domingo, 25 de abril de 2010


“RR”, de James Benning, 111 minutos de comboios a rasgar a América mítica e uma outra que possivelmente se poderá chamar de pós-mítica – algo que reconhecemos de muito antigo, mas porém impregnado de sinais de colonização e modernidade – é um tocante e puro olhar de abstracção cinematográfica ao mesmo tempo que não pára de nos fazer reenvios e de nos segredar fantasmas, histórias, lendas, poses, gritos, derrotas e vitórias. É tão difícil “metermo-nos lá dentro” – no sentido de qualquer identificação ou aconchego – como num qualquer instante fugaz, ou então pela extraordinária sensualidade da duração dos planos, nos seja impossível não vermos ou pressentirmos os horizontes de John Ford ou a aridez poética dos planos iniciais do Howard Hawks de “Red River”; ou a película como que a dissolver-se e logo uma sobreposição a irromper serenamente e como por magia, e então, John Wayne ou qualquer um desses a surgir por ali de cavalo ou pelo próprio pé; O western possível, depois dos géneros, dos sonhos e de Hollywood? Benning chega mesmo a arriscar literalizar esse lado surrealizante na subtilíssima infiltrição de elementos off na banda som que só podem remeter para memórias dos índios e cowboys e dos rituais do velho oeste, elevando, nesses momentos, o todo a uma forma inclassificável e de contra-campos ilimitados; o mesmo para a forma como aparece a música country ou uma qualquer forma de hip-hop – o que foi e o que é; ou os discursos de ressonância histórica contra o som puramente materialista e visceral que emana do quadro. Verdadeiramente dialéctico e engrandecido pelos segredos e pelo que não ousa escancarar, “RR” não pára de nos contar e lembrar coisas, ao mesmo tempo que pode ser só um filme sobre essa forma praticamente perdida e original de um genuíno arcaísmo, modo artesanal, cristalino e desinteressado de trabalhar imagens e sons, respeitar a matéria da cena, sem qualquer tipo de inflação temporal ou mercantilista; junto da oficina e da pobreza, fora das indústrias, dos massacres e das montanhas de dinheiro. Cada quadro é uma totalidade e empreendimento absolutos e cada objecto e movimento dentro dele é moldado pelo máximo de saber e paciência, tempo e generosidade. O génio está na natureza, claro, mas a visão e o ofício de estabelecer as distâncias e de fazer esse recorte do mundo mediante o enquadramento é do cineasta. Não vale tudo, há coisas que não valem, é preciso saber o que fica dentro e o que sai fora, nem que para isso um plano demore anos e anos e anos a estar pronto para ser colhido, há quem o saiba, há certamente quem não faça a mínima ideia, Benning com certeza é dos que mais sabem, cada plano seu é uma desmedida prova de amor.
Esse respeito pelas formas, que chega a tocar o sagrado, que não se fecha em si e que logo surge aberto ao imprevisto e à vida – que pode ser o vento que sopra para onde lhe apetece ou um qualquer automóvel que entra inesperadamente e que só parece demonstrar a imensidão dos comboios que parecem ter apaixonado o cineasta. O comboio, essa máquina altiva e e imparável que furiosamente atravessa a América independentemente de tudo o resto, impassível e romântico, lírico e impiedoso, era assim no “Union Pacific” filmado por Cecil B. DeMille e continua a ser hoje, indiferente a qualquer avanço ou extermínio. Uns nunca mais acabam, outros são meros vagões funcionais; uns devem transportar pessoas e outros só cargas; temos os muito novos e os muito muito velhos, os rapidíssimos e aqueles que se arrastam e nunca mais chegam. Depois existe uma linha e um percurso, paisagens e paisagens, montes e rios, túneis e vilas, o céu e a terra e a força da verdade e da fatalidade de tudo isso, o elogio do seu ser e também o elogio dos homens, pois mesmo que aparentemente não sejam visíveis em plano algum, a sua força criadora não pode deixar nunca de ser sentida.. Vai-se a toda a velocidade ou devagar, espera-se e logo se dá tudo para recuperar o tempo perdido, os altos e os baixos, as crises e as libertações supremas. Como num road-movie em que a estrada é a vida. Um filme doce e um amplo gesto de emancipação

domingo, 18 de abril de 2010



I would attempt to explain that there is a special machine, a camera, that is a metaphor for something old.
I would tell him that we need this machine to see people, just like we need a telescope to see in the distance, or a microscope to see something close or glasses to see better.
I would say it is a machine that was invented at the beginning of the 20th century and that a few artists were its knights errant.

