Podia, ou devia…, começar com uma
citação do Virgílio das Bucólicas ou das Geórgicas para vos falar
sobre TERRA QUE MARCA, o milagroso filme que Raul Domingues arrancou –
ou pediu – literalmente à terra. A terra percebeu tamanho cuidado, gentileza e
ternura, e devolveu-lhe tudo o que podia, como nos cultivos e plantios bem
feitos. Mas, como dizia, não citarei o poeta romano ou qualquer outro dos
vultos da poesia da terra (Eugénio de Andrade seria perfeito na mesma medida…),
mas sim um americano comumente ligado ao género hardboiled, policial,
crime, Jim Thompson, que trabalhou sem fama e acabou aflito em centros de betão
e violência. Como escreveu Manuel Ruas, um dos seus tradutores portugueses: «um
dos mais autênticos e mais vigorosos escritores da melhor escola
norte-americana do romance duro. Nascido numa reserva comanche, homem de
inúmeros ofícios, produziu uma obra literária vasta e arrebatada, dolorosa e
convicta.» Ou seja, citarei alguém que teve constantemente calos nas mãos e
soube bem o que a vida custa.
Em Violência e uma Cabana,
que não é policial, mas sim celestial, etnográfico, antropológico e humanista
acima de tudo, um pequeno livro total e panorâmico, o personagem principal,
acabado de sair da cadeia e cego e coçado de desejos de vingança, começa a
pensar assim, muito interiormente: «No momento em que tomei o autocarro já o
Sol se tinha posto, praticamente, e a noite estava fria. Sentei-me junto de uma
janela, a olhar para fora, vendo os campos a desfilar. Sempre gostara do
outono; mais ainda que da primavera. Bem sei que o outono parece a certas
pessoas uma estação morta, com tudo quanto é verde já desaparecido ou a
desaparecer, as terras endurecidas e com aspecto de cansadas, os pássaros muito
parados e a cantar mais baixinho. Mas a mim nunca me pareceu assim. Eu, bem, eu
nunca sentira realmente que o verde desaparecera. Estava ali, mesmo nos campos
de onde viera, e lá estaria quando a primavera voltasse, bem repousado e a
brilhar com mais beleza que nunca. A terra, naquela época… bem, eu digo-vos o
que sinto a respeito. Tinha feito um bom trabalho; tão bom quanto podia, de
qualquer modo, e tinha o direito de parecer cansada. Seria de estranhar se ela
apresentasse outro especto. Sim, e a dureza também estava certa. Tinha passado
por algo de muito duro e uma parte dessa dureza podia bem ficar nela. Mas
depois desapareceria. E, por vezes, um franzir de testa fica-nos muito melhor
que um sorriso. Nós não pretendemos ver rir uma terra que sofreu bastante. Mas
lá por ter deixado de rir, isso não quer dizer que nunca mais o faça.»
Toda esta dor da terra, toda esta
dor de parto, de morte e de ressurreição, de convalescença e reflorescimento,
está presente no filme de Raul Domingues, ao mesmo tempo com um ultra-realismo
e uma abstração pura. Um filme amador, um gesto para o futuro.
Durante a minha primeira idade
cinéfila, grosso modo a partir dos vinte anos, quando via pelos menos três
filmes por dia, uma frase de François Truffaut foi para mim um modo de vida: «(...)
O filme de amanhã parece-me mais pessoal do que um romance, individual e
autobiográfico, como uma confissão ou um diário. Jovens cineastas
exprimir-se-ão na primeira pessoa e contar-nos-ão o que aconteceu com eles.
