terça-feira, 12 de julho de 2022

Filme-mundo: A Mãe e a Puta

 


Matéria em carne viva

Jean Eustache realizou as suas duas obras magnas a meio da sua curta carreira. A Mãe e a Puta e Mes petites amoureuses são respetivamente de 1973 e 1974. Os prémios e os elogios gerais que recebeu pelo primeiro e o falhanço comercial do segundo definiriam o resto da sua carreira, ou seja, da sua vida. É complicado adivinhar como teriam sido a sua carreira e a sua vida se Mes petites amoureuses tivesse sido um sucesso, visto que nestes dois filmes está toda a sua vida pessoal, como toda a sua vida intelectual e artística. A meio dos anos oitenta, Serge Daney escreveu sobre o grande cineasta egípcio Youssef Chahine que os seus últimos trabalhos eram os de um homem que descobriu o tipo de filmes que se deve fazer quando não se tem mais tempo a perder. Os dois filmes de Eustache são grandes em tamanho (sobretudo o primeiro) e com uma ambição que nada tem que ver com comércio, mas também são dos frescos mais intimistas e púdicos alguma vez levados a cabo em cinema. A Mãe e a Puta desenrola-se todo em quartos, cafés, bancos de jardins, passeios ou becos clandestinos, onde, pela duração das cenas, dos blocos de tempo, da insistência da palavra e dos olhares, dos gestos, toda a proteção da ficção cai e os personagens ficam nus. Os atores, como o realizador, ficam igualmente nus, com a ferida aberta da exposição em primeiro grau. Mes petites amoureuses só à primeira vista é mais delicado, pois quem lá habita ainda não adquiriu tais requintes de vampirismo.

Um filme de vampiros, foi assim que recentemente o crítico de cinema Philippe Azoury definiu A Mãe e a Puta em diversas conferências e publicações. Durante muitos anos o filme foi visto em cópias piratas, riscadas e ultra clandestinas, sobrevivendo a tudo. Visto agora em 2022, numa versão restaurada em que os abissais pretos continuam a cegar tanto como os brancos leitosos e celestiais (tão puros como corrompidos), estamos perante um filme-mundo, o mundo todo entre quatro paredes, desmedido, perfeitamente e terrivelmente inclassificável, constantemente dialético e errante, terminalmente emotivo e assim certo, onde toda a tentativa de análise está sujeita a erro por interdição de entrada. Eustache tanto alinha o cortejo fúnebre da nouvelle vague francesa, de Godard a Marguerite Duras, como flui naturalmente na candura de F.W. Murnau e particularmente de Aurora (a cena da estação de comboios, despedidas que são e não são eternas). Olha a ressaca do maio de 68 e serve de sismógrafo a toda uma nova prole e seus modos de ver e habitar a sociedade e as suas leis e expectativas. Convoca todos os malditos da poesia e da literatura francesa – de Baudelaire a Louis-Ferdinand Céline – metamorfoseando-se neles, tornando-se um, mas logo na cena seguinte, ou no amanhã que alguns esperam que cante, o mau gosto e a abjeção parecem somente joguetes infantis de intelectuais falidos à nora nesse tempo e espaço precisos. Intelectuais falidos que levam a tarefa de ler um jornal e tomar café com cigarros como uma profissão do mais sério, uma questão de vida ou de morte. Daí eles acreditarem que a citação, a cópia, é sempre melhor do que o original. Eles parecem cópias de cópias de tantos livros e filmes e tiradas políticas, e assim A Mãe e a Puta é também uma soberba colagem sem nunca perder a sua verdade, o seu presente impiedoso.  

