domingo, 31 de janeiro de 2016


Com “Exodus” Otto Preminger atira-se para as incomensuráveis escalas em irresolúveis tabuleiros (a ruína ameaçadora de "Anatomy of a Murder" ainda era sustentada ao mesmo nível pela serenidade de James Stewart). Planando e escavando no abismo as salas irrespiráveis ou a largueza do primeiro plano deste filme comportarão a mesma compressão atómica. A missão do Israelita de Paul Newman ou a do árabe que ele enterra no final vai da nobreza clara até à mortandade inominável; os montes sagrados que eles pisam, respiram e contemplam têm inscritos as câmaras de gás de Auschwitz; Moisés trazido no instante da paixão que une todos os povos entrelaça-se nas utopias de Hitler que circundam cada balão de oxigénio e cada ocaso de fulgor dourado. O momento mais belo poderá ser o da história contada pela menina loira, que também será enterrada inacreditavelmente ou normalmente, ao Sal Mineo que deve ter queimado as pupilas nos limites que experimentou e já não destinge nada – história de fugidos, de reis e de fraternidade. Lembrar-se-á dela um dia, talvez quando não consegue atirar terra para a futura mulher, antes de partir furiosamente para a guerra, depois de o seu rosto mostrar que percebeu a inconsequência.

E a inconsequência já faz parte da descomunal dialéctica do duplo funeral, dois seres opostos unidos abaixo da terra, onde se chega à conclusão de que só os mortos partilham a paz; onde se reconhece que a terra final é a terra universal e aí a partilha é absoluta. Essa dialéctica, ou seja, o embate cego, surdo, mudo e sangrentamente omnívoro, estilhaça e extravasara no poder de fogo e no fogo que se escuta e se humilha, nas bombas que se impõe à inteireza do discurso de Newman, a terra a arder em combate com o rosto grave, cavado e já angélico de Eva Marie Saint – figura do incompreensível divino. Maria, José, os meninos, a terra prometia por que lutar, e mesmo assim o Apocalipse a cantar. Mas igualmente incompreensível e terreno é já o epílogo sempre prometido à raça – homens, animais, bichos e santos cavalgando para a morte, depois de no segundo anterior a terem olhado de frente e de dentro, à procura da paz do eterno e da justiça abstracta de que se falou. O apuramento do plano-sequência de Preminger surgiu pela necessidade de ver melhor tudo disto, fielmente e duramente, prendendo os opostos como a lucidez e a loucura no campo comum. Perene contradição e descomunal olhar que tudo abarca - os próximos filmes de Preminger iriam aos confins materiais e metafísico para exporem deste tipo de inferno na aparente normalidade e na aparente seriedade – em eterno retorno lá para 1965. Acima da terra da nossa paz.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016


Certeza absoluta: os longos filmes com que Otto Preminger entrou nos anos sessenta são tão eléctricos como “Whirlpool” ou “Angel Face”. Uma qualidade outra de electricidade que só pelo largo scope transforma o vácuo em abismo tão centrado como na típica janela clássica dos citados fantásticos (de tão vísceros). O crescente drama moral de “Advise & Consent” passa certamente pelos homens direitos de Henry Fonda e de Don Murray que mentem e se matam pela preservação da liberdade de escolha e da liberdade de contradição, da personalidade e dos limites, ou seja, a elevada redenção; encontrando-se e falando esses homens no abismo mais aterrado e aterrador que une o presente ao passado sempre actuante. A despedida de Murray para com a sua mulher e filha é um dos grandes momentos do cinema americano pois estilhaça os valores de perseverança que John Ford conservou e ousou inclusive além morte. O restante coro, do miúdo dos olhos limpos estupefacto à velha rata de Charles Laughton, sabido, imprevisível e queimado de tantas imagens e sons mesclados, não esquecendo o presidente consumido e disponível, vão ligando e desligando interruptores, na nossa perene crença e descrença que ainda nos segura.

Scope que vai dos corredores privados onde se joga o social aos patamares míticos para turista ver, dos quartos de casal aos ecos perdurantes da História naquela Washington Grega e Romana; deixando ainda todo o barulho e actualidade - a guerra iminente mas também a paz e a podridão seculares – ao lado desse campo de pressão e de tensão onde o instinto parcial pode cheirar tanto a verdade como os factos ou o asseio curricular. É esse tipo de choques que esta encenação faz faiscar em primeiro plano – os valores julgados indestrutíveis contra o momento fatal: seres em alta rotação, devorando o espaço e o tempo sem consciência, à maneira da geografia estonteante em “The Cardinal”. No términos, nada se decide depois de tanto se ter escancarado do processo ou dos circuitos complexos do cérebro e da máquina. E a câmara de filmar anda para ali às voltas, a divagar, a ziguezaguear, tão à nora como a lógica procurada. E sente-se na pele, e na cabeça, sem fio terra ou filtro protector, que os únicos homens tombados são ali os que continuam de pé. Fantasmaticamente mas sobretudo poderosamente vibrantes.