Poderá ser a história do seu primeiro ou mais recente amor, uma tomada de
consciência política, uma narrativa de viagem, uma doença, o seu serviço
militar, o seu casamento, as suas últimas férias, e isso quase inevitavelmente
agradará porque será verdadeiro e novo... O filme de amanhã será um ato de
amor.» Foi a época em que amei a Nouvelle vague acima de todas as
coisas, a desconstrução de Truffaut, de Godard… e a pós- Nouvelle vague,
os filmes ultra-pessoais de Philippe Garrel e de Jean Eustache, tão íntimos e
com a própria vida a fazer-se matéria em carne viva que queimavam, volvendo-se
suicidários. Passada essa adolescência e passada a necessidade vital de cuspir
e de combater a academia, os compêndios canónicos ou as listas dos melhores
filmes de sempre com Orson Welles ou Alfred Hitchcock à cabeça, chegou a minha
paixão pelo cinema clássico americano, através do entusiasmo e das lições de
João Bénard da Costa na RTP 2 – tempos que já não voltam… - e do grande
professor e escritor Carlos Melo Ferreira, na ESAP. Fiquei até hoje muito mais
apanhado, e tocado, pelo modo total como John Ford ou Howard Hawks filmaram
tanto um rosto de um cowboy ou de um índio como uma montanha ou um vale, com
uma limpidez e uma ordem de grandeza e de beleza que, paradoxalmente, continha
todos os mistérios. E durante anos, até há bem pouco tempo, julguei todo o
cinema através da bitola e dos valores clássicos, que para mim sempre foram
modernos e progressistas. Por isso fui desprezando muito do contemporâneo, umas
vezes injustamente, confesso, outras vezes convictamente. Ou seja, esqueci a
frase de Truffaut acima citada. Até que a venho recuperando através da
descoberta de “pequenos” filmes perfeitamente subjetivos, íntimos, individuais,
próximos da forma literária do diário… mas mesmo assim fugidios e com
capacidade para reinventar tudo. Dois exemplos cimeiros: Mnemosyne, de
Mário Fernandes, acabado e exibido em 2022; e TERRA QUE MARCA, de Raul
Domingues, estreado igualmente em 2022. Ambos tiveram uma longa gestação, ambos
possuem um artesanato e um amadorismo precioso que só foi possível nos
primeiros anos do cinema mudo, quando tudo era inocência, quando tudo era o
Éden antes de Adão e Eva se perderem e se acharem… antes do pecado do comércio,
dos prémios, da carreira respeitável. E ambos, extremamente abstratos, livres e
primordiais, nos mostram e contam coisas fundadoras.
Mnemosyne, carregado de
som e de fúria, cheio de vento inaudito, é uma história de amor e um luto vital
em terreno mítico, antiquíssimo, onde as crostas das imagens e dos sons parecem
sangrar, cosmos que se vai apagando lentamente para tudo se renovar, outra vez,
mais uma vez, a uma nova luz… TERRA QUE MARCA resulta de um trabalho
demorado de amor e de louvor à terra que só terá paralelo com os grande
panteístas e líricos russos e americanos dos anos vinte e trinta do século
passado, Aleksandr Dovjenko ou King Vidor. Filmado num formato considerado
resolutamente obsoleto – o mini-DV – entrega-nos pistas quase bíblicas através
dos intertítulos iniciais, para logo nos largar durante uma hora tanto nas
práticas do cultivo da terra como nos imemoriais trabalhos da luz, das suas reflexões
e imponderáveis. Tão carregado de som e de fúria – Faulkner ou Shakespeare –
como o filme de Mário Fernandes e conservando os preciosos erros ou deixando,
como num filme caseiro que também o é, as costuras do artesanato à mostra,
vamos estar literalmente dentro da terra e da luz e de toda essa massa cósmica
e primeira como que para vermos melhor a nossa possível salvação, aquilo de que
somos feitos, o nosso berço e o nosso destino, alimento e paz.
Tem-se falado em etnografia – e
não digo que esse lado não exista - mas o que mais sinto é pura matéria
incandescente, em delírio, o vento nas árvores e nas ervas, a câmara escondida
dentro das raízes ou das cascas, os raios e os trovões desta terra e dum olimpo
ainda algures, as árvores de um paraíso recuperado, as máquinas infernais. Mário
Fernandes é um etnólogo da sua própria realidade, da sua vida. Raul Domingues
entrega-se à terra e à luz e chega a alcançar a música sublime da conjugação
certa de todas as coisas essenciais. Recusando a identificação e a projeção
fácil com o espectador, são obras que preferem o mundo. Ambos possuem as luzes
e as sombras, os sonhos e os pesadelos mais puramente humanos. E ambos, longe
das leis, escondidos e protegidos pelo amor, vendo as coisas como que pela primeira
ou derradeira vez, reinventam o cinema. Aposta que daqui a quarenta anos outros
filmes falarão assim da vida de quem os faz e do mundo de todos os tempos. Com
imagens e sons nunca vistos.
