sexta-feira, 29 de novembro de 2013

 
 
Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se sob a luz que jorre;
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o baptismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.
 
(Tormento do Ideal, de Antero de Quental)

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

 
“The Last Run” é de 1971 e assim encontrámos Richard Fleischer já fora do grande ou do pequeno estúdio, por outras terras que não as da Califórnia. Trabalho carpinteirado ainda com mais artesanato e calejamento do que quando se aventurava entre fumos e maquetas em série e por si apropriadas, pertence à estética, cheiro e combustão orgânica que sobretudo desde “The Boston Strangler” começou a tomar conta de um lado da sua riquíssima obra, lado de uma certa doença geral e de uma certa desilusão sem filtros. Soturnos contos banhados por doenças que porém nunca surgem sublinhadas ou ostensivamente demarcadas pelas mantas habituais da sociologia ou da psicologia, tudo faz parte da derrapagem a que estamos sujeitos e o olhar de cineasta é sempre preciso, decantado e desencantado. O deformado split screen (shame on you série 24!; We Can't Go Home Again rules!) e a pressão demencial e sem explicação do filme de 1968 que acaba com uma fusão a branco do corpo e da cabeça de Tony Curtis com o ecrã uno e abismal do buraco negro que por natureza o cinematógrafo é, será de uma vez o auge e o alastramento para o grito da nossa impossibilidade de controlo, alinhamento, paz. Sem maniqueísmo e com uma disponibilidade e logo ambiguidade que vai de Dostoiévski a Renoir. Por isso mesmo em “10 Rillington Place” já está tudo doente e não somente o eunuco bebé envelhecido de Richard Attenborough, mas também o bebé efectivo e o que está numa barriga, o casal com todas as esperanças e sonhos, bem como todo o espaço daquela casa assombrada mas também a rua, as montanhas longínquas que acusam ainda mais, a derme e a epiderme e todo o cavo que a câmara olha e perfura sem freios. Assim fecha em paralítico final – olhem bem o mal e vejam se não o confundem com a mais inocente pedra da calçada pisada por todos. Do mesmíssimo ano de Last Run e 10, três petardos num ano já é coisa do antigamente, Fleischer ainda voltou a uma Inglaterra mais interior do que a de Rillington, observando o estoico corpo sem olhos e à deriva pelo cosmos de Mia Farrow perigado por uns olhos desencorpados e sem credo que atrofia e impossibilita cada plano. Em “See No Evil” ou “Blind Terror” chamado, tudo é ainda ordenado pela batuta da Mãe natura e do universo ecoante, mal metafisico em contacto com uma pureza e apenas o acaso como eventual salvação, num subestimado filme que jamais é só exercício ou sucedâneo do sucesso de “Rosemary's Baby”, pois, se quisesse ir mais além diria que este terror adjacente da normalidade pode assustar mais do que as ceitas de Polanski. Depois do filme em que me vou meter que se veja igualmente e para efeitos comprovativos ou de dor de barriga a mortandade imparável, casual e lamentavelmente lógica que arrebenta em “The Don Is Dead”, companheiro de todos os Padrinhos de Coppola e antecipador dos Scorseses mafiosos, estratosférica violência encenada com a secura de Robert Bresson a Donald Siegel. E que não se menospreze a saga americana da terra e da honra na qual Charles Bronson em underacting desossado protege contra tudo e todos as suas melancias da corrupção, “Mr. Majestyk” é já de 1974. Mais e mais obras ou simples passagens de viagens fantásticas ou aventurosamente infantes poderia atirar para a mesa.
 
“The Last Run” é então tempo e também espaço para coisas surpreendentes e comoção aguda, daquela quando se sabe que o tempo não perdoa e que tantos paraísos já secaram. Tempo, esse escultor e justiceiro maravilhoso mas também o impiedoso. Temos o grande muito grande Sven Nykvist saído de Ingmar Bergman para possuir literalmente imagens justas porque sujas, borradas de manchas de um tempo e de tipos infelizmente “novos”. Jerry Goldsmith com a sua música na ponta da navalha. E a geografia inigualável porque tão marcada de passado que começa por terras Portuguesas em serras e mares algarvios mas escarpados, serras outras e planícies outras sem legenda, tão bonitas e tão ameaçadores, atravessa fronteiras Espanholas e chega a pisar França. E como cada piso cada língua, e cada brilho e odor, até neste particular a que muitos, inclusive os grandes desprezaram a favor de outros propósitos, o cineasta se aplica e por isso a gama dramatúrgica vai ficando cada vez mais encorpada, pintura e coro. Quanto a estas coisas, tudo faz parte da empreitada e poderia ter sido por aqui ou no lado oposto, com estes ajudantes ou outros, que tudo se comporia no olhar camaleónico e na mão atraente porque fiel de Fleischer, sem desculpa ou sem divagação. Nunca comércio, turismo ou palmadinhas nas costas para coproduções futuras ou amabilidades criticas flanqueadoras.
 