J.L.G


domingo, 11 de abril de 2010

Garrel e os anos 70 – o tempo e o corpo. Rasgos de luz.




“Le Bleu des origines”, “Les Hautes solitudes, “Le Berceau de Cristal” e todos os outros filmes que Garrel ofereceu a diversas mulheres pelos anos 70 – Nico, Jean Seberg, Pallenberg, etc. – são antes de tudo apreensões do tempo puro e de corpos. Experiências em que os espaços – interiores ou exteriores – os lugares, se parecem tornar unos e indecifráveis, suspensos e constantemente prontos à imersão dos corpos filmados. Nesse protagonismo do tempo e dos corpos, e sendo assim os espaços tratados – nunca, ou muitíssimo raramente, os há vazios – Garrel lança-se na tarefa de filmar o aparentemente mais simples, materialista, imediato, para chegar a alguma coisa de extremamente grave e por sua vez lancinante. Porque se o que está em cena são olhares, expressões, gestos, movimentações corporais, alguma coisa de muito primitivo e terrível acontece a um certo momento: o que fazer defronte da câmara, como estar, como a enfrentar? Não é puro feiticismo, não pode ser só isso, o acto singelo e complexo de se colocar uma máquina de cinema à frente de alguém e de lhe querer extrair o que esse alguém quiser dar. Elas fumam, chateiam-se, acalmam-se, aborrecem-se, conversam (mesmo nos filmes em que nada se ouve), simulam ataques e suicídios, etc., e o que ali vemos e sentimos em puro êxtase continua a ser algo de primordial, epicentrico: mais uma vez, o que fazer quando se bate a claquete e a película começa a registar?


Qualquer gesto e qualquer olhar, o que seja, é fonte infinita de matéria fílmica e de narratividade. Matéria. Se uma “plot” existisse, a chamada intriga sobre a qual tudo corre, distende e se desmultiplica, essa só poderia ser uma coisa: a mulher. A mulher que se insurge película dentro e nos deslumbra e arrebata. Olhamos para elas e não parámos de imaginar histórias e memórias. O que é o mesmo que dizer amor. A mulher e o amor são o centro absoluto do cinema de Garrel, não temos fotograma que não o demonstre.

Daí que até ao arrebatamento onírico e estupefaciente que se desprende dos planos – e aqueles em que nada se fuma e nada existe em qualquer espécie de “pó”, continuam habitados e carregados por essa carga densa, alucinatória e delirante – seja um passo natural e indissociável. Tudo isso existe nos interstícios e como centro, tal como a bruteza dos corpos no plano. Inseparável.

Assim se dá o milagre da sua “mise-en-scène”, que parece a um tempo aérea, fugaz, em filigrana pura, doce e terna, mas logo perfeitamente centrada, precisa, concreta, sempre a reter com toda a objectividade máxima a abstracção dos elementos referidos. Amor palpável. Cinema da pobreza e do desejo imparável.

Grandes planos, planos médios, planos inteiros, panorâmicas…o olhar de Garrel, e muitos menos o coração, seriam incapazes de reconhecer tal gramática. É que nem se põe tal questão... Anne Wiazemsky sabia mais do que quase todos quando impôs o órgão vital do cineasta à frieza maquínica. Poética. Poéticas várias, da contemplação ao desespero, do escuro ao claro.


Une chose m’a frappé dès les premiers films de Garrel, c’est qu’il travaille non pas sur l’image mais sur la pellicule elle–même et sur le cinéma qui se fabrique en circuit clos. Il y a comme un aspect autophagique dans ses films. Il semble manger son propre matériau. Il suffit de se souvenir de ses travellings dans La Concentration.Il est étonnant de voir sa manière de prendre la pellicule comme matière première sur laquelle il fixe directement son angoisse. Il transmet la sensation profonde de solitude à la pellicule dans le sens où elle apparaît comme support non fiable qui peut faire disparaître, se transformer ou s’évanouir l’image.On a toujours l’impression que la suite de l’image n’est jamais acquise, qu’il y a toujours une possibilité que l’image foute le camp en cours de représentation, que l’idée de l’image cinématographique — qui est une succession d’images fixes — ne peut jamais atteindre à la fixité, à la netteté, bref à ces qualités optiques après quoi courent tous les opérateurs. L’image chez Garrel est frileuse et vulnérable. C’est l’impression que l’on éprouve le plus physiquement en voyant ses films.