sábado, 16 de janeiro de 2016


Se neste mundo a justiça fosse plena, assim como a lógica, um filme como “Hitori musuko”, “O Filho Único” na nossa língua, um dia haveria de acertar as contas com ele, ajustando todos os atritos, voltando a um princípio claro, cheio das oportunidades e da afinação que certa vez nos concederam. A beleza de Yasujiro Ozu sempre foi a beleza inequívoca da passagem, chegando-se lentamente e normalmente do novo ao velho, do arcaico ao moderno, do nascimento à morte; e do dia à noite, aqui literalmente pelo milagre da exposição e da fusão da película. Passagem agarrada no seu pleno, numa construção indestrutível que revira inclusive os pressupostos e a cronologia. Mas nesta caminhada da Mãe que sacrificou a vida toda para dar o melhor ao seu filho, chega-se ainda a outro patamar de passagem. Sacrifício que pretendeu a honra, a posição social, o bem-estar financeiro, mas que pelo acaso e pelo fundo que passa de sangue para sangue, de espírito para espírito qualquer, se volveu dignidade. Na aldeia velhinha era a tecelagem e os sonhos fora dela; na Capital nova esse compasso mecânico e o seco desengano. Da aldeia sai-se para se ser maior; a Capital espeta cada um no seu devido lugar e altura. O professor que largou a sua terra para evoluir e acabou na evolução a vender carne frita. E a Mãe que redescobriu o filho por quem se esfolou já com mulher e um filho também, mas de cabeça baixa, paralisado nas contas da consciência. Onde as elipses são toda a história possível deles e de nós marcada na face e na alma. Se neste mundo a justiça fosse plena, assim como a lógica, as lágrimas e as palavras da Mãe sobre a importância de continuarmos de pé e de construirmos o nosso trono valeriam para todos e cada qual, ajustando a ganância e o arrivismo, ruído abjecto que humilhou o canto iniciático. E o silêncio final, porventura terminal, desencanto volvido encanto, luz singela da satisfação plena da naturalidade, teria a força dos conquistadores primitivos, dos projécteis lunares. Como o teorema do quadro do professor pobre que só lá pode estar para reequilibrar as crianças e nos reequilibrar sabidos. Naturalmente.




Creed”, oferecido por Sylvester Stallone a Ryan Coogler tal como há milhões de anos lhe tinham dado a única oportunidade, larga-nos obviamente na escadaria monumental que urge subir, para vermos toda a vida e toda a terra, dois seres fundidos contra a violência da prometida solidão, eternamente. Daqui a mais alguns milhões de anos, continuarão lá, o velho acabado e doente abraçado à estrela do momento mais ofuscante, sem distinções e salvando cada queda mal dada. Rocky Balboa é uma Mãe doce de Ozu, um obstinado puro de Frank Capra e um Hawksiano firme como um cepo. Pode dizer-se Mãe dura como um cepo de Ozu, um puro de Hawks, e um doce de Capra. Pode continuar-se a inverter as combinações e tudo dará tão certo como o dito teorema. Chegando-se à conclusão de que a arte e a moral de Stallone nunca foi a do romantismo mas antes a do trabalho, da realidade bruta, disciplina como na guerra ou no xadrez, sem comiseração. Essa dedicação bela que retira a carga negativa ao sacrifício. Mais perto dos pequenos clubes desportivos do fundo da tabela que vão fazer o brilharete ao campo dos tubarões do que das metáforas testamentais. Stallone vai à prisão ver o miúdo que ele mesmo foi há uns dias e promete não se matar vivificando o seu duplo. O miúdo perde e ganha as noites no hospital que é um lugar como os outros. Stallone sussurrou-lhe do tempo, o único adversário invicto, que importa agarrar na essência; isso é, vai-se compreendendo na demanda do conto, misturar os humanos uns com os outros, no suor e nos abraços, na carne e na experiência, sempre a aprender e a passar, unos, principiantes, consumados. A Mãe, Sly, o puto de Ozu ou de “Creed”, nas rezas ou nas noites perdidas das questões impronunciáveis, na aflição ou no momento do condão de fada, de certeza comungam com Robert Musil em "O homem sem qualidades”: «Deprecio pessoas que não seguem a expressão de Nietzsche: “passar fome na alma, por amor à verdade”; os que recuam, fracassam, os moles que se consolam com doces palavras sobre a alma, e a alimentam com sentimentos religiosos, filosóficos e poéticos que são como pãezinhos desmanchados no leite, por recearem que a razão lhes dê pedras em vez de pão.»