Numa vilazinha piscatória vamos encontrar Harry Garmes, tronco sabido e consequentemente sem muitos sorrisos ou palavras a não ser o essencial que costuma doer quando sai, e vamo-nos lembrar muito da sua personagem também já reformada da policia que respirou em “The New Centurions”, sim, aquele que não tinha muito para fazer e que meio tímido voltava à velha esquadra e aos velhos comparsas, que se descobria mesmo assim desamparado e virava o cano da arma contra si e puxava de gatilho. Vamos ter com ele a uma velha garagem escura, ao automóvel de guerra e de sobrevivência, aos trabalhos de mão e ao apagar de uma luz antes do tremeluzir de outras. Vamos acelerar a seu lado de modo suicidário, mas sozinho vai recusar-se a morrer a pior das mortes, a que vem muito lentamente antes da inexploração de toda a incomensurabilidade da raça. E vai, vai à luta, vai provar que as veias ainda têm sangue, o coração pulsa e o medo real e a transgressão essencial existem.
 
Uma última missão, uma última corrida, dizem as parangonas: que do argumento então é largar a sua pesca fictícia e a sua prostituta honesta, a sua espera pelo que não há-de vir, meter-se com criminosos e não saber o dia seguinte, resgatar um puto fala-barato com a namorada mais esperta e bonita do que ele, apaixonar-se novamente ou aparentemente, largar bala e fazer escorrer sangue, orientar ou esmurrar os de amanhã e os amanhãs, debater-se com a sua religiosidade…desenganar-se definitivamente. Isto é a acção, e é fulminantemente filmada, montada, vivida, sentida pelas guelras em direcção a voos outros de significâncias e transcendências para além da impagável fruição. Lugares e medidas recônditas para além do cinema e das suas superfícies. Pois o fundamental é de outra ordem: começa desde a primeira aparição pesada e enrugada de Scott mas pode ser centrada no momento em que ele prega dois socos ao jovem feio espertinho que é Rickard. Scott tem a gentileza de o fazer fora do alcance da namorada dele e assim expor a sua dimensão moral, que é a de que mesmo fazendo coisas do diabo e podendo algures ser o pior deles, é Homem que acredita, Homem teimoso. Algo que naquele tempo como hoje ainda mais não faz qualquer sentido para a maioria. E pode ser ridículo ver esse homem pausado, duro e frágil a sentir-se leve por se ter confessado ao ar ou a fantasmas numa igreja que calhou.
 
O que temos é então o encontro entre duas Humanidades distintas, que poderão ser dois Mundos, duas Sociedades, e a clivagem pasmosa. Uma a morrer e sem parentes, outra a propagar-se como o pior dos vírus. Paul Rickard, esse engraçadinho que trata tudo como objectos dispensáveis, como lixo, apesar de tudo ainda vai aprender algumas coisas à custa de muita cabeçada – se o filme fosse refeito agora não aprenderia nada de nada. É um palhacinho, um irónico, um pós-moderno como tantos de hoje com as suas maneiras de estar e a sua arte de pacotilha. Ainda num outro dia um amigo me dizia verdades verdadeiras, por causa do melhor programa televisivo de que me lembro, chamado Play-Off e realizado autoralmente pela Sic Notícias, sobre o irreconciliável que é o embate entre o velho Lobo que é Toni Oliveira, o nosso John Wayne com o único bigode hoje em dia admissível, e o tecnocrata com todas as certezas feitas que é o Rui Santos das pantufas e das estatísticas sem margens para dúvidas. Jamais Santos irá compreender do que trata o olhar e as sentenças que surgem como marteladas bem assentes do grande Toni, humildade e saber que vem de um tempo com outros valores, limpidez e possibilidades inclusive mitológicas. Tempo em que o amor e as serenatas faziam sentido e os lamechas não eram “lamechas”. Tempo em que se vibrava com Camões. Às vezes, ali no quadrado ilusório dos raios catódicos ou nos nossos passeios quotidianos, parece-me ver robôs a interagir ou a tentar interagir com pessoas, frieza e calculismo contra agitação e abertura. Um boi a olhar para um palácio. Um lingrinhas para um monstro.
 
