A partir de hoje (02/09), por meio das plataformas NOW, VIVO, LOOKE, GOOGLE PLAY ITUNES e MICROSOFT, o público brasileiro pode, enfim, assistir a um dos melhores filmes do ano retrasado: Os Conselhos da Noite (2019), do cineasta português José Oliveira.
Estrelado por Tiago Aldeia, Adolfo Luxúria Canibal, Marta Carvalho e José Lopes, o longa-metragem segue Roberto (Aldeia), jornalista desiludido que retorna a Braga, sua cidade natal, a fim de revisitar o próprio passado. No entanto, entre reencontros e descobertas, um novo capítulo se abre em sua vida.
A ligação de José Oliveira com o Brasil não é nova. O seu curta Longe, de 2016, foi exibido na mostra Perspectivas do Cinema Português, a qual passou por São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Curitiba e Florianópolis. E o seu mais recente longa, codirigido por Marta Ramos e intitulado Guerra, fez parte da programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2020. Além disso, José escreve para a brasileira FOCO — Revista de Cinema.
Meses atrás, o Estado da Arte entrevistou José Oliveira acerca de Os Conselhos da Noite (a entrevista pode ser lida aqui). Hoje, temos o privilégio de publicar, com exclusividade e por ocasião da estreia do filme no Brasil, um texto de sua autoria.
Os Conselhos da Noite de José Oliveira, por… José Oliveira
Eu e o João Palhares começamos a pensar fazer um filme sobre a nossa cidade, Braga, no norte de Portugal, distrito do Minho, nos começos de 2014. Um frio gélido, um ar rarefeito, cinzento, leve e denso ao mesmo tempo, e uma certa revolta em nós. Uma revolta que hoje não me é fácil de definir nos seus exatos contornos, mas que tinha a ver com os encontros inesperados que muitas vezes se davam nos lugares menos propícios a isso, e a imagem que o exterior, não só o resto do país, mas as localidades próximas, continuavam a ter em relação a esse universo. Revolta conosco por estarmos defronte a algo que não estávamos a reconhecer e logo a não querer aceitar de mãos vazias. Encontros com personagens que pareciam saídas de outras décadas e eras, por exemplo dos anos oitenta e da música punk dos Mão Morta (Adolfo Luxúria Canibal, o líder do grupo, representa simbolicamente a personagem de Vicente no filme) ou do romantismo de Sebastião Alba, mas também encontros com dançarinos bizarros a bailar em frente a lugares sagrados, sonoridades eletrónicas indefiníveis, noites de poesia e de profanidades, um santuário dedicado a Zeca Afonso, esse poeta e andarilho da nossa revolução de abril etc.
Lembro-me bem que nem tudo era genial e descabelado como o dançarino que vemos no filme, e que é ele mesmo a viver e não a representar, pois havia, como em todo o lado, poesia péssima ou mentalidades da idade da pedra, mas esses encontros, embates e diálogos entre várias coisas que se rasgavam e amplificavam umas às outras eram muito surpreendentes para mim e acho que também para o João Palhares. No meu caso tinha vivido largas temporadas fora de Braga e ia ficando estupefacto a cada regresso.
E, como continuávamos “presos” no cinema e a ver muito cinema, sentíamos pena que quase todo o cinema em Portugal, pelo menos o que se fala na imprensa e é por isso amplamente mostrado, claro, continuasse perpetuamente por Lisboa. E queríamos, num frio infernal, tentar possibilidades. Possibilidades para esses personagens para nós tocantes, para essas situações, a arte visceral e a não tão significativa, a mudança de paradigma e de visão do mundo, a reviravolta política e aquela que só aparentemente se modificou. Possibilidades ainda para deixar impresso o que não gostávamos e o que achávamos que não estava nem nunca vai estar bem.
