por Sérgio Alpendre
- Queria começar pelo Já Visto Jamais Visto e como este filme se insere na sua trajetória.
Ele não se insere da mesma forma que os outros filmes. De uma certa
maneira, sim, pois todos têm mais a ver com o estado intuitivo,
emocional, com coisas mais internas, do que com motivações externas que
justifiquem uma estratégia temática. Meus trabalhos sempre foram muito
mais gerados por uma motivação quase irresistível interna, uma
compulsão... Eu desenhava, pintava... O traço acaba conduzindo ao que
estou sentindo, assim como a caligrafia, a forma da escrita que vai se
alterando conforme você quer que ela corresponda a um estado emocional
muito mais do que a uma forma descritiva daquilo que você está pensando.
Nunca foram coisas que eu soubesse a priori o que são, elas no processo
se tornaram aquilo que eu fui descobrindo que eram.
Vendo os
trabalhos anteriores, Olho por Olho nasce de uma raiva, de um momento de
juventude, aquela coisa de não saber para que lado ir, no início da
ditadura militar no Brasil. Blá Blá Blá obviamente corresponde a uma
raiva ainda maior, uma tentativa de extravasar a retórica, a ideia das
palavras como forma de dominação, etc. Bang Bang também faz parte disso,
mas já entra no início de uma sexualidade intensa, e ao mesmo tempo as
drogas... maconha... que era algo muito presente. Havia uma certa
marginalidade nisso, ao contrário de hoje, que muitas vezes é até
conveniente em festas. As drogas nunca existiram na minha vida como um
barato, mas como um processo de descoberta, pela instrumentalização
disso, um processo de concentração (apesar de que muita gente fala em
dispersão), de atenção com o que estou fazendo. Serras da Desordem
também nasce de uma coisa interior, um momento de separação de filho,
esposa, perda da família, e do encontro dessa história trágica, da
questão indígena: um crime, um massacre, que neste país é um método de
genocídio. O Brasil é um país de apartheids, tem Faixa de Gaza no Mato
Grosso, por exemplo. Quando Sydney Possuelo veio a São Paulo em 1979
procurando alguém para documentar uma expedição aos índios não
contactados, fui chamado por ter feito Conversas do Maranhão, que é um
filme que eu pulei nesta conversa por ter nascido de algo externo, uma
denúncia, uma possibilidade de trabalhar uma questão nova para mim.
Serras tem esse lado também, de busca, de investigar um sentimento que é
meu, mas que no personagem Carapiru existe externamente de uma maneira
muito mais violenta, e foi uma forma que encontrei de olhar pela lente
para um ser que passou por isso (o genocídio). Na questão de Os Arara
existia esse olhar para o outro como se isso pudesse ser algo diferente.
Porque na verdade o que é diferente são as concepções, os conceitos,
mas a maquininha é a mesma, o olhar, o sentido de audição, o tato... Eu
achava que um olho que nunca tivesse visto um filme, uma foto, uma TV,
eventualmente eu pudesse reconhecer, por meio de uma câmera, alguma
coisa que eu desconhecesse desse outro olhar. Bobagem, fantasia de
moleque que está lendo antropologia, coisas sobre a questão indígena.
Essas expedições são uma experiência de vida, porque mudam nossa
percepção, nosso conhecimento de sentidos. Quando você se mete numa mata
meses seguidos, a ordem dos sentidos muda, seu metabolismo muda, sua
percepção do ambiente muda, a acuidade auditiva muda, a acuidade visual
também, você realmente passa a ter uma percepção do entorno, e do
alcance dos sentidos.