O novo e o velho é aqui o foco, tal como o era em Eisenstein, não como saudosismo ou lamurio inútil, sim como constatação do declínio e do degredo presente bem como das utopias de outrora. É como passar das lágrimas e das fundações a cimento de David W. Griffith e de Frank Borzage ainda cultivadas pelo actual e já ameaçado James Gray, para os bonecos, caricaturas balofas e água-de-colónia insuportável do “actual” e tão acarinhado Wes Anderson. “The Last Run” é sobre a utopia e é algo em si utópico e já ali anacrónico, com o milagre da sua construção e da progressão em dimensões ainda gigantescas, cravado em química e por física que não só virtual – coisa que só alguns grandes com muitas feridas atingem lá para o fim.
 
Fim, é o que Scott entrevê quando olha para o relógio antes de ir para a cama com a jovem resistente. Dizendo-lhe de chofre e sem pré-aviso que o tempo é o único inimigo. E os ponteiros vão-se cansando, cansando. Até se deterem na tragédia final que apesar disso é mais cante de cisne, melodia e pincelada a ver com quedas que metem pena mas belas apesar do resultado, e nunca subordinação mas ousada e derradeira insurreição. Confessando-lhe também que aceitou não pertencer a lado algum. Daí que não será citado entre os imortais da imortal história. Aceitando-se mortal e apenas um normal das singelas recordações de aldeia, e Fleischer a par dele com a devida irmandade, sem usura ou solenidade, oferecendo-lhe uma morte tão sacra e silenciosa como a que deu ao Robert Forster no “The Don is Dead” - algo a remeter para a qualidade impossível da luz milagrosa e tenebrosa que vai certificando e atormentando o colosso aninhado de "Barabba" (1961) depois da suposta libertação e das respectivas visões na mais visionária das suas criações? Se Scott muito mudou de lugar e muito usou de contradição, o seu “I Stay”, à imagem do de Curd Jurgens de “Bitter Victory” é humanista, a ver com o berço, necessário. É um “eu resisto”, não me emporcalho, nem que morra todo.
 
Apetece-me ir outra vez de guinada ao início da narrativa e à cena do quarto da prostituta que só o é profissionalmente e não de coração, e estou a citar Scott, quando ele fala da sua mulher que igualmente fugiu, mulher de corpo de prata e seda, olhos azuis brilhantes. Virando-se surpreendida a sua nobre companheira e reconhecendo diferenças, mesmo que ele só ali esteja por necessidades animais. É já sintomático porque mais que romantismo ou poesia ou cavalheirismo, é verdade exposta, alma e carne e vida, sem hipótese de ser doutra maneira. Ninguém lhe falaria assim, ninguém lhe confiaria dinheiro vital. E essas pausas dele, essas ponderações, dúvidas, cigarros pensados e vilipendiados, rumorejos finos, dores de costas e de ossos, rosto de incalculáveis relevos e rupturas a sorriso e choro, rosto duro talhado sobre o granito da memória, interior convulso e indigestões mas também apaziguamento crepuscular, é a força dele e a ousadia da firmeza. Estamos perante um duelo e o realizador e o descomunal actor principal que pode ser cada um que queira não vai facilitar. Quanta mais força melhor. A moral que importa, a moral custosa. No fundo de um buraco de chafurdanço como em noites longas (e tão brancas…) olha-se para o tecto e vê-se claramente visto, é a droga da adrenalina procurada por Scott e o terrível que é estagnar. É preciso suar ou só andamos aqui a brincar. Scott antecipou que a jovem não o queria, mas tiveram o seu recatado céu. Sem rendição.
 
E não pondo de parte que John Huston é citado como co-realizador e terá feito umas coisas, o que faz todo o sentido e acrescenta mais camadas poéticas e vísceras, pois tal como Hawks, o já citado Duke ou o anjo Mitchum, era dos que bebia dias e noites seguidas e depois perguntava aos que não bebiam, quando o trabalho urgia e tinha de ser feito, o porquê de eles estarem tão cansado. Pumba. Tiro e queda. Já devia ter acabado, mas, só para conversar mais um bocadinho, a modernidade da arte como do dia-a-dia sempre esteve em arranjar as formas adequadas ao que se trata, ao que se tem na frente, se sente. Em todos estes filmes que citei, é assim, e então agora, faça-se lá as contas outra vez.
 


