Sob o signo do cineasta e pensador francês Robert Bresson e
sobretudo do seu O Diário de um Pároco de Aldeia, baseado no romance de Georges
Bernanos, assim têm sido os últimos filmes de Paul Schrader, mimetizando planos
e silêncios. Um “homem sentado à mesa”, assim definiu o género dos seus últimos
três filmes o cineasta americano. Depois de No Coração da Escuridão e The
Card Counter: O Jogador (que vimos neste Cineclube vai fazer dois anos)
chega-nos agora este O Mestre Jardineiro, concluindo então uma fase que
muitos consideram terminal. Se no primeiro tomo da trilogia temos o espírito e
a matