Mais de trinta anos depois pode-se discorrer das profecias de
“Taipei Story” e da sua perfeita actualidade. A visão de Edward Yang era local,
cimentava-se na sua naturalidade, agigantava-se com o crescimento desenfreado e
desordenado dessa cidade, a gentrificação revoltante, uma falta de visão
grosseira e os favorecimentos corruptos, incríveis erros crassos de planeamento
e a plástica indistinção, ou seja, tudo o que hoje se debate em qualquer grande
urbe europeia, todos os super-problemas; quanto à construção cinematográfica
ela surge insólita, vacilante, carregada de espaços ocos de narrativa e de
não-lugares, de enquadramentos ao lado, perdidos, com elos que se desviam ou
partem antes da união significante e silêncios que acabam os ditos, esquadrias
e balanços resvalantes, em foras-de-campo que se completam por si mesmos e
frontalidades ilusórias, utilizando argamassas tremelicantes que bazam por
atmosferas dúbias. O ar e a maquinação de um tempo a influir na construção geral e na
arte.
Como todos os grandes cineastas livres e comprometidos, de Michelangelo
Antonioni a Paulo Rocha, dos quais Yang não imita nada mas é puxado pela mesma
corrente funda e pesada de romanesco e de presente – o místico rio oriental de
um Mizoguchi está aqui no céu universal lá longe e impenetrável, no seu sangue
e nos seus mistérios – o tema não são esses problemas tão novos como imemoriais
que se perpetuam e renovam em constante espéctaculo sensacionalista, mas sim o
desajuste de uma sensibilidade para com essa paisagem, para com esse meio, para
com essa inteligência, para com essas fatalidades a regressarem travestidas. Há
quem aceite e tome partido desse caos para vencer, tal como nas guerras existem
aproveitadores sombrios, e depois temos os que entram em rota de colisão e em
guerra com o que os ultrapassa por natureza; então, Lung, a personagem de Hou
Hsiao-Hsien, é alguém que ainda tenta ser um oportunista, um negociante, um hustler no sentido puramente americano –
e o tema da América e do american dream, e do que isso também representa
e reenvia para a geração e colonização de Yang é outro centro descentrado e
estilhaçado desta obra descalibrada – mas se deixa trucidar pelos sonhos e
pelos contos-de-fadas da infância que jamais conseguiu abater para o seu
suposto bem. O seu velho treinador que ele insiste em procurar e apoiar é a
cepa e o tesouro de um paraíso perdido, ave rara ou ecossistema que terminará
por decisão própria.
O tema primordial e que tudo arrasta para a perdição mais lancinante
é o da inocência; Lung carrega uma marca, tal como o Scarface de Howard Hawks; um falhanço uterino, como o “Xavier” de
Manuel Mozos; uma estupefação e não aceitação do inaceitável, à maneira de
Robert Mulligan e do “The Nickel Ride”; e parecendo tudo terminar em tragédia
total ele sai tão vencedor como o Cosmo Vitelli no “The Killing of a Chinese
Bookie” de John Cassavetes; uma vitória espiritual, a pairar para lá das
nuvens, como flor desprotegida no incomensurável deserto, praticamente nada,
mas qualquer coisa que vai ser contada à porta de um berço futuro, perpetuando
as fábulas justas e salvadoras. Lung foi alguém que por motivos que nos vão ou
não ficar alheios permaneceu um sonhador, permaneceu nos campos dos domingos de
festa com bastas assistências e nos treinos vazios do seu baseball,
palco de ouro que poderia ser outra magia qualquer, permaneceu com todas as
esperanças e possibilidades intactas do merecimento e da justiça da palavra
ensinada numa escola ou numa igreja, pelo avô no campo ou pela mãe à mesa. Não
cresceu, não se ajustou, mas como se calhar viu filmes a mais com gangsters,
acreditou nessa possibilidade, tentou a dita normalidade, forçou a barra,
abafou o coração, tocou no podre, e embateu de frente e com todo o peso na
lengalenga verdadeira que alguns nunca matam; regressou ao paraíso perdido e percebeu
de tal impossibilidade.
Tudo isso foi o que a antiga princesa dos seus sonhos lhe
atira à cara numa cena nocturna de baloiços e de timidez, nessa noite mágica e
amarga que cede rampa à morte prometida que ele parece esperar; “Taipei Story”
são todas as actualidades dos telejornais e dos correios da manhã a humilharem
a criança de outrora. E a morte a ser mais doce do que a permanência no cinzentismo
inegociável. Não se trata de desprezar as duas presenças e forças femininas, as
mães e os pais, o amigo tão terno, mas tudo converge e sintetiza, fantasmagoria
mas ainda pulso, em Lung. Os planos finais, como todos os outros, são
inaceitáveis e são doces, e Lung é constantemente – como no filme de Mozos
referido, como nos outros – um meteorito que enquanto dura envergonha o
degredo, esse orgulho dos tecnocratas superiores. Uma presença de anjo a entregar de boa vontade
o dinheiro que não tem, a resgatar condenados merecidos e inocentes, a dar o
leite aos seus órfãos, a cavalgar num inferno que de tão mesquinho e falso e frio nem
Dante imaginou; Lung não tem pena de si mesmo, apenas segue o único curso e a
única música que pode seguir. Pelos esconsos cantos e pelas fissuras do vento
lá vai um principezinho, um capuchinho vermelho ou um exterminador implacável
que um dia há de aconchegar dos seus e forçar mais um pouco da revolução
secreta.
É isso ainda que nos faz ver as luzes nocturnas das festas de
libertação e de sexo, sofisticação ou aberração tornada pura poesia na
conjugação e comunhão de todos os elementos, a electrónica e a carne, como as
montanhas e o respetivo sopro lírico das sequências próximas, continuando o
humanismo de Yasujiro Ozu – não se critica nada e quem quiser que o faça ou
simplesmente ame. Tais como as sombras e o surrealismo da observação pausada,
sem tempo, nos monumentos seculares e sacros ou na pedra moderna a cair dos
prédios ainda não reparados, o diálogo entre o mais longínquo e todas as
ambições imortais. “Taipei Story” trata da casta das vias-sacras e da pureza
sua irmã. Para daqui a triliões de anos vezes infinitos.