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

 
 
Os ordinários embebedam-se a whiskey, os extraordinários com poder. A força cria líderes, mas também acaba por os destruir. Isto são coisas que um médico literalmente cospe à autoridade trucidante de uma cadeia de alta segurança cercada por água. Estamos em 1947, numa América recôndita representada nos estúdios da Universal, e com o infinito alcance que os grandes e implacáveis filmes de Julles Dassin sempre bradaram. Sem perdão, remissão ou abébias para quem as não merece. Como “Un condamné à mort s'est échappé” só aparentemente estamos num prison movie típico, onde a personagem de Burt Lancaster (aqui com o sangue a ferver mais próximo de Siodmak do que de Visconti) não é o artista principal, como não o é o fabuloso médico de Roman Bohnen, o grupo de cinco da cela R17 ou qualquer outro que se imole por uma fuga sonhada nas noites de suor, paixão ou insónia. Daqueles cinco a que Dassin se coloca lado a lado connosco, para escutarmos jogadas, promessas e sonhos, todos eles e nós e filme vamos ter um paraíso que rasga o infernal presente. Em flashbacks que suspendem o tom ostracizante e vingativo em causa mas que por outro lado insuflam de gravidade e de energia armazenada, de carga explosiva para gastar no momento devido.
 
“Brute Force” trabalha a duas grandes pulsões opostas, jamais reconciliáveis, e que logo sabemos irão chocar devastadoramente, em proporções desconhecidas. A sede de poder da tal autoridade cega chamada Capt. Munsey, contra o inaceitável totalitarismo que faz no último segundo os fugitivos embarcarem numa missão que descobrem ser cientificamente suicida, dispensando o acomodamento como o paraíso. O Capt. Munsey quer ser Gengis Khan, Alexandre o Grande, César, isto é o que lhe cospe ainda com mais subtil força o tal médico-borrachão-filósofo que funciona como divindade tal como aquele preso cantante se faz cruel palhaço. E por datas e tempos destes também está ali senão um Hitler, pelo menos um Hitlerzinho. Enquanto Lancaster, o seu bando, o jornalista do também soberbo e discreto Charles Bickford neste festival de actores soberbos, os outros trinta ou quarenta ou umas centenas ou uma terra inteira, apenas, e que apenas, vão guinar o seu plano primeiro e os beijos às suas amadas para matarem a Força Bruta. Mais do que a liberdade, o amor, ali, naquele palco inconcebível, intolerável, naquelas insuportáveis visões de planos gloriosamente contrapicados à Leni Riefenstahl em que um monstro glutão do globo se agiganta, o que importa é exterminá-lo. Ainda por maior amor. Pode-se?
 
Para tamanho impacto, tamanha missão, cisão e pacto, a encenação de Dassin, para fazer sentido, teria de estar à altura da encenação do mal absoluto. Para sequer a luta ser possível antes de resultados práticos de combate. E é preciso ser-se tão guerreiro, feito de aço e generoso como os fiéis presos para que as formas desde logo e cada vez mais se revistam de indestrutibilidade, um metal intransponível de luzes e sombras, uma capa retaliadora. Dassin está à altura e vai de frente com tudo. Leva-se mesmo o absurdo até ao fim e aqueles homens com as suas fardas, chapas, olhos e pertences confundem-se ou fundem-se com os fundos, as grades, as poucas máquinas, o soro outro da choça, o nojo, o despojamento e o céu deles escondido. Vai ser preciso extrair a frio a humanidade àquela massa una e chafurdada, frio das balas de metralhadora e dos incêndios contraproducentes, e obviamente que as fundações vão gripar, pôr-se em questão. Lancaster leva um tiro em cheio mas não cai, caminha morto e elimina com a sua força sobrenatural toda aquela metafisica em acção de quem quer ter o mundo na palma das mãos. Não por acaso se tinha fechado o tiranete numa sala a música clássica e a tortura e chamado o Chaplin de “The Great Dictator” a terreiro e a testemunho.
 