Será que estamos em presença daquilo a que François Truffaut chamou de «grandes filmes doentes» a propósito de Nick Ray? Ou a nota humorística indiscutível transporta este filme-rio para os terrenos pícaros? Por um lado, a potência descarnada da imagem e do som expõe o ridículo daquilo a que se chamou o cinema-direto e puro como escola cinematográfica. Por outro, é impossível não considerar A Mãe e a Puta o mais belo, frontal e detalhado documentário sobre uma época. Quem mostrar o filme numa aula de história do cinema tanto pode falar das perdições narrativas e das durações tortuosas e nefastas do cinema moderno, como da consequente exposição emocional. Tanto pode falar de um canto de cisne do cinema mudo e do modo como a luz queima, se volve carne, enterro e assunção, como considerar largamente Eustache um epítome do cinema caseiro, um inventor do home-movie nec plus ultra, o plasmar da vida real e privada numa tela pública, num artesanato irmão do amadorismo mais apurado e raro. Tanto pode fazer olhos-cegos ao sexo e às tangentes escandalosas, como, passada a verborreia, discorrer sobre elipses nessa mesma verborreia, não-ditos nessa mesma massa pantanosa, silêncios mortais, a musicalidade tão quezilenta como os vinis gastos que vamos escutando – a propósito, numa aula-piloto com este filme, o aluno mais de sobreaviso, talvez a citar, atirou: «tal como o professor disse que em Ozu podemos contemplar uma personagem a beber integralmente um copo de bebida, neste filme podemos escutar uma canção até ao fim.» Esperança!

Luc Moullet contou que quando conheceu Eustache nos escritórios dos Cahiers du Cinéma, onde este ia religiosamente todos os dias buscar a sua mulher que lá trabalhava como secretária, lhe pareceu a única pessoa que nada tinha a ver com cinema. Estávamos em 1962 e, na clandestinidade – essa clandestinidade que parece ser a instância mais íntima de Eustache –, forjava já a sua primeira obra em 16 mm, com um título sintomático e que já continha toda a provocação e sinceridade da obra futura - Les mauvaises fréquentations. Moullet conta ainda que foi Eustache a oferecer-se para montar Uma Aventura de Billy the Kid, o anárquico filme de 1971 protagonizado pelo alter-ego de Eustache, Jean-Pierre Léaud. Na moviola, continuando a montagem, Eustache recitava os longos diálogos que tinha escrito no seu caderno na noite anterior, testando reações, notando pelo canto do olho o nível de escândalo ou de indiferença, palavra após palavra, como num combate de boxe ou numa discussão de amantes. Muitos testemunhos, e palavras do próprio Eustache, fazem perceber que, para ele, a palavra dita, como a voz e as suas modelações, são o essencial. Nas rodagens muitas vezes Eustache nem olhava para a cena, e percebia se ela estava genuína pelo modo como as palavras saíam do corpo do ator. Citando um texto de Moullet para a Film Comment nº 36: «O que surgia era um tipo de anarquismo de direita, não muito distante das novelas de Céline. Não havia motivos ideológicos por trás de tudo isto, mas sim a necessidade de provocar própria de Eustache, e pelos fins de 68 é necessário dizer que o anarquismo de direita era bastante provocativo. Também era a vingança de Eustache contra um sistema cinematográfico que o havia excluído. O êxito de A Mãe e a Puta apoia-se provavelmente na necessidade de Eustache e Léaud empreenderem este improvável trabalho de logorreia anti-conformista. Mas o filme também capturou os ditos e particularmente as ações do período que se seguiu a 68, sem edulcorá-las. Podemos dizer que a força do filme vem dessa mescla insolente de sentimentos de direita e esquerdismo sexual.» Ou seja, Jean Eustache já era ali, antes de pisar os cenários reais e ligar a máquina de filmar, de corpo inteiro, o protagonista de A Mãe e a Puta.

Voltemos ao professor que tem vontade de mostrar aos alunos quase adolescentes este filme-limite, este psicodrama sem filtros, esta produção e mergulho que não se deve repetir para conservação da sanidade e mesmo da vida de cada qual. Deve logo colocar em pratos limpos que a experiência é mesmo de molde único por causa dos níveis depravados de manipulação do protagonista que só pode ser o cineasta? Deve introduzir a dimensão onírica e a potência avassaladora da luz como fonte de todas as redenções (mesmo que possa cair no ridículo)? Revelar que uma pessoa do círculo pessoal de Eustache (a ex-noiva…) se suicidou depois de ver o filme pois pensou ver-se a si mesma? Recomendar que não se misture vida real e pessoal nos guiões que esses jovens, ainda verdinhos e a não aguentar Eustache, irão escrever? E pode-se discursar, assim de supetão, do sublime da representação do quotidiano e das rotinas, do tédio e do erotismo? Da badalhoquice e baixeza da linguagem mesclada com os incêndios e amplexos poéticos de Rimbaud ou de Verlaine? Uma coisa é certa: avisar que não se deve brincar assim com o amor, e logo muito menos com a morte, é mais de meio caminho andado para se cair em paternalismos.

