimes, a Pide, torturas, burocracias, factos que não são cuspidos, nem mesmo condenados, mas deixados a julgamento superior, evidente, por isso cândido. "Torna cada movimentação de câmara uma oração" ouvi Jean-Luc Godard dizer num ensaio para um seu filme, precisamente evocando a Paixão. Em  "Visita ou Memórias e Confissões", como em "O Gebo e a Sombra" ou o "Francisca" anterior a este, cada nascença da luz, apagamento, viagem, ciclo, fixidez e brilho, adquire o toque e a essência indizível. Cada coisa, cada ínfimo, esfinge, cada nada, o mundo. "Salvar o mundo, aceitar o céu, esperar o divino, conduzir os homens...". Daqui e dos altos. O Absoluto Amor. Omnia.

segunda-feira, 4 de maio de 2015


"América, América", épico secreto, pequeníssimo e sempre fiel ao momento, à batida pulsional, irmão de "Once Upon a Time in America" ou dos "Mistérios de Lisboa", não tem a ver com deslumbramento inocente, fascínio exótico ou ode imperial. Alguém diz que nela existem os mesmos massacres e as mesmas prosperidades. Todos percebem, mas não desistem. "Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa do seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei.", por um lado isto, o chamamento transcendente, a quimera prometida; por outro, tão fundamental como, a revolta civilizacional, selvática, indómita, a guerra particular na guerra geral e incompreensível do poder. Aí, almeja-se o espaço do incomensurável, a maior quantidade de ar e de possibilidades. Chega-se a Herman Mélville, na queimante aventura interior em tanto solo ou tanto mar. O protagonista desta odisseia não pode deixar de agir na pressão máxima. Agir, arrebatado pelo coração e estômago e cabeça que não controla instante a instante. E já é todo o cinema de Elia Kazan na sua forma total. Aqui na primeira pessoa e abraçando o mundo inteiro. No instante agudo, tudo pode acontecer. O essencial fica guardado no fundo dos fundos. Inteiro. Sublimado. Nudez, fragilidade, força.

Logo que Stavros avista essa terra enigmaticamente primordial e ela se materializa e se impõe ao seu fugidio imaginário e febril obsessão, Kazan atinge e estabiliza naquilo que sempre esteve prestes a explodir noutras vezes (e tantas vezes explodiu fugazmente) pela dimensão voraz e realista do seu cinema - a dimensão do puro sonho, da pura liberdade e flutuação sensorial sem qualquer tipo de legislação - cinema mudo, entranhas da alma, os dois lados do espelho. Os rostos fundem-se com as águas, as aves e o ar com os corpos em êxtase, recordação e presente em marcha, o alvo movimento como primeira e última linguagem. O sopro lírico das visões inomináveis assopra e queima, a natureza e o homem em correspondência una, o paraíso e o abismo. Do nada, nada nasce, e assim perfaz com a aparição que antes houve da mulher, apelo da redescoberta original e do nascimento, transcendência, finitude e eternidade no mesmo campo. É preciso esquecer a doença da cinefilia, a estética e as maneiras educadas, riscos calculados, triunfos da superfície; há que se agarrar à massa e à memória do que se ousa contar e fixar para que verdades assim possam acontecer, passar e inspirar. Kazan, como Rimbaud ou qualquer anónimo Franciscano, anónimo teimoso ou humanista simplesmente, viu de tudo, sofreu na pele de tudo, delirou e meteu-se lúcido. A estátua da liberdade para onde todo o filme confluiu aparece e não há nenhum evento. Círculo onde nada é dispensável. Demanda destinada. Montanha inicial e montanha final.

"Se for preso pinto com merda..."

Pablo Picasso

sábado, 2 de maio de 2015

(Deixo aqui a minha contribuição para o festivo mês de Abril que aconteceu no Cineclube do Porto. Bem hajam!)