Um homem a fundir-se noutro, o noutro em vários e esses nas massas que como numa sequela de “Metrópolis” despertarão e fuzilarão sem pedir licença a quem de direito. O movimento da violência e da contrarresposta final, bem como a superação de Lancaster, a superação geral, esse movimento atómico e viscéreo em que as carnes e garras dos homens fazem corpo com a estética do cinema que não se coloca acima do que está em causa, é indefinível e como a grande arte ou a vida plena só faz sentido no acto da experiência. Uma chance em um milhão e a vitória da derrota. O lançamento ou apagamento final deste projéctil de uma silenciosa e drástica poesia entrecortada a uivos de não desistência é o definitivo cortar da distância ou truque da ficção. O médico olha-nos, olha-nos cortantemente e desconcertado como sempre actuou ou respirou, e fala-nos da nossa teimosia. Da teimosia e da força. “Brute Force” é o mais terrível horror, mas também a mais sublime dádiva.

sábado, 2 de novembro de 2013

 
 

No começo e no fim de “Blackboard Jungle” somos como que encantados pelo artifício, um bailado de miúdos mas também de comboios, autocarros e água jorrante, onde os graúdos já parecem estar fora de validade ou deslocados, desfiles com beijos e piropos atirados ao ar, em brilhos a preto e branco que remetem ao musical Hollywoodiano. O “Rock Around the Clock” da parte sonora que se mistura com a cacofonia do lugar, a câmara ainda solta e livre e feliz da vida, bem como o outro tipo de brilho que fulmina dos olhos do Glenn Ford que parece perdido e seduzido, promete algo que vai ser dificílimo ao filme recuperar nos rugosos, convulsos e asfixiantes minutos e dias e dias que se vão seguir.

Porque logo de seguida Glenn Ford entra numa escola e nós entrámos com ele, e como vai ser difícil respirar e alegrar-se lá para dentro... Richard Brooks prende a câmara e utiliza-a como um qualquer aparelho médico de precisão elevada que detecta patologias e respectivo mal-estar. Confirmámos rapidamente que ele é professor, que lhe dão o lugar pois levantou a voz com Shakespeare e que a sensualidade e magia de Busby Berkeley ou Fred Astaire foi pura ilusão desejante. O som de teclas, da poluição externa e interna e as espectativas acagaçadas dos educadores vão tornar este filme e caminhada que nunca é panfleto numa experiência bruta, suja e triste de uma forma a que qualquer neorrealismo para mim nunca atingiu no que a dureza e violência diz respeito. Nunca panfleto nem nunca queixinhas, pois cada um deles e sobretudo Ford estão banhados e estonteados pelo vapor da vacilação. E não só essa esquizofrenia mas algo mais abstracto e fantástico como tudo o que depende e se desprende do real, as paredes parecem constranger e participar no complô, os fumos advirem de metáforas ou de pinturas infernais com intuitos vingativos, as cicatrizes na pele ou no quadro do título a incomodarem e a picarem persistentemente a memória.

Ford percebe desde logo que nunca se pode encolher, olhar olhos nos olhos é ali a única possibilidade de sobrevivência e jamais tratar os animais como um grupo de animais enjaulado mas sim chegar ao possível recôndito de cada um. Como Brooks também nos faz ver que tudo sai para fora da escola e do campo do enquadramento, para os passeios, antros do vício e casas de repouso de cada qual. Faz perceber que não se podem compartimentalizar ou ter diversas vidas, ir para casa tomar o chá e esquecer-se até ao dia seguinte. Feito isso, é a morte do artista. E como Ford não o quer ser, prefere não escrever ou pintar mas antes moldar futuros e utopias, vira a cara a convites assépticos e a cargos honrosos, logo a tragédia que é a cara da realidade tratada por tu e a sua crueza vai embater defronte com ele.

Tem de carregar a pressão da sua mulher que não pode perder o seu segundo filho, a colega de ensino que o tenta agarrar e o devora a cada cena, bem como a relação com o aluno supostamente líder e contraditório de Sidney Poitier, tudo o que isso emaranha e afunila, entre traições, mal entendidos e explosões imprevistas e inaceitáveis, proporciona uma combustão e uma urgência de saídas e de fidelidade que com este fulgor só em Nicholas Ray e nas suas convulsões limite à beira do cosmos se poderão achar paralelo. Essas erupções do imprevisto sem aviso, desequilíbrios com causa e sem, o problema da demarcação social, a solidão da ruptura, a explosão da coragem. Quem se encolhe lixa-se, e assim aquele outro professor que para o inconciliável grupo ousa Jazz e mete a carroça à frente dos bois vai ver a sua magnifica colecção calada e estilhaçada. Mas quem declaradamente se veste de super-herói também se pode tramar de uma forma ainda mais grave, é Ford a chamar preto a Poitier ou o aluno diabólico de Vic Morrow a avisá-lo que quem vai reprovar ainda vai ser o professor. Não podemos deixar de parte como todos eles o eterno sorridente por querer ou sem querer, esse bobo da corte ou idiota cheio de ideias que assim parece feliz, sabemos logo que um dia cairá o véu da sua espera ou da sua impossibilidade, e como é comovente e revelador o único quadro em que o vemos sério…Todo o filme ali naquele background.

Soluções? Como os grandes, e Richard Brooks faz parte dessa nata, não as temos gratuitas e fica-nos a cena final depois da luta a facas que nos remete não inocentemente ao “Rebel Without a Cause”. Ford e Poitier, Dadier chamado carinhosamente e Miller em sorrisos depois do tremor, sem coisa de pupilo e autoridade, sem pele oficiosa ou fronha convencionada, e se alguma moral ou exemplaridade sobeja da batalha, ela está aí nessa descida e nessa relação já puramente possível, em que se fala de pactos e de confiança, onde o gesto e o movimento diz tudo mais do que qualquer palavra. Estamos e estivemos no campo das grandes convicções que são os campos do amor. E os campos do lamento sempre a ele associados, que aqui podem caber inteiramente numa pergunta, essa de saber como é que tanta inteligência e eminência política pretendeu agregar e disfarçar pelo simplismo, paradoxo e mesmo pelo fascismo dissimulado todos os erros e males a que se conduziram eles mesmos. Porque o filme sabe e nós temos de saber que nenhum daqueles putos tem a culpa maior ou sequer culpa. Têm muita razão e o professor Ford percebeu e vai protegê-los, dar porrada e receber, tudo a mesma coisa.

Filme de amor e Ford a olhar para Poitier e para o que vem como sempre olhou para a sua loira apaixonada. Poitier a começar a despegar-se do chão e o Around the Clock a espezinhar o tramado do verismo que tanto os suou e a fazer levitar tudo. Tal e qual como os desenhos animados que brincam com a física e a desafiam facultam mais consciência e divagação do que mil programas educacionais. Ford opôs a projecção à redução e ali ganhou copiosamente. O Richard Brooks que para mim sempre foi seco e essencial, todos os fogos se passam dentro do raio esquadrado, dramaturgicamente pertencente aquelas existências e ao seu meio mas nunca na escrita formal que prima pela observação mesmo que tensa - seja no melodramático ou na desgraça Scottfitzgeraldiana de “The Last Time I Saw Paris” ou na carne nova e madura tão pulsante e alterada do “Sweet Bird of Youthe”, isto para não entrar nos pormenores das diversas quatro paredes ou gaiolas urdidas em “Cat On A Hot Tin Roof”, muito menos em meias ou pernas e o resto a escaldar de socorro em Elisabeth Taylor – levou aqui o seu implacável poder de encenação à estupefacção e intolerável, descarnando as cascas todas mas não se esquecendo que para assim ser também é preciso depois bailar. No teatro da vida e na vida do teatro o cinema e as suas escalas, ampliando e reduzindo em profissão justiceira. Antes do fade a negro irrecuperável.

E como ele assim também Glenn Ford não assado, actor complexíssimo e inadivinhável, onde o sorriso pode conter a semente da perdição, quer pela ontológica ingenuidade quer pela animalidade intrínseca, ou a face cerrada e estoica como uma mirifica esfinge estar crente de todas as promessas. Só ele com o seu ar naturalmente confiável pôde ser o maléfico anjo de “3:10 to Yuma “, esse saco possante que delimita um circulo de inacção à sua volta mas que pisca o olho e o coração no instante final e mortal a Van Heflin pelo delírio expressionista de Delmer Daves. Espetar socos Langianos em “The Big Heat”. Expor-se bondosamente e desalmadamente neste genial “Blackboard Jungle” e deixar-se arrastar nos mecanismos, considerações e lógicas ou ilógicas dos adolescentes que trata. Ser também um igual. Não para todos.

Quem é que vai saber se é final feliz ou mais uma ilusão? Mesmo com bebés salvos, rasgadas satisfações e cinema de novo sob o signo do sonho ou de Méliès… A certeza da verticalidade e do mergulho no indefinido turbilhão da vida deu-se e tudo está ganho. Por que não deixam hoje filmar Milius ou Cimino? Misturar todos os planos e níveis vezes demais sistematizados e paralisados para no tudo em causa se apanhar a verdade essencial. Volte-se a isso sem rede e que recomece a prodigiosa perigosa aventura.