Atrás falei de ultra-realismo a
propósito de TERRA QUE MARCA. Poesia nec plus ultra reinventada e
todas as imperfeições, dermes e epidermes estudadas, reconhecidas, científicas,
em movimento. A morfologia e a constituição das coisas, da terra, dos corpos
dos homens, das enxadas e dos tratores. E para isso o som vertiginoso (e tudo o
que direi do som serve para a imagem), selecionado, falho, rugoso, ontológico e
estilhaçado é essencial. Domingues não escolheu o caminho mais fácil, não foi
ao banco sonoro mundial para comprar todos os sons de todas as coisas visíveis
em cada quadro, em cada plano, em cada movimento feito com essa câmara mais
próxima de um olho humano do que de uma suposta objetividade e correção profissional.
E assim este som, a sua montagem e mistura, não é igual a todos os filmes
presentes em todos os grandes festivais, ou seja, não é som amansado,
compactado, desmaiado, refreado, morto. Por exemplo, Carlos Reygadas afirmou a
propósito do seu último e abjeto Nuestro tiempo que tinha revolucionado
o som. Mas não, para ele a suposta revolução consistia em sobrepor todas as
camadas visíveis em cima de camadas, alternando e alterando ordens, volumes e equalizações
habituais, para parecer radical.
Voltando a TERRA QUE MARCA:
muitas vezes vemos árvores, vento, silvas, arbustos, as tripas das
coisas e mais natureza múltipla e omnívora que a pouca qualidade do mini-DV não
permite identificar ou destrinçar corretamente, e só estamos a escutar o
som de uma coisa ou duas, não de tudo, não há obrigação contratual para se
escutar tudo. E por isso evaporam-se tanto alguns aspetos da etnografia como
quase todos do suposto realismo pronto-a-vestir que tem feito escola,
enganosamente. Um quadro, um plano, carregado de terra, de árvores, de céu, de
horizonte cultural, de precipitação, de peso de nuvens, ervinhas, passarinhos,
animaizinhos vários, arbustos, fantasmas, etc… e escuta-se só um ou dois
elementos. Ou pelo menos assim parece, o que vai dar ao mesmo. E é precioso,
poético e realista, vivo. Tão realista como quando nos seus westerns ou
policiais Jacques Tourneur retirava os passos do homem que se aproximava, do
seu movimento e ação corporal, da suposta ameaça, sendo essa mudez mais
ameaçadora e ruidosa do que o realismo pronto-a-vestir.
Citando mestre Tourneur: «Às
vezes tomo grandes liberdades. Se alguém está prestes a falar, se levanta e
começa a andar, eu corto o som todo e não ouvimos o barulho dos passos. Se um
vilão entra numa casa e precisa de subir uma escada, eu sei que, depois de eu
sair, os técnicos vão guardar os sons todos, a escada, a porta, os passos. É
por isso que faço a minha própria mistura de som no plateau. Assim que o
actor acaba de falar ou de abrir a porta, eu corto o som e há um completo
silêncio enquanto ele sobe e atravessa a sala. Assim sei muito bem que logo
que o filme esteja terminado e eu já lá não estiver, os técnicos não vão
fazer asneiras na mistura.»
TERRA QUE MARCA é então
radicalmente metafísico e radicalmente palpável. Radicalmente silencioso e
radicalmente furioso. Que seja considerado documentário, que não o é, não o
desclassificado do trabalho que todo o resto do cinema deve sempre ter, seja
ficção, seja documento, observação distanciada ou ciência. Longe dos
histerismos que um certo cinema português tem rotulado de “realista” – por
exemplo, os gestos histriónicos, esgares primatas, modos de falar e de sentir
que os atores profissionais que fazem sucesso nas nossas telenovelas têm
macaqueado aos supostos “anónimos” e ao suposto social que os envolve para
depois levarem tudo isso na mesma medida para o cinema de prestígio
festivaleiro, e vice-versa, do cinema à telenovela, em ciclo vicioso; isto para
não entrar na questão dos sotaques, pronúncias e gritaria generalizada (os
parolos… os coitadinhos…) igualmente ao lado do abjeto e do lamentável; nomes
como João Canijo ou Marco Martins têm cometido os mesmos erros do que muitos
realizadores menores – o que encontramos neste trabalho apurado, atento e
preciso no ato de olhar, escutar, captar a melodia dos corpos e das suas
vibrações, sentir e escolher, de cortar e de coser, é um documento de um lugar,
o aqui e o agora, irmão de Virgílio e dos atormentado de
Thompson, convocando com igual potência o máximo de fogo de uma Poiesis eterna
em ebulição. Teoria, prática e poesia, senhor Aristóteles. Aqui chegamos. Amadoramente.
José Oliveira, abril de 2023
in: https://tribunadocinema.com/filmes-de-amanha-novamente-sozinhos-longe-das-leis/