1936, América das oportunidades, 2016 ou o Japão expectante, a limpar o chão ou a tentar caçar galinhas, com o título mundial na palma da Mão ou prometendo ao bebé que dorme – movimentos embrenhados, encontrados e passados algures no tempo e no espaço que nos envolve, de onde a fatalidade se ajusta também. Em pleno, olhando o desenrolar e o encontro. Um passo... um soco... um round... os eixos partidos do nosso pedaço a recomporem-se. Doridos e felizes.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

«Zidane tem o lado misterioso que rodeia as estrelas. É um mito capaz de despertar emoções nas pessoas, nem sempre positivas. Não é uma estrela sem problemas, não é um indivíduo gentil. É capaz de qualquer coisa e isso faz dele um deus humano.»

Raymond Domenech, “Le Monde”

John Garfield condensa o máximo de aprumo e o máximo de suplício. O bloco perfeitamente depurado à pedra bruta. O tremor em definição. Deve ser por isso que Jean-Marie Straub o eleve tanto em película como fora dela. Em “Force of Evil” a sua personagem é também uma estrela do seu meio. Resolve o que tem a resolver, escava a solução escondida, desbloqueia o caminho. Sempre em alta cilindrada. Impossível de travar sem choque mortal. E não pensa que está a cometer o Mal. A planar nas suas sendas. Não sabe do que trata tal coisa pois nele esteve sempre metido. Não faz sentido. Muito menos o remorso. Não se recorda do antes e para um depois só a tragédia lhe desvenda a outra face. No seu terreno, no berço, no leite materno, onde o medo operou em cada acto, esquina e hora, foi o que lhe calhou. E querendo responder ao medo tornou-se o melhor da sua rua. A estrela. O Deus da luz indefinível. O dinheiro, a traição, os balcões dos cafés das seis da manhã, os cigarros em consumição, o clamor da carne, a morte a cada segundo no coração, no ar que se respira, a fidelidade. Deus, moral, amor, ensinados como a qualquer criança. A inteligência nada mais é do que seguir as correntes vitais. Homem capaz de muitas coisas. Do mais rasgado estender de mão até à cobardia degradante, a fórmula de grandeza segundo John Steinbeck. A bíblia sagrada com o velho e o novo, os livros, capítulos, versículos. Nos cúmulos orgásticos de “The Sign of the Cross” de De Mille – a víbora a tentar em torno do anjo e o desporto da raça perfurada – travam-se de razões a fé e o poder, o canto e o barulho, o sexo e o amor, a fossa e o divino, a beleza e a sua anátema – para na ascensão final se virar as costas a tamanhas dialécticas em direcção à chamada silenciosa. O rosto de Garfield, esse pequeno rectângulo espacial, em alegria, terror, desarmado, genuíno.




«Of all the Marxists who came to Hollywood, Polonsky was the most successful – single-minded, if you like – in setting the capitalist ogre within a gilded narrative frame. The scripts for his late-forties trilogy on the profite movie (Body and Soul, Force of Evil, I Can Get It for You Wholesale ) reveal characters so obsessed with money as to make Greed, by comparision, look like A Christmas Carol.»

Richard Corliss, “Talking Pictures”

Abraham Polonski conheceu e viveu pelas arestas da sobrevivência, e não perdoa uma nem se escapa a uma. A cena da matança derradeira tem a inevitabilidade de toda a ambição humana. No barril de pólvora completo só a explosão liberta. Nesse fogo, a sombra ajusta todas as contas. Orienta os estilhaços. Uns para um lado, outros para outro. Cena que rima inevitavelmente com Garfield a unir-se ou a entrar na menina inocente. Os seus fundos e as superfícies destacadas numa claridade que vale por si. Foram um ter com o outro e essa é a história. Ele diz-lhe do medo, da solução única, da verdade. Ela diz-lhe que só sabendo do mal não consegue deixar o mal. E a tragédia destapa-se toda. Revela-se lá no fundo das escadas todas. No centro do mundo. Onde se descobre que a vida é longa e o fim a acompanha. Foi preciso descer tudo para se revelar a altura dos homens. John Garfield e as lâminas circulares dos eternos retornos. Dos mármores e dos mitos. Da alma e do sangue. Polonski e Cecil B. DeMille, o realista e o fantasista, tão longe e tão perto como o corpo e a alma podem estar. Na descida e na subida, a falarem e a encontrarem-se.