O que de melhor e mais acertado
se pode dizer sobre Licorice Pizza está na caixa de comentários do
YouTube à canção Stumblin' In por Chris Norman & Suzi Quatro numa atuação
de 1978. Sobre esta música e esta letra verdadeiramente nostálgica e vital que
faz parte da banda sonora do filme de Paul Thomas Anderson, Gary LeFevers
escreve: «Takes me back to roller skating, long summer days and listening to
the radio. A much
simpler time. In some ways they were better times too. Thank you for the memory of a song I dearly
love. Beautiful song, beautiful»; concedendo-lhe resposta pouco
depois Ethan mc: «Vietnam. Gas crisis. Coming of cold war. But
the music makes up for it». Nestes dois petardos rápidos está tudo o que
interessa, tudo o que torna o filme anacrónico mas ao mesmo tempo fresco e
virado para o futuro: houve realmente um tempo em que a grande arte (podem
chamar-lhe cultura) podia ser popular e na sua espampanante vibração emocional
oferecer forte contenda e deliberação aos problemas políticos, sociais,
humanistas – os Os Beatles! Nirvana! Um tempo em que o trabalho do artista era
visto, escutado, lido, tanto pelos mais simples como pelos mais eruditos. E as
guerras, as crises humanitárias, diplomáticas, as hecatombes coletivas, eram
suportadas e guerreadas por uma arte (podem chamar-lhe cultura) que de simples,
transparente e luzente se tornava a mais complexa e a mais útil. Porque mesmo caindo
em simplismos aqui ou ali, não havia em mais dos casos abraços hipócritas, mas
na luz e na singeleza muitas ambiguidades, vinganças e negruras imorredouras –
neste caso entra-se a fundo na figura ambivalente do hustler americano,
que tanto tem de charme e de razão como de arrivismo, tanto conquistou terreno
virgem como dizimou, sou seja, PTA fala das origens do seu país. Algo a ver com
consciência coletiva, não tentando substituir com a arte (podem chamar-lhe
cultura) os apoios sociais ou as crenças religiosas, mas antes gritar,
sussurrar, murmurar, perguntar, dançar, agitar as consciências.
Licorice Pizza é um conto
sobre a juventude e o colosso que esta é, sempre, mas é na mesma medida e exuberância
um filme sobre os meandros, mecanismos e a história de Hollywood, ou seja, um
filme sobre o cinema, ou melhor, sobre a potência da narração. Quando irrompe a
personagem de Jack Holden interpretada com a loucura e a obnubilação do amor e
da homenagem por Sean Penn para com William Holden, Alana, a protagonista
feminina, fica sem saber se está dentro de um constante filme na cabeça de
Holden ou se tudo o que se passou até aí (com ela e logo com o filme) foi pura
deriva e ilusão, tal como o espectador no inicio dessa cena não se apercebeu
que Alana estava supostamente a interpretar (isto é, duas vezes, interpretação
da atriz e da personagem) e se riu das mentiras dela. Logo depois, no
restaurante em que se junta à pândega a personagem ainda mais descabelada de
Tom Waits, no momento em que, desprevenido, o protagonista principal, Gary,
entra porta adentro e entabula conversa com o rececionista, logo atira que a plot
está errada. Todo este abismo narrativo e/ou incesto formal é elevado aos
píncaros pelo espírito e ambições de Holden, que já não distingue os níveis da
realidade e da encenação, em matrioskas avariadas e em constante erro de
verificação cíclica.
Mas sendo um filme sobre
Hollywood rodado no terreno de Hollywood - a Bedford Falls town de It's a
Wonderful Life é uma mentira pegada na mesma Encino de Licorice Pizza,
referiu recentemente PTA – a verdade a procurar teria de ser quotidiana,
rasgadora, liquefeita, e assim Anderson escolhe para interpretar Alana e Gary
dois não-actores (nem bonitos segundo os padrões, nem com nenhuma marca física particularmente
singular…). Alana Haim e Cooper Hoffman
surgem com o fulgor e a candura de dois putos anónimos de uma rua qualquer do
planeta, mas que num filme feito por um habitante de San Fernando Valley só
podem ter tiques, ambições ou reações para com a grande máquina de sonhos
cinematográfica. Sendo assim, PTA é tão leal e uterino como João César Monteiro
em relação a uma Lisboa clandestina, Aki Kaurismäki na sua Helsínquia solitária
ou Manoel de Oliveira e a sua obsessão para com o teatro fixado pelo
cinematógrafo. Por isso a desmedida linguagem desse impagável descendente de
Orson Welles e de Martin Scorsese se volve, de maneira orgânica e pulsional, obviamente
sem controle, anárquica, livre e leve como a prole em questão. Linguagem de travellings
e panorâmicas e planos-sequência que assim que são gizadas e no começo ou pleno
da sua concretização vão perdendo a sua definição e gramática austera rumo à
perdição e vibração adolescente, isto é, terreno de uma eternidade e quimera
inesquecível. Licorice Pizza é um filme constantemente em rota de
colisão com as figuras de retórica, dominado tanto pelas hormonas compulsivas e
incontroláveis do colosso referido como habitado por céleres e míticos
fantasmas cinemáticos.
Experimentalismo, anarquismo,
classicismo, PTA consegue comungar os predicados de Quentin Tarantino (o
aparente exercício estiloso que jamais é gratuito) com os de James Gray (o
humanismo, o não-dito, a inteligência elíptica) e convocar o curso inesperado,
tal como as águas de um rio selvagem não adivinham os penedos ou os troncos que
a vão vilipendiar - «You get the sense that he is fearless. It’s a tremendously exciting thing
to watch a movie where you know the filmmaker will do something that you do not
expect, something that’s not easily digestible, something that is out there on
the edge and is an experiment of some kind.», referiu certa vez James Gray sobre o seu
amigo Anderson. Qualquer coisa que não se pode esperar, que não é de
fácil digestão, que parece sempre uma experiência, uma tentação inaudita, uma
audácia juvenil e irresponsável. Irresponsabilidade, por exemplo no modo também
ele irracional como Anderson desequilibra a estrutura narrativa e mesmo a
tonalidade estética, ao inserir os tais episódios que algum anónimo já
classificou como cenas carregadas de «Old hollywood swagger», pelo fluxo
primaveril e jactante que tanto vem da caneta e da massa da memória vs
presente de Marcel Proust como da câmara e das distâncias perigosas e de alto
risco de Jean Eustache. Seja no episódio com Sean Penn como na loucura sexual
do Jon Petters de Bradley Cooper – loucura sexual hollywoodiana – ou ainda no segmento
que ajuda momentaneamente a trancar ou a drenar o vulcão orgástico, quando
irrompe o brilho do olhar húmido e obliquo do cineasta Benny Safdie a fazer de
político falhado, que insere a questão dos filmes dentro dos filmes de modo
literal como toda a cápsula do tempo de uma época – anos 60/70 do século
passado – a fazer eco com o agora e com o amanhã, atentados e paranoias, Thomas
Pynchon e o espetáculo televisivo da guerra, sem demagogia.
Voltando a Stumblin' In, tudo
aqui é na mesma medida aos trambolhões, beijos despassarados, abraços roubados,
aos caídos, intenções fisgadas, não-ditas, tapadas e destapadas, crescentes e decrescentes
(«eu cresço e decresço não reparo e anoitece», escreveu Ruy Belo, poeta
das raparigas em flor, das suaves raparigas, e da ardente infância para sempre),
um sempre com o outro no canto do olho – aonde é que vais? O que é que fazes? Ele
mostra-lhe coisas que ela nunca soube… Ela mostra-lhe tantas coisas que ele
nunca viu… e por aí fora… que importa se na música ele é o mais velho se o que
interessa a PTA é tanto a filigrana como o descontrole em equilíbrios trementes.
Uma comoção e uma elevação moral
que a grande arte americana comporta desde as raízes de Mark Twain passando por
troncos e folhagens de Thomas Wolfe e Robert Mulligan. PTA reinventa todas as
distâncias e conserva as justas, jamais havendo fetichismo, nudez ou gestos e
imagéticas gratuitas, mas só emoção, comoção e inteligência. Por isso mesmo, e
em consonância com tal radicalismo e fidelidade, a chave do filme poderá estar
no último dos últimos fotogramas: “para Robert Downey, Sr.”; um amadorismo («o
grande cinema sempre foi artesanal e caseiro», Miguel Oliveira, nos últimos
Encontros Cinematográficos do Fundão) perto da anarquia e da carnalidade do cinema-porno
que interessa (estritamente em termos estéticos: cores com personalidade,
granulação omnívora da película ou o suor geral) e que PTA conheceu de perto
(i.é., tão de perto como as paranoias e girândolas de Pynchon); um amadorismo
que enlaça com a inteligência de Billy Wilder e seus argumentistas: a cena em
que a personagem de Alana numa casa de banho mente sobre as supostas punhetas
que (não) bateu à personagem de Cooper Hoffman é a mais bela declaração de amor
para si mesma e para nós: puro bilhar às três tabelas também Hawksiano:
fala-se de punhetas, fala-se do amor puro; a câmara e os miúdos numa sintonia
vital como o cinema americano já não conseguia desde há muitas décadas. Se na
obra anterior de PTA temos vastos exemplos de terríveis embates de egos onde
muitas vezes os seres acreditam possuir características dos Deuses e dos
Monstros, aqui o fulcro parece ter mais leveza, mas o fulgor é geometricamente
o mesmo. Terreno, veias, bílis ou sangue carregado de viço e de fertilidade,
duas eivadas horas de miúdos a correrem ao deus-dará como em qualquer lado do
planeta, e que a certa altura auguram as estrelas e logo outro tipo de
desconhecido bem mais longínquo na cosmogonia do David Bowie de Life on Mars? O
filho miúdo de PTA disse ao pai na sala de montagem que Licorice Pizza
não contava nenhuma história…
E o que é lindo, e por ser lindo
tem também de ser grave, é que Licorice Pizza, lá para trás, cá
atrasado, tanto podia ter passado na cinéfila cinemateca de João Bénard da
Costa, como na super-experimental e generosa e revolucionária sala Cinema 16 do
inesquecível Amos Vogel (assim como Punch-Drunk Love, Inherent Vive
ou Phantom Thread são tão classicistas como, de rompante, salta uma
fagulha ainda possível de um crente de Stan Brakhage). E, como nem tudo é mau,
PTA conseguiu que hoje em dia o filme seja visto, meio camuflado, meio não
publicitando o essencial, em salas bem comerciais e também em alguns mamutes
com projetores de 70mm. A paixão e a sua parente teimosia ainda podem muito.