sexta-feira, 19 de novembro de 2010



O infantário Jacques Doillon juntou-se a nós nos anos 70. Tem vários amores na vida
e gosta muito de crianças. Foi o primeiro a confiar-lhes um grande papel.
O Jacques Doillon faz cinema como Le Nain pinta em tempo de miséria e de farrapos
(ou por educação) tudo isso agrada muito aos estetas.
Mas o que me toca imenso é o facto de ele saber embalar os corações e de ter dado a sua vida à ternura.
Mostrar o sofrimento é muito difícil e é uma técnica, é preciso ter bom fundo e a cabeça no sítio -
é a arte católica pobre as piscadelas de olho à Igreja e as flores de macieira.
Mas é a arte.
O Jacques Doillon anda muito cansado acaba de passar a primeira parte da vida a contruir um segredo e a
guardá-lo cuidadosamente. Como temos todos os cineastas nascidos a meio do século por pouco não perdemos
a vida nisso não vamos perguntar-lhe qual é já não é nada mau que ele exista.
De todos os seus filmes eu prefiro La Femme qui Pleure, lembra-me qualquer coisa. Não é qualquer coisa que
eu saiba fazer, mas qualquer coisa que eu sei compreender; tem qualquer coisa a ver com a ambição e a correcção
de espírito. Eu sou mais de esquerda, mas fico impressionado (quando não estou atrás de uma mesa de montagem ou
de uma câmara, porque aí, é a mesma coisa, têm de ver-me, sou anarquista). Mas eu não vi todos os filmes dele, eu
queria dizer que prefiro esse ao La Drôlesse, apesar de me dar orgulho que um de nós tenha ido a Cannes, por causa
da idade e do segredo de há bocado. Mesmo que venha a ser preciso abandonarmos essa ideia do mundo, a nossa idade
por razões de nascimento e de responsabilidade; aliás ele viu bem isso, o Jacques Doillon, os nossos pequenos
previlégios, mas não acho que ele venha a usar isso contra os operários da nossa idade e contra os pais deles, e
é por isso que eu gosto muito dele ele foi formado na escola da vida. Aliás os artistas não dizem grande coisa aos ricaços
porque se fala de amor e de liberdade na nossa geração. Não temos grande poder aliás a câmara é cara.
Cara câmara de Jacques Doillon.
O cinema Jacques Doillon os ministérios da arte ouve-se uma sonata para crianças escrever sonetos e lágrimas
uma vida de província uma razão maior
(um século de cores e de pastéis escondidos no fundo dos baús uma escada um sotão)
uma adolescente
uma casa um jardim (desenho notável) e personagens que um traço muito fino delimita e faz sucumbir
na razão por aflição;
a coragem de uma criança e de uma jovem mãe;
o choro desta última e a sua tenecidade;
os dias castos e os dias em que se faz amor
o amor, a palavra escapou-se-nos, os filmes de amor...
Um dia estou numa pequena sala de projecção perante o filme mais bem representado da temporada, afino o meu violino,
La Femme qui Pleure; as pessoas à minha volta acham que é demasiado verdadeiro para ser bajulado os caracteres, as
atitudes. Aliás o Jacques Doillon poderia defender os meus filmes como eu hoje defendo os deles.Também não sei por que
outro motivo se não pelo que está relacionado com a moda ou o dinheiro digamos pelos sentimentos, para falar de outra coisa
(ou por inteligência, mas isso não se diz).


