quinta-feira, 6 de julho de 2017


"Island in the Sun", Robert Rossen, 1957


“Island in the Sun” escancara e condensa o facto de Robert Rossen ser um dos grandes mestres do enquadramento americano. Estamos perante um mosaico, em que as corridas eleitorais ou mesmo os crimes e castigos literais ou simbólicos escritos no presente puro são parte lamentavelmente acessória de uma grande engrenagem encetada pelos imemoriais anos, talvez quando se inventou que o remédio para a solidão era dividir o mundo entre preto e branco, ricos e pobres, esquerdas e direitas, femininos e masculinos e por aí fora. Rossen acredita, como um Losey ou um Kazan mas com um nervo que se magnetiza aos olhos e à postura da carne e logo ao interior e não tanto à relação com a profundidade espacial – mesmo que aqui ela (a profundidade) também escancare e até comente – que toda a tensão do drama e do choque é questão de linhas e de tempo, de aguentar o máximo de crispação e de conflito num ponto-de-vista único e inquestionável. Basta a cena entre James Mason e a esposa ao espelho para se perceber que haverá tragédia – que até é mais significativa por estar em picado do que a cena da violação conjugal em campo de flores idílico; ou o momento penoso em que o mesmo Mason é desafiado a “tomar conta da ilha” pelo homem que irá trucidar e o extraordinário Harry Belafonte de rompante ocupa o lado contrário do quadro e tudo se vai desequilibrando, equilibrando, num balanço realmente precário e grave que rebenta com qualquer medida ou fórmula – e a maneira como não se corta abruptamente mas com o tempo preciso e indecifrável para o negro e a loira que serão a chave final e irresolúvel de tudo é a imagem acabada deste tipo de casta. No cantinho insignificante do recorte pode estar o fundamental ou a humanidade completa, o ser e a paisagem centrados.
 
Da abertura em que ficamos a saber tudo daquela ilha queimada pelo combustível transcendental do Sol – e ficamos a saber mesmo tudo, da pesca às canas, como depois iremos ver a pedra a ser trabalhada parecendo já outro continente, as típicas bananas ou os rituais maquiavélicos da alegria e irrisão carnavalesca – e onde a música de embalo e que tem coisas a dizer ao invés de apagar a rugosidade só a amplia – escutamos o vento nas ervas e os riscos na pele, sabemos que o perigo espreita em cada esquina ou sombra do espaço, vindo de qualquer hora; não perigos grandiosos, explosões ou a Épica, mas a enervante pulsão incontrolável do rumor, trovoada do inesperado, o animal dentro de cada ser por mais sossegado que seja – Zola ou Frank Norris também estão aqui mas a um nível disseminado, sem preparação ou suspeita – como um filho a travar a bofetada da Mãe devolvendo pelo gesto e olhar um crime em potência, a velocidade do carro do mesmo Mason a clamar genocídios, culminando na tal morte que é um instante de inocência para lá do concebido.
 
O "criminoso" naquela ilha que funciona como um poço do inferno que seria juntar todas as raças e credos para uma análise é algo abstracto, endémico e alastrador como as pestes que Rossen persegue com a força vingadora e justiceira das formas mais básicas e mais potentes – a fixidez de um olhar, quanto tempo se aguenta olhar para o busílis, para o sol, a matemática ou a harmonia menos analítica e completamente pulsional, estilhaçada, corpo-a-corpo com a matéria que colhe. Não temos personagens principais mas uma gesta emoldurada onde alguém sai por uns momentos breves ou eternos mas volta – dá para nos esquecermos da situação anterior – para o enquadramento que parece também ter as suas razões recônditas, como um deus, mas um deus humano, pulsante e mesmo parcial, lembrando o berço universal aonde se volta sempre no “Intolerance” de Griffith. «Há um momento da vida em que deixamos de ser muitas coisas para sermos só uma. Cobardes», diz Gary Cooper, noutro dos filmes máximos de Rossen, “They Came to Cordura”, e é o que se passa na energia das formas que envolvem “The Hustler” ou o conto já no outro mundo chamado “Lilith”, formas que se vão decidindo, concentrando, apurando; todos os choques, embates, contrários, faíscas, cores, credos, lados, lutas gigantescas entre a representação dos actores e a sua verdade – a psicose de Mason é gémea da de “Bigger than Life” -são travados igualmente com o cinema, a distância, a medida da verdade. Uma cena em Rossen começa com todas as possibilidades e termina num big-bang que tudo denúncia.
 
“Island in the Sun”, que poderia ser um remake de “Light in August”, é um dos mais Faulknarianos filmes da história. Existe aquele paraíso etéreo do musical que faz o todo planar e partir-se ainda mais – Belafonte a cantar e a comungar com os seus – miscigenação indestrinçável, sangue e sémen desterrados, segredos mortos e enterrados a clamarem dum tumulo longínquo e vivo, lirismo terminal da manifestação e impassibilidade da natura em torno do desespero dos apaixonados que tentam sondar a grande resposta; e o começo do éden a imiscuir-se no inferno; Faulknariano de um modo menos doentio e tétrico do que a parte aterradora de “Today We Live” e mais a apontar para a solidão do plano derradeiro, onde um homem caminha em direcção ao nada e envolvido e fazendo corpo presente num laranja fogo de um crepúsculo, pacificado na sua completa divisão. Depois de tudo ter acabado, passados os degredos ou sempre chafurdando neles, ainda o Homem. Mais uma vez e depois de Rossen nos ter mostrado que aguentava todo o peso do cosmos, do pecado e da luz nos seus ombros que são os de cada um.

Glauber Rocha num aeroporto a ver alguém numa livraria com “The Wild Palms” em punho e reconhecendo Robert Rossen (contou-me Bruno Andrade depois de lhe ter contado Carlão Reichenbach que o soube pelo próprio Glauber). Pela casta e pela garra os homens reconhecem-se. Até à última rocha inútil suspensa sem ordem na última noite vermelha e moribunda.