Fausto, F.W. Murnau, 1926


Da relativamente breve mas infindável carreira de F.W. Murnau, o filme que vamos ver, “Fausto”, realizado ainda na Alemanha e baseado na imortal obra de Johann W. Goethe, será por ventura o seu ponto alto e uma das obras máximas não só da história do cinema como da arte em geral. Da sua imensidão e do corpo a corpo demencial que faz com a escrita e a convocação do universo e da féerie de Goethe, vale a pena constatar o gesto total de um cineasta que tocou em tudo o que no cinema pode ser tocado. Repare-se, para tentativa de concentração e de foco, na cena da aparição de Mephisto: pelas brumas e pela fantasmagoria, na imersão onírica e concreta com que os elementos naturais se misturam com os mágicos, no lado pulsante e na morte envolvente, todos os contrários convergem e se fazem centro numa poesia visual que é a razão primeira do cinema. Tudo ali foi inventado e levado ao limite, como potência mas sobretudo em concreto, e só evidencia as falsas questões com que depois o cinema se debateu para conseguir mais espectadores. Todo o Murnau comporta as três dimensões, a modelação primitiva e moderna, o incomensurável ecrã como as incomensuráveis visões físicas e metafísicas, telas divididas, rapidez estonteante e estancamento, sobreimpressões e efeitos especiais como esses raios, trovões e inclassificável que explode e se contêm conforme a dramaturgia. O cineasta das imagens atinge o limite do autêntico. Uma sinfonia cósmica – Murnau, Goethe, Wagner e Thomas Mann reunidos - onde os únicos temas possíveis que são o bem e o mal – ou seja, o amor e a morte – alcançam uma plenitude e complexidade onde nada se dispensa, nada se teme, tudo faz parte deste mundo e do outro. Obra total. 



João Bénard da Costa: Outros amarão as coisas que eu amei, Manuel Mozos, 2014

“I always contradict myself” é grito que só pode ser percebido na assustadora dimensão do escuro, pelas tais horas propícias a questões soturnas. “João Bénard da Costa: Outros amarão as coisas que eu amei” é mais uma invenção de Manuel Mozos, sem género e sem amparo, que tanto se aproxima do fantasmático “Ruínas” como dele se desvia por completo em dimensão ao retorno e à matéria. Um todo sem princípio nem fim, de corpo presente. A operação é delicada mas é levada até às últimas consequências, sem remorsos ou suplícios existenciais, e consiste em chamar JBC do outro mundo que ele tantas vezes vislumbrou ou quis entrever para este nosso. Elidir as regras e as fórmulas mortais, deixar circular a morte como único tema possível, assomar o amor como o seu par e a sua superação, para tudo convergir e se fazer uno no único centro inexorável – o tempo. Esse centro que nos cerca, nos devora e nos devolve, como nos diz um ou mais filmes de fidelidade e desassombro que por lá passam e aglutinam irremediavelmente toda a contradição; esse tempo a que nós não perdoámos, escreveu JBC. Mais do que gestação, vida, morte e ressurreição, trata-se de sair dessa imemorial e curta ciência para se entregar à eternidade. E Manuel Mozos, generoso e radical como sempre, mete-se literalmente dentro, até ao fundo, até ao fim da fita que a moviola desenrola organicamente. Em frente às imagens moventes e aos sons transcendentes de meia dúzia de filmes que chegam para tudo, pelas tintas e frescos só à primeira visão fixos de todos os pontos cardeais, nas luzes e nas sombras das palavras e das suas ligações subterrâneas e límpidas, do fulgor de Verdi ao fulgor de Minnelli, em paisagens de moradas e de afectos, Mozos olha o que JBC olhou, colhe, disponibiliza-se, tenta perceber, amar muito do que ele amou. Jamais pose de egocentrismo mas sim de humildade e continuação, ilumina-se pela luz que JBC escolheu para o moldar, ao seu interior e ao seu exterior como nos ditos de Jorge Luis Borges que escutámos, luz essa que nos pode iluminar a nós do outro lado do ecrã para lá da vicissitude e das aparências. Memória, dádiva, vida, será o movimento essencial e o apelo à importância de cada um, de cada ser, de cada herança. Relativização da hierarquia balofa a favor da natureza convulsa, abertura ao que nos ultrapassa ao invés do ridículo da imposição. O sagrado do conhecimento, essa poesia que nos chega de algures ou nenhures de outro tempo, finalmente, a beleza que importa e que aqui inunda. Numa montagem que em infinitas correspondências secretas e consanguinidades ineludíveis liga a tempestade do deserto de Nicholas Ray às ondas da Arrábida, que funde para sempre a Cinemateca Portuguesa aos fantasmas e às carnes de quem nela soube habitar e dar a ver, nunca por nunca estamos à beira da cinefilia barata – essa ordenação da vida por filmes ou essa falta de ambição – mas antes se escava desde os escombros mais sensuais do que funéreos, ou sensuais porque aceite a condição funérea, das latas de película ou dos altares dos mortos até à imensa panorâmica final em que o etéreo e o vazio são preenchidos por Sophia de Melo Breyner, por essa certeza de que os amanhãs permanecerão cantantes. Forma que aceita todas as expressões, conteúdo seguro de si por toda a prova.  