Philippe Garrel

quinta-feira, 18 de novembro de 2010




João Botelho a ensinar o que Jean - Marie Straub lhe ensinou: "um western de Boeticher pode ser tão bom como um de Ford".
Um Western de André De Toth pode ser tão intenso e vibrante e materialista e cheio de segredos e zonas escuras como um de Ford ou Boeticher.
"Day of the Outlaw", 1959, sem Randolph Scott mas com Robert Ryan, a preto e a branco e não a cores descoloridas , comprimido e irrespirável, pode fazer remissões aterradoras ao cinema de Straub/Huillet. Mas não interessa muito ou interessa tudo.
João Bénard da Costa sobre "Forty Guns", outro insuportável:"Fuller, que sempre foi de conter a respiração, como quando muito se corre ou como quando muito se ama, não foi ao oeste para respirar naqueles imensos espaços, sublinhados pelo scope. Foi para nos comprimir num espaço que é um momento perdido nesse espaço."
Onde Fuller explode e estilhaça e impõe o sumptuoso e doloroso liricismo, De Toth implode e ameaça a catástrofe a qualquer segundo e em qualquer cena. Está tudo nas rugas e na beleza
da planura da imagem e lá dentro muito dentro.

Longe (aparentemente) das grandes respirações orgánicas das paisagens de Ford; Longe (aparentemente) da fúria mineral e do pó dos duelos de "Seven Men from Now" ou "The Tall T"; Longe (aparentemente) dos Straub e de tudo o que eles significam?
Mais perto de Anthony Mann e do seu scope ou bastante mais perto de outro grande e imensamente (criminosamente) esqueçido western fora-da-léi, o feérico "Track of the Cat", do
igualmente esqueçido William A. Wellmen?
Chega de perguntas, chega de "raccords". Chega? O que liga tudo isto é que apesar das traições e das humilhações, dos fracos e das fraquezas, das mentiras e dos judas, estamos em "mundos de homens". Mundos de justiças, de honra, de bater forte e de repor coisas no lugar certo, de tirar a limpo. Onde quem bate nas mulheres apresta-se a levar na boca e onde crianças reconheçem e compactuam com os
de bom coração. Galáxias, constelações e abismos, valores e emoções, sentimentos, que faz de tudo uma e a mesma coisa. Impossivél nos dias de hoje.

André De Toth foi igualmente aos grandissimos espaços e à neve, às florestas e ao frio que corta, enfiou-se nas pequenas habitações como Wellman também o fez no "Cat", revestiu tudo isso
sobre um preto e branco sem meias medidas, denssíssimo/escuríssimo/branquíssimo, aplicou a elevada largura e o rasgamento da lente a um enclausuramento brutal onde só nos limites da profundidade poderemos sonhar e fugir para onde as bordas do enquadramento e a distância adoptada jamais dão tréguas. Aquele suposto verde e aquele suposto branco como nos contos infantis...
A parte final, lá fora, é o teatro (palavra fundamental tanto para a forma cinematográfica como para a dissimulação dos homens que andam pelo filme) do horror onde o paroxismo e a contenção já explodiram e a tragédia e o rasto de perpetuação se confirmam. Sem "happy end" possivél. Sem pacificação.

André De Toth cinesta da matéria. André De Toth cineasta da forma. André De Toth cineasta da mise-en-scéne. "Mise-en-scéne" palavra tão mal entendia, mal aplicada e mal executada.
Mise-en-scéne, princípio do cinema e príncipio do olhar. Princípio de toda a forma.

André De Toth sabe-o tão bem como Oliveira e Rivette e o modo magistral, seco e claro como expõe tudo isso está numa das sequências mais impressionantes de timming, découpage
e utilização da câmara que alguma vez vi. Robert Ryan desce as escadas e prepara-se para incendiar tudo; o seu parceiro está deitado na mesa e não parece lá grande coisa;
Ryan tenta alcançar a garrafa do fogo e é severamente ameaçada; ecos de duelo e de confrontos no ar; Ryan não se encolhe, tenta reforços e ajudas; Põe uma garrafa vazia a rolar sobre o balcão. Magnífico , verdadeiramente magnífico travelling de acompanhamento sobre a garrafa. Um dos mais inacreditáveis e insólitos que já vi. Para a direita. Quando esta (a garrafa) deixar de rolar as balas atingirão as carnes sem piedade. Haverá sangue.
Mas tudo isso é cortado pela entrada dos intrusos que tudo revertirão e porão em causa.
Uma hora depois, mais coisa menos coisa, e já estão os intrusos a sair de casa. Para o inferno. De Toth aproxima-se de uma jovem mulher e aplica-lhe um não menos fabuloso e terno travelling sobre o olhar. Para a direita.
Não há saída e o génio de um imenso cineasta é assim liberto e sentido, na pele.

