Matéria em
carne viva
Jean Eustache
realizou as suas duas obras magnas a meio da sua curta carreira. A Mãe e a
Puta e Mes petites amoureuses são respetivamente de 1973 e 1974. Os
prémios e os elogios gerais que recebeu pelo primeiro e o falhanço comercial do
segundo definiriam o resto da sua carreira, ou seja, da sua vida. É complicado
adivinhar como teriam sido a sua carreira e a sua vida se Mes petites
amoureuses tivesse sido um sucesso, visto que nestes dois filmes está toda
a sua vida pessoal, como toda a sua vida intelectual e artística. A meio dos
anos oitenta, Serge Daney escreveu sobre o grande cineasta egípcio Youssef
Chahine que os seus últimos trabalhos eram os de um homem que descobriu o tipo
de filmes que se deve fazer quando não se tem mais tempo a perder. Os dois
filmes de Eustache são grandes em tamanho (sobretudo o primeiro) e com uma
ambição que nada tem que ver com comércio, mas também são dos frescos mais
intimistas e púdicos alguma vez levados a cabo em cinema. A Mãe e a Puta
desenrola-se todo em quartos, cafés, bancos de jardins, passeios ou becos
clandestinos, onde, pela duração das cenas, dos blocos de tempo, da insistência
da palavra e dos olhares, dos gestos, toda a proteção da ficção cai e os
personagens ficam nus. Os atores, como o realizador, ficam igualmente nus, com
a ferida aberta da exposição em primeiro grau. Mes petites amoureuses só
à primeira vista é mais delicado, pois quem lá habita ainda não adquiriu tais
requintes de vampirismo.
Um filme de
vampiros, foi assim que recentemente o crítico de cinema Philippe Azoury
definiu A Mãe e a Puta em diversas conferências e publicações. Durante muitos
anos o filme foi visto em cópias piratas, riscadas e ultra clandestinas,
sobrevivendo a tudo. Visto agora em 2022, numa versão restaurada em que os
abissais pretos continuam a cegar tanto como os brancos leitosos e celestiais
(tão puros como corrompidos), estamos perante um filme-mundo, o mundo todo
entre quatro paredes, desmedido, perfeitamente e terrivelmente inclassificável,
constantemente dialético e errante, terminalmente emotivo e assim certo,
onde toda a tentativa de análise está sujeita a erro por interdição de entrada.
Eustache tanto alinha o cortejo fúnebre da nouvelle vague francesa, de
Godard a Marguerite Duras, como flui naturalmente na candura de F.W. Murnau e
particularmente de Aurora (a cena da estação de comboios, despedidas que
são e não são eternas). Olha a ressaca do maio de 68 e serve de sismógrafo a
toda uma nova prole e seus modos de ver e habitar a sociedade e as suas leis e
expectativas. Convoca todos os malditos da poesia e da literatura francesa – de
Baudelaire a Louis-Ferdinand Céline – metamorfoseando-se neles, tornando-se um,
mas logo na cena seguinte, ou no amanhã que alguns esperam que cante, o mau
gosto e a abjeção parecem somente joguetes infantis de intelectuais falidos à
nora nesse tempo e espaço precisos. Intelectuais falidos que levam a tarefa de
ler um jornal e tomar café com cigarros como uma profissão do mais sério, uma
questão de vida ou de morte. Daí eles acreditarem que a citação, a cópia, é
sempre melhor do que o original. Eles parecem cópias de cópias de tantos livros
e filmes e tiradas políticas, e assim A Mãe e a Puta é também uma
soberba colagem sem nunca perder a sua verdade, o seu presente impiedoso.
Será que estamos
em presença daquilo a que François Truffaut chamou de «grandes filmes doentes»
a propósito de Nick Ray? Ou a nota humorística indiscutível transporta este
filme-rio para os terrenos pícaros? Por um lado, a potência descarnada da
imagem e do som expõe o ridículo daquilo a que se chamou o cinema-direto e puro
como escola cinematográfica. Por outro, é impossível não considerar A Mãe e
a Puta o mais belo, frontal e detalhado documentário sobre uma época. Quem
mostrar o filme numa aula de história do cinema tanto pode falar das perdições
narrativas e das durações tortuosas e nefastas do cinema moderno, como da
consequente exposição emocional. Tanto pode falar de um canto de cisne do
cinema mudo e do modo como a luz queima, se volve carne, enterro e assunção,
como considerar largamente Eustache um epítome do cinema caseiro, um inventor
do home-movie nec plus ultra, o plasmar da vida real e privada numa tela
pública, num artesanato irmão do amadorismo mais apurado e raro. Tanto pode
fazer olhos-cegos ao sexo e às tangentes escandalosas, como, passada a
verborreia, discorrer sobre elipses nessa mesma verborreia, não-ditos nessa
mesma massa pantanosa, silêncios mortais, a musicalidade tão quezilenta como os
vinis gastos que vamos escutando – a propósito, numa aula-piloto com este filme,
o aluno mais de sobreaviso, talvez a citar, atirou: «tal como o professor disse
que em Ozu podemos contemplar uma personagem a beber integralmente um copo de
bebida, neste filme podemos escutar uma canção até ao fim.» Esperança!
Luc Moullet
contou que quando conheceu Eustache nos escritórios dos Cahiers du Cinéma,
onde este ia religiosamente todos os dias buscar a sua mulher que lá trabalhava
como secretária, lhe pareceu a única pessoa que nada tinha a ver com cinema. Estávamos
em 1962 e, na clandestinidade – essa clandestinidade que parece ser a instância
mais íntima de Eustache –, forjava já a sua primeira obra em 16 mm, com um
título sintomático e que já continha toda a provocação e sinceridade da obra
futura - Les mauvaises fréquentations. Moullet conta ainda que foi Eustache
a oferecer-se para montar Uma Aventura de Billy the Kid, o anárquico
filme de 1971 protagonizado pelo alter-ego de Eustache, Jean-Pierre Léaud. Na
moviola, continuando a montagem, Eustache recitava os longos diálogos que tinha
escrito no seu caderno na noite anterior, testando reações, notando pelo canto
do olho o nível de escândalo ou de indiferença, palavra após palavra, como num
combate de boxe ou numa discussão de amantes. Muitos testemunhos, e palavras do
próprio Eustache, fazem perceber que, para ele, a palavra dita, como a voz e as
suas modelações, são o essencial. Nas rodagens muitas vezes Eustache nem olhava
para a cena, e percebia se ela estava genuína pelo modo como as palavras saíam
do corpo do ator. Citando um texto de Moullet para a Film Comment nº 36:
«O que surgia era um tipo de anarquismo de direita, não muito distante das
novelas de Céline. Não havia motivos ideológicos por trás de tudo isto, mas sim
a necessidade de provocar própria de Eustache, e pelos fins de 68 é necessário
dizer que o anarquismo de direita era bastante provocativo. Também era a
vingança de Eustache contra um sistema cinematográfico que o havia excluído. O
êxito de A Mãe e a Puta apoia-se provavelmente na necessidade de
Eustache e Léaud empreenderem este improvável trabalho de logorreia
anti-conformista. Mas o filme também capturou os ditos e particularmente as
ações do período que se seguiu a 68, sem edulcorá-las. Podemos dizer que a
força do filme vem dessa mescla insolente de sentimentos de direita e
esquerdismo sexual.» Ou seja, Jean Eustache já era ali, antes de pisar os
cenários reais e ligar a máquina de filmar, de corpo inteiro, o protagonista de
A Mãe e a Puta.
Voltemos ao
professor que tem vontade de mostrar aos alunos quase adolescentes este
filme-limite, este psicodrama sem filtros, esta produção e mergulho que não se
deve repetir para conservação da sanidade e mesmo da vida de cada qual. Deve
logo colocar em pratos limpos que a experiência é mesmo de molde único por
causa dos níveis depravados de manipulação do protagonista que só pode ser o
cineasta? Deve introduzir a dimensão onírica e a potência avassaladora da luz
como fonte de todas as redenções (mesmo que possa cair no ridículo)? Revelar
que uma pessoa do círculo pessoal de Eustache (a ex-noiva…) se suicidou depois
de ver o filme pois pensou ver-se a si mesma? Recomendar que não se misture
vida real e pessoal nos guiões que esses jovens, ainda verdinhos e a não
aguentar Eustache, irão escrever? E pode-se discursar, assim de supetão, do
sublime da representação do quotidiano e das rotinas, do tédio e do erotismo? Da
badalhoquice e baixeza da linguagem mesclada com os incêndios e amplexos
poéticos de Rimbaud ou de Verlaine? Uma coisa é certa: avisar que não se deve
brincar assim com o amor, e logo muito menos com a morte, é mais de meio
caminho andado para se cair em paternalismos.
O pior para um
professor é entrar nos terrenos escorregadios e sujos da contradição, por isso será
cómodo opor o classismo de John Ford aos blocos de tempo-duração modernos de
Eustache ou de Chantal Akerman. Mas atirar aos petizes que Eustache foi um dândi
proletário e que isso diz tudo da sua estética, é um bilhete certo e só de ida
para o ridículo. Tão ridículo como a cena em que Léaud se confessa caído de
amores, ou apenas desejoso de mais suor e sangue, a esse amigo que depois do
maio de 68 ficou sem nada para fazer, e este lhe vira costas dizendo que vai
jogar pinball… a turma ri-se, o professor pode aproveitar a brecha
existencial. Conhecem Camus? Leram Sartre? Alterar o tom de voz e vociferar
(afirmar) que se retirarmos o “ar do tempo”, o facto de se passar em Paris, a política
e a nudez, este continuará a ser um dos filmes mais prementes sobre a imemorial
solidão que rói os ossos e a alma, também não procederá, visto que os modelos
dos alunos e a nova angústia já são outros há muito tempo.
O clássico
imita-se, o moderno não. Também esta fórmula é perigosa e corre o risco de
fechar Eustache numa gaveta. Formalmente, esteticamente, e compactamente, Eustache
prefere muitas vezes o timing à divagação. Ou o timing na
divagação. Uma combustão muito lenta desde a faísca até ao incêndio. Ou o
contrário, da hecatombe até à acalmia pós-tempestade. Todas as voltas trocadas…
Tudo o que está para dentro das bordas do enquadramento treme, vibra, quase que
passa e muitas vezes transborda mesmo para fora dessas bordas. Mas a máquina de
Eustache é fixa, o olhar tenso e a procura da fixação desses entalhes e
incêndios é inegociável, entre a impassibilidade, a pura observação, a
estupefação e a teimosia. Não esquecendo a provocação: quanto tempo conseguem
aguentar fixamente este rosto e este vomitado teórico? Mas tudo o que se passa
dentro - os intelectuais que não sabem se querem uma mãe ou uma puta ou tudo na
mesma cama, se querem ser transgressores ou se querem regressar aos berços protetores
da infância onde tudo é dado de bandeja, indecisos entre o vampirismo
irresistível, a sede de se alimentarem de sangue proibido, e a teta materna -
faz um ricochete tremendo no espetador, para o bem ou para o mal.
Eustache emplaca
a libido e a secura, as palavras encavalitadas e o choro silencioso, numa
frontalidade entre a espada e a parede que tanto é colete de forças, geométrica
dimensão do trágico, como essa contradição sempre passível de ser compreendida.
Contradição que faz entrar esses corpos nos caminhos da compaixão e do sagrado.
«Foram esquecidas duas coisas na
declaração dos direitos humanos. O direito a se contradizer e o direito a ir
embora.» É uma das tiradas mais significativas de Léaud/Eustache, e é o
ponto de acordo possível neste monumento que finalmente regressa. Eustache usou
a contradição como força e catarse e foi-se embora, apagou-se, quando e como
quis. Um fino e candente corpo celeste está pronto para rasgar as salas de
cinema. Como reagirão estas novas gerações de causas outras e afiadas (Y ou
transgénero ou…) a tal egocentrismo, criancice, sexismo, ironia, humor
descarado, reacionarismo, inteligência, linguagem cifrada de uma certa classe,
pergunta o professor antes de carregar no botão. É que nem o mestre-escola mais
carismático ou humanista conseguirá falar, a quente, das belas, pacientes e também
perdidas Bernadette Lafont e Françoise Lebrun (para Daney, a mais bela
personagem: «o seu xaile preto, a sua voz teimosa», escreveu no obituário a
Eustache), pois apesar da personalidade forte parecem sempre tão ou mais em
perda do que o seu titereiro. Talvez a utopia, essa imorredoura, possa ajudar a
recolocar esta obra-mundo.
José Oliveira
[Texto escrito originalmente para o suplmento Ípsilon do jornal Público do dia 7 de julho de 2022: https://www.publico.pt/2022/07/07/culturaipsilon/noticia/filmemundo-mae-puta-2012663?fbclid=IwAR0-w5kp8LPc2yWxpfWRPPjKW4USrVGOWTe1R-XTcYzAU76JdMrVQYg1DD8]