Uma espécie de utopia que tinha de ser abundante — meter o máximo que conseguíssemos, de personagens a diálogos, dos espaços marcantes à ação — e contundente, ou seja, tínhamos mesmo que levar a empreitada para a frente e não desistir nas dificuldades, pois senão seríamos uns fala baratos e continuaria a não existir a possibilidade de cinema em lugares como Braga. E isto nada tinha a ver com regionalismos, pois a nossa inspiração continuava a ser o cinema americano clássico ou mesmo o “lisboeta” Manuel Mozos, por causa do humanismo, da profundidade dos seres, do ritmo marcado, da respiração fílmica mais ligada ao pulsar da vida do que à contemplação vácua. Entre Janeiro e Fevereiro desse ano vi mais de trinta vezes o “Some Came Running” (“Deus Sabe Quanto Amei) de Vincente Minnelli, inteiro ou em partes, pois a história a contar era a mesma, o clima igualmente, alguém que regressa a casa e fica furioso em primeira instância, mas depois…
Mas depois lá conseguimos escrever, ou quase sempre transcrever, pois verdade seja dita o trabalho teve mais a ver com organização. Quando virem o filme, encontrarão uma roulotte noturna e alguns clientes habituais desses espaços, e garanto-vos que tudo o que sai da boca deles saiu primeiramente da boca de gente real que ali esteve, nesse mesmo local, perdidos nos ermos e nas solidões das altas horas, circundados por betão, aridez, costumes bons ou maus e possibilidades infinitas. A caminhada que o personagem principal, Roberto, concretiza até ao Mosteiro de Tibães, e que muitos ao verem o filme disseram forçada por causa de míseros 10 km ou nem isso, foi feita pelo João Palhares e escrita a seguir, com as elipses e as sínteses do cinema a entrarem em campo. Enfim, da segunda vez que Roberto se dirige ao pavilhão desportivo da sua infância e fala com umas senhoras e depois com o treinador, essas senhoras costumam estar mesmo lá e falar com esses modos e sorrisos e sotaques e esse treinador é mesmo uma lenda do desporto e não um ator a fingir de lenda. Claro que não conto isto para convencer os potenciais espetadores de que o filme é bom ou é diferente dos outros, tendo nós descoberto pólvoras que gente como Roberto Rossellini ou João César Monteiro (um tremendo realista) já há muito tinham experimentado e levado à incandescência, mas antes para tentar desfazer algumas ideias feitas que a academia cega, a cinefilia cega ou as ideias e chavões cegos teimas em perpetuar.
Resumindo, “Os Conselhos da Noite” é também um documentário assente em bases de pesquisa etnográficas e antropológicas tão sérias como as usadas nos documentários que normalmente são aceites como tal pelo aspeto cristalizado, pelo rótulo documental e pelos discursos canónicos. Pedro Costa disse recentemente que Yasujiro Ozu é um dos grandes documentaristas da história do cinema pois quando Costa deslocou pela primeira vez ao Japão já conhecia todos os usos, costumes, História, acontecimentos presentes marcantes e homens e mulheres desse país longínquo, isto por causa dos filmes do grande mestre. Eu e o João passámos muito tempo a observar pessoas, rotinas, sotaques fiéis e miscelâneas, viagens ao passado e o que será o presente puro, a arquitetura romana e sueva a conviver com os envidraçados e o império do aço. Sem juízos de valores para o nosso lado, aprendemos esta seriedade na pesquisa, na recolha e transposição com nomes como José Lopes — que antes da vida de ator percorreu todo o país nas suas recolhas etnográficas coordenadas pelo seu mentor Eduíno Borges Garcia (que se tornou indiretamente nosso mentor) — ou John Ford, ou Howard Hawks, outros grandes realistas e documentaristas que só não o são considerados assim pois os académicos cegos (não falo dos sérios) só associam esse tipo de cinema e de visão do mundo particular e fundamental a nomes como Vittorio de Seta ou Frederick Wiseman.
John Ford, pois claro. Foi ele a fonte capital dessa abundância e desse convívio de opostos pretendidos. Nos seus filmes convivem todos os tipos de registros de atores e não-atores, de respirações fílmicas — tanto é um poeta da contemplação como o mestre da narrativa e da “ação à americana” — estratos sociais díspares, o velho e o novo, tradição e coragem. Tanto uma mãe gigantesca diz ao filho que lute pelos sonhos (mesmo chorando) como a esposa aceita a sede do marido pela guerra e pela justiça e fica ela a travar outra guerra e outra justiça ainda mais violentas. Nos filmes de Ford cita-se Shakespeare no cabo do mundo e um bêbado é a testemunha mais séria num tribunal de eruditos. Aprendemos, ou tentamos aprender, tudo de cinema com Ford e, no sentido referido, aprendemos que um filme pode ter todos os registos e aparentes contradições, pois filmando com a distância e fidelidade justas todas essas contradições são justamente o carácter flutuante e complexo da vida. Claro que Roberto não é John Wayne, nem sequer um cowboy moderno, nem na realização ambicionamos os seus famosos planos contrapicados que agigantavam os personagens heroicamente. Não procuramos sucedâneos do Monument Valley ou hinos a evocar o nascimento de uma nação. Claro que as pessoas que Roberto não gosta, ou pretende não gostar para não se magoar, não são evocações de índios nem soldados rivais. Mas o que Ford nos ensinou a todos é que as regras do cinema, as convenções, as modas, as armadilhas dos argumentos e da montagem, jamais devem delimitar o puro humanismo, as diferenças de cada ser, de cada situação, de cada festa ou funeral. Pode-se meter todo um mundo díspar no papel e depois filmá-lo e montá-lo frontalmente e com toda a sensibilidade, sem receios de não parecer bem segundo os cânones do bom gosto; deixar transbordar as bordas, o excesso, o excesso de diferença, de alteridade, de humanismo, pode ser o correto.
Eu sei que em Lisboa (por exemplo, pois assisti a algumas sessões lá) algumas pessoas se riram dos sotaques excêntricos, das grosserias das falas, daquilo a que no mundo dito civilizado e progressista se chama de “parolismo”, e isso definiu o filme como retrógrado ou parado no tempo ou simplesmente “inaceitável” num cinema e numa sociedade que se querem normalizadas e apelativas. Vi que muitos críticos disseram que no filme nada se passa e o argumento não tem interesse, não tem plots bem construídos, nem sequer um fio narrativo com princípio, meio e fim. Disseram ainda que os personagens são caricaturas e não existem na vida chamada “real”. Uma espetadora disse-me numa conversa na porta da sala que tinha gostado mas que tinha dúvidas que o filme fosse relevante para o país por se passar numa cidade não muito conhecida nem central. E são estas coisas que se devem combater, estes comentários perigosos porque redutores e intolerantes. Não se trata de gostar ou não do filme, nem dos personagens, ou situações. O que se passa é que vezes demais se julgam os filmes, como se julgam as pessoas e certas nações, pelas diferenças em relação ao nosso contentamento e comodidade, conforto, gosto. «Não tens o direito de te desinteressares» diz um Deuteronômio bíblico.
Portanto, saio em defesa de todos os filmes, livros, pinturas, poesia, pessoas, que saiam dos grandes meios, metrópoles, zonas de bem-estar, aburguesamento, para procurarem aquilo a que João Bénard da Costa chamou de irracionalidade do amor, a propósito de Minnelli: «Há cineastas, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros.» Voltando a John Ford, obrigado a ele por durante a feitura dos seus filmes ter rasgado páginas aleatoriamente ao seu guião perfeito que segundo os especialistas fariam o filme excelente e equilibradíssimo, ter convocado familiares e bêbados para cenas tão importantes como o desfecho, por ter filmado um plano fixo de diálogo entre duas personagens demorando vários minutos muito antes do chamado cinema moderno destruir regras, enfim, por nos ter ajudado a compreender os Estados Unidos da América de maneira tão simples e significativa como nenhum documentário ou livro de história o conseguiu melhor.
Fico muito feliz que “Os Conselhos da Noite” possa ser visto no Brasil pois algum do cinema mais selvagem e primitivo que alguma vez me entrou pelos olhos adentro veio dessa nação ainda com tudo para nos dar. Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Mário Peixoto, José Mojica Marins, ou esse inexcedível humanista que foi Andrea Tonacci — que um dia me disse para perder todos os medos e ser irresponsável — foram o Brasil dos Príncipes e da abundância. Bem-haja a todos vocês!
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José Oliveira
Agosto de 2021
*”Os Conselhos da Noite” também está disponível para o restante da América Latina, nas plataformas KLIC, TOTAL PLAY, GOOGLE PLAY ITUNES e MICROSOFT
Artigo originalmente publicado aqui: https://estadodaarte.estadao.com.br/jose-oliveira-conselhos-noite/?fbclid=IwAR2eeNif5eyJ69p3bvoOS9jqMMOZRGkb_94AWQ6YASS8QjocyzyouMkzDWs