Onde Jaz o Teu Sorriso?, Pedro Costa, 2001


Do filme onde Pedro Costa se fecha com o casal composto por Danièle Huillet e Jean-Marie Straub numa sala de montagem, João Bénard da Costa escreveu: “Eu sei que a interrogação titular do filme de Pedro Costa não pergunta quem escondeu o sorriso, nem pergunta quando é que esse sorriso se ocultou. Mas o quem e o quando parece-me, crescentemente, da maior importância, à medida que revejo o mais claustral e o mais clausural dos filmes de Pedro Costa. No sentido monacal de clausura, pois – foi Camilo quem o escreveu – «isto de viver na clausura não é para todas as compleições».” Claustro e clausura, vale a pena fixarmo-nos nestas ideias, nestes espaços e nestas demandas para se ousar revelar um pouco da dimensão a um tempo moral e material daquele que será o mais veemente filme do seu autor. Veemente e comovente, porque comporta todo o antes e depois do epicentro chamado “No Quarto da Vanda”: a dimensão humana, o empenho absoluto no trabalho, o essencial e o desprezo pelo embuste, o resgate de uma sensibilidade perdida e de um modo de fazer antigo, os ecos longínquos e no presente, luzes e sombras do nosso estado e destino, as convicções e a abertura ao mundo e à sua permanente condição imponderável. Como num claustro, na mais dura e aceite clausura, protegidos pelo amor e pela fé. E assim totalmente sintonizados e ao lado dos homens, da luz, da sua força imemorial e indestrutível. Danièle e Jean-Marie nunca foram bichos-do-mato nem ensaístas frios, perversos e monstruosos, como dizem muitos dos que deles gostam e não gostam. Danièle e Jean-Marie, se sempre foram ao pormenor, ao ínfimo, à opacidade, foi para tirar o máximo de leitura e preservar o essencial segredo, defrontar a morte e apresentar inteira a alvura e a felicidade dos nascimentos. Se Pedro Costa é um dos raríssimos herdeiros deste modo de vida que vem de Griffith e dos inventores, é porque nada trai, nem a natureza, nem o tempo das coisas, jamais a constituição de cada ser único e irrepetível. E assim, como o casal, sua, dá o sangue, mata-se, ressuscita, para que a exígua claridade que ainda nos resta se torne no sol mais cegante e vivificante. A mais preciosa das lições e das dádivas. 


Que farei eu com esta espada?, João César Monteiro, 1975


Um ano após a famosa revolução dos cravos dada em Portugal, esta junção e espelhamento Frankensteiniano de João César Monteiro não nos fala de mais nada senão do falhanço clamoroso de uma utopia que poderia ter dado certo, ontem como hoje. Por um lado, o cerco imperialista e capitalista que abafa e esmaga por todos os lados, pela terra, pelo ar, no fogo e no coração. Por outro o cerco fundamental, outro tipo de cerco tão perigoso como o anterior que aguentámos por tantas décadas, que é o atentado à liberdade individual e colectiva. Do nosso norte ao nosso sul, do teatro místico aos trabalhadores reais do campo, do comunismo à anarquia, da representação à destruição, de Maria Velho da Costa ao Nosferatu de Murnau, Monteiro usa do arsenal todo para expor do ridículo e nos avisar dos perigos de tamanha inferiorização. A gesta épica com que tudo fecha na esperança de abrir, na mesma medida em que irrompeu Amílcar Cabral ou a prostituta honesta, destapa a mais estupefacta e terrível das equações: depois de tanto heroísmo, tanto mar e tanta conquista, como chegamos a isto? Como caímos em cheio nesta humilhação e cancro de valores? E a tristeza lancinante de se perceber e sentir que este povo unido, com mais garra, um pouco mas de coragem e irresponsabilidade, este povo de tantos valentes poetas e cantores da vida e do sonho, podia, e pode ainda, dar uma guinada no caminho da mentira. E o que aparentaria ser uma construção fílmica datada aparece hoje fresca, afiada e fulminante como os canhões que por ali ameaçavam. E já dispararam, em silêncio, na mais indesejosa e nojenta da paz, esta podre de agora. Que se reveja sempre e que algo aconteça.  

sexta-feira, 1 de maio de 2015

eternidade



(...)


"De resto, uma opinião, boa ou má, seja de quem for, sobre uma obra de arte, não a desnivelará uma linha sequer do lugar justo que o seu valor real lhe marcou. Ninguém, nem Deus (refiro-me a Deus num sentido metafórico!), seria capaz de anular um átomo ao valor da obra shakespeariana, ou de pôr um átomo de génio nos medíocres furtos do Sr. J. D. Uma obra é o que é - diga-se dela o que se disser. A crítica é apenas um comentário que traduz uma impressão ou uma análise: pode explicar a obra de arte, mas nunca validá-la ou invalidá-la. Neste termos, a crítica, para o autor da obra de arte, não é lisonjeira, nem agressiva: é indiferente (deve sê-lo!)."


(...)


Carta de Manuel Laranjeira a João de Barros,
Espinho, 12 de Março de 1905