Já Visto Jamais Visto chega num momento em que
eu não conseguia mais produzir. Meus roteiros não são de filmes
prontos, como pedem, são de ideias, de conceitos, possibilidades a serem
desenvolvidas, como um método de conhecimento das coisas. Eu estava
vivendo a percepção da perda de um monte de coisas que fui filmando ao
longo de minha vida, que foram guardadas porque eram projetos que
começavam com esse tipo de intuição e energia, e depois morriam porque
não tinham condições de serem produzidas, a realidade mudava, os amigos
iam embora, não havia então uma continuidade. Esses buracos na memória
geraram o Já Visto Jamais Visto. É a tentativa de dar algum sentido a
essa ausência, vivida, mas ainda assim uma ausência. Pensei que
eventualmente uma imagem poderia trazer para além daquilo que ela
estivesse mostrando, ela traria a possibilidade de uma memória do
contorno, do momento, da época. Max Fagotti me ajudou a fazer o
levantamento do material todo que sobreviveu, montou um projeto de
descrição de cada material, apresentou à Cinemateca, e dois anos depois
eles me procuraram e conseguimos telecinar o material em Super 8, 16mm e
35mm. Coisas que nunca tinham sido revistas, nem montadas. Assisti a
essas coisas todas, uma bagunça de coisas e situações diferentes, com o
compromisso de apresentar alguma coisa desse material, com a motivação
de evitar a perda da memória.
Então tínhamos Paixões (1994), que
era um projeto com Joel Yamaji, a tentativa de desenvolver uma história
de um italiano no Brasil, um pouco a minha história, do meu pai, e tudo
isso gerado pela minha descoberta de que na região de Extrema (MG)
existiam vários italianos, fiz entrevista com eles, para saber como
viviam, e isso acabou se ligando um pouco: como meu pai veio ao Brasil,
por que, qual é a minha história... Meu filho tinha nove anos na época, e
é um pouco então as perguntas que essa criança se faria a respeito de
sua história. No fim, havia duas coisas: a memória, em que eu buscava
elementos dentro desses materiais para recuperar parte desse passado e a
possibilidade de narrar essa história a partir do ponto de vista de uma
criança que se referia a um pai; e havia também a minha história, como
criança vindo ao Brasil e perdendo a origem, a família, os primos, de
rebuscar a história de um pai, que nunca conversou comigo sobre essas
coisas, que faleceu cedo, e a percepção do que é um trajeto de
afetividade, em que meu pai, eu e meu filho é como se fossem um corpo
só, um ser só, que lembra, imagina, sonha, que guardou coisas,
fantasias. Havia uma tentativa de se fazer uma ficção dessa história,
mas junto com o levantamento de fotografias da família que fui captando
em minhas viagens à Itália, visando entender o meu passado.
As
coisas se encaixaram meio que automaticamente. Depois veio o trabalho da
Cris (Amaral), de limpeza. Havia mais coisas que queríamos colocar, mas
o contrato com o Itaú Cultural estipulava 54 minutos. Cheguei a
oferecer um longa para eles, mas quem te responde é a burocracia, gente
que não tem nada a ver com isso, e não entende que um longa na mão é
muito melhor que um filme de 54 minutos. Mas minha finalidade não era,
em princípio, fazer disso um longa, uma série, um curta, o que for, mas
perceber nesse material minha existência afetiva. Tanto que a maioria
das pessoas que aparecem nesse filme, afora eu, meu filho, a mãe, Joel,
morreram. Mas são pessoas com as quais sempre tive ligações afetivas,
que é como me ligo às pessoas, afetivamente. Não sou de patota, de
grupo, de associação, de entidade, partido. Pelo contrário, fujo de tudo
isso. Em suma, Já Visto Jamais Visto se origina de tudo isso. Até mesmo o título já diz o que é, assim mesmo, sem vírgula.
(...)
- Hoje em dia tudo precisa de explicações, de uma bula. Você precisa
entender as coisas senão não tem como acessá-las. Isso estraga um pouco a
experiência. Se você não tem um entendimento formado, ou você até tem
esse entendimento, mas não sabe se é o certo, as coisas ficam mais
interessantes.
Tudo ficou funcional. Mesmo a compreensão ("ah, então eu sei o que é
isso"). Eu vejo no cinema. Hoje, revendo clássicos do cinema, eu vejo
filmes novos. Eu mudo, a pessoa muda. De um dia para outro você é outro.
Se aquilo ficou fixo e você o olha novamente, aquilo assume outro
sentido, outra história. Isso também é fantástico. É muito mais rico do
que algo determinado. Tenho a impressão que a riqueza da vida é
justamente essa: o desconhecimento, e a tentativa, que é talvez de nossa
materialidade, de fixar alguma coisa, e ao mesmo tempo ter a
consciência de que é uma bobagem fazer isso, uma estupidez. É preferível
viver esse fluxo do que procurar defini-lo.