"Day of the Outlaw". "Track of the Cat". Monumentos singulares. Monumentos sussurados. Monumentos para alguns. "Foras-da-léi, os outros são todos conheçidos". Foi o que alguém me disse e é toda a verdade que importa. Abraço.

terça-feira, 9 de novembro de 2010


O SOMMA lUCE

Filme de Jean-Marie Straub assente no último cântico do paraíso com que Dante fechou esse capítulo da Divina Comédia? Rigorosa mise-en-scène da palavra, do gesto humano e do génio/colosso da natureza?
Tudo isso nos vai dar Straub, com a mesma implacabilidade e precisão de sempre, ou com um novo abismo, esse violento abismo que a imprevisibilidade de um ramo de árvore sacudido pelo vento ou os “incidentes” do som directo permitem irromper, abanar, fazer tremer, quase explodir o que muitos dizem ser um sistema formal perfeito ou um qualquer dispositivo fechado em si mesmo. Apenas duas ou três coisas e uma infinitude de direcções.
Straub sempre foi um dialéctico; um tradicionalista dialéctico; cineasta das furiosas oposições, dos paroxismos em surdina ou das catástrofes em suspiro. Dos transes da palavra feita cântico e dos milímetros cerrados do visível. “Violência com violência”, no principio como no fim, "O Somma Luce" comporta em si uma lógica explosiva.

Peça bipolar; peça uníssona às origens. Do humano e do mundo. Filme de forças antígonas e de extremos que se olham e se falam. Um embate e um reconhecimento.

Ao filme. Créditos curtos, créditos generosos, "O Somma Luce" abre a preto e a preto continua até metade, nesses sete minutos em que a música aterradora de Edgar Varèse nos permite aceder e imergir em qualquer coisa próxima do inferno ou das trevas. Negro absoluto –Ritmo hipnotizante – Inferno.

Da peça musical ao título. Do negro–negro à luz absoluta. Do mais profundo subterrâneo à claridade que cega. Da morte à vida. Do fim dos fins à sedutora e insuportável luminosidade.
Do inferno ao paraíso.

Se Straub constrói este movimento dramático e sensível, imagético e sonoro, musical e vital (câmara, som, texto) a sua inteligência é a recusa de fronteiras estanques e lógicas deterministas. Já sabíamos, o negro medonho pode comportar a mais efusiva das asceses ou das catarses. O negro medonho pode comportar toda a complexidade e segredos do universo. Assim como a luz suprema é tantas vezes a imagem do incomensurável e logo do insuportável. Do absoluto e da perdição. De um cosmos onde aparentemente nada se vê a um cosmos onde demais se vê, do que se tacteia ao que excede, tudo constantemente se reverte e se corresponde sigilosamente. Uma e a mesma coisa. O sentido na eclosão/implusão e as mais fundas trevas impressas na magnífica luz que pela primeira vez Straub escava pela alta definição. Um homem e um texto, o verde terrestre e o azul do céu, a terra original, a envolvência do mundo e o ecoar das profundezas. Matéria.

Danièle Huillet, qualquer coisa assim no filme de Pedro Costa: “O negro não é simplesmente negro, ele pode conter uma imensidão de ruído e de coisas”. De tudo. "O Somma Luce" continua a ser um filme dos dois. Straub-Huillet. E não era preciso socorrer-se aos créditos que tudo abrem.

Uma ode. Uma tragédia. Uma bomba aos opressores. Uma carta de amor.