O pior para um professor é entrar nos terrenos escorregadios e sujos da contradição, por isso será cómodo opor o classismo de John Ford aos blocos de tempo-duração modernos de Eustache ou de Chantal Akerman. Mas atirar aos petizes que Eustache foi um dândi proletário e que isso diz tudo da sua estética, é um bilhete certo e só de ida para o ridículo. Tão ridículo como a cena em que Léaud se confessa caído de amores, ou apenas desejoso de mais suor e sangue, a esse amigo que depois do maio de 68 ficou sem nada para fazer, e este lhe vira costas dizendo que vai jogar pinball… a turma ri-se, o professor pode aproveitar a brecha existencial. Conhecem Camus? Leram Sartre? Alterar o tom de voz e vociferar (afirmar) que se retirarmos o “ar do tempo”, o facto de se passar em Paris, a política e a nudez, este continuará a ser um dos filmes mais prementes sobre a imemorial solidão que rói os ossos e a alma, também não procederá, visto que os modelos dos alunos e a nova angústia já são outros há muito tempo.

O clássico imita-se, o moderno não. Também esta fórmula é perigosa e corre o risco de fechar Eustache numa gaveta. Formalmente, esteticamente, e compactamente, Eustache prefere muitas vezes o timing à divagação. Ou o timing na divagação. Uma combustão muito lenta desde a faísca até ao incêndio. Ou o contrário, da hecatombe até à acalmia pós-tempestade. Todas as voltas trocadas… Tudo o que está para dentro das bordas do enquadramento treme, vibra, quase que passa e muitas vezes transborda mesmo para fora dessas bordas. Mas a máquina de Eustache é fixa, o olhar tenso e a procura da fixação desses entalhes e incêndios é inegociável, entre a impassibilidade, a pura observação, a estupefação e a teimosia. Não esquecendo a provocação: quanto tempo conseguem aguentar fixamente este rosto e este vomitado teórico? Mas tudo o que se passa dentro - os intelectuais que não sabem se querem uma mãe ou uma puta ou tudo na mesma cama, se querem ser transgressores ou se querem regressar aos berços protetores da infância onde tudo é dado de bandeja, indecisos entre o vampirismo irresistível, a sede de se alimentarem de sangue proibido, e a teta materna - faz um ricochete tremendo no espetador, para o bem ou para o mal.

Eustache emplaca a libido e a secura, as palavras encavalitadas e o choro silencioso, numa frontalidade entre a espada e a parede que tanto é colete de forças, geométrica dimensão do trágico, como essa contradição sempre passível de ser compreendida. Contradição que faz entrar esses corpos nos caminhos da compaixão e do sagrado.  «Foram esquecidas duas coisas na declaração dos direitos humanos. O direito a se contradizer e o direito a ir embora.» É uma das tiradas mais significativas de Léaud/Eustache, e é o ponto de acordo possível neste monumento que finalmente regressa. Eustache usou a contradição como força e catarse e foi-se embora, apagou-se, quando e como quis. Um fino e candente corpo celeste está pronto para rasgar as salas de cinema. Como reagirão estas novas gerações de causas outras e afiadas (Y ou transgénero ou…) a tal egocentrismo, criancice, sexismo, ironia, humor descarado, reacionarismo, inteligência, linguagem cifrada de uma certa classe, pergunta o professor antes de carregar no botão. É que nem o mestre-escola mais carismático ou humanista conseguirá falar, a quente, das belas, pacientes e também perdidas Bernadette Lafont e Françoise Lebrun (para Daney, a mais bela personagem: «o seu xaile preto, a sua voz teimosa», escreveu no obituário a Eustache), pois apesar da personalidade forte parecem sempre tão ou mais em perda do que o seu titereiro. Talvez a utopia, essa imorredoura, possa ajudar a recolocar esta obra-mundo.

José Oliveira

[Texto escrito originalmente para o suplmento Ípsilon do jornal Público do dia 7 de julho de 2022: https://www.publico.pt/2022/07/07/culturaipsilon/noticia/filmemundo-mae-puta-2012663?fbclid=IwAR0-w5kp8LPc2yWxpfWRPPjKW4USrVGOWTe1R-XTcYzAU76JdMrVQYg1DD8]