Dans des oeuvres comme Les Hautes solitudes ou L’Enfant secret, où cette sensation est évidente car il n’hésite pas à utiliser les carences mêmes de la pellicule (pellicule flashée, la sur–exposition totale, le flou, etc.), le support est sans arrêt en train de vaciller dans le même temps qu’on voit le film. Il assure une sorte de tragique, non pas extérieur et qui n’est pas du domaine de l’histoire mais qui est dû au système de représentation et de sa sensation qu’il a de la pellicule. C’est vrai dans les films où, inversement, il semble donner à l’image une plus grande solidité comme Anémone ou La Cicatrice intérieure. Là, l’image est superbe, splendide, magnifique. Pourtant on retrouve les mêmes sensations parce que, dans ces films, il travaille sur une image trop parfaite, trop nette et qui est en contrepoint par rapport à ce qui est montré : des êtres pris dans cette image qui ressentent le froid de la solitude.

Jean Douchet

Primeiro houve uma câmara, e logo depois a película. O cinema. Película, exposição, grão, emulsão. A diferença e o gesto de Garrel foi nunca ter separado nada de nada. Assim que os fotogramas rodam no motor da máquina e a virgindade dos rolos surgem automaticamente violados pela luz e pela fantasmagoria das sombras, tudo é uno e orgânico, impressão e apreensão. Questão de vida e de morte. Cinema, vida. A fita vai alterar-se e metamorfosear-se nesse momento de fatalidade em que nada fica igual ao fotograma anterior e, por sua vez, o mundo vai converter-se fantasma e grão de cinema. Da película ela mesmo. Garrel, cineasta da película, cineasta das origens. (só pode ser isso o que as aparições relâmpago do próprio Garrel, por de trás da câmara, nos querem dizer; para além da paixão e do prazer)

Os Lumière, logo ali na filmagem do comboio e dos rituais, tinham também que estar certos de que alterada a película, todo um mundo outro e uma experiência valeriam por si. Nada de reprodução exacta e naturalista, toda uma grande ilusão e sentido de brutalidade da cena. Toda uma nova ontologia pronta a sentir o mundo, as pessoas, o funda das coisas, tão ao fundo quanto a penetração da película se desse. Todo o pressentimento de um incomensurável no centro do quadro. Mundo- grão.



Nico a fumar nos limites da negridão de um quarto. Seberg furiosa com a objectiva da câmara e com o seu barulho que assusta e dá sinal da ruptura e do parto – o ruído do motor de tal instrumento sempre seduziu, impôs respeito e intimidou. Nada pode substituir isso. Pallenberg a diluir e a cheirar uns pós. Hieráticas. Neuróticas. Dormentes. Relaxadas. A película a reverter-se no pó e na memória do instante. O irracional… É impossível estabelecer as hierarquias e a ordem de tudo isto. Existe um segredo e uma correspondência altamente secreta de energias e de pactos. Um ruído numa suposta ordem, que é o vislumbramento singular das coisas e logo da sua negação racional e pueril, automática. Uma imergência e procura sobre as superfícies. Grito de purgação.




Garrel, cineasta da solidão e do escuro. Da angústia e da sala negra. Do onírico e da emoção indizível. Porque tudo o que ele olha e guarda são coisas de que não se dispõe adjectivos ou considerações imediatas.
Altas solidões, como título do filme para Seberg. Não se pode proceder assim sobre seres e almas e tudo ficar na mesma. Jamais. Todo o mergulho no abismo de tal irracionalidade é um mergulho de pura catarse e revelação. De um apagamento qualquer e do surgimento de uma luz outra. De uma brecha. Tudo sempre novo e terrifico, porque colhido na fé e na inocência do fotograma fugazmente “em branco” que se aproxima.
Lumière`s, Vigo, Epstein, Cocteau, um certo Godard, uns rasgos de Carax. Garrel. E poderiam ser outros: Warhol, algumas mulheres de Akerman, a Vanda e a Balibar de Costa…cada qual, “na sua”…
Eles sabem e a sua natureza jamais os fará agir contrariamente, jamais se enganarão a si mesmos, que o movimento único das coisas e o movimento da película têm os segredos bem guardados, privados, que não existem chaves mágicas e que o acto de os desvelar é algo de sagrado e de místico. Trata-se de um olhar e de uma crença, essa crença na luz que é a crença original do cinema. Olhar translúcido e puro, técnica perdida sobre o sonho e a vigília que não permite golpes baixos, pregações, cópias-conforme. Tempo só por si e experiência do espaço e da dureé. Cineastas-grão. Lançamento no caos e na concentração. Fixar e esconder. Mostrar e ensombrar. O principio e o fim. Arte rara que não ousa escancarar a sua significância.

sexta-feira, 9 de abril de 2010


“Estate violenta”, Valerio Zurlini, 1959

...tipo de arte de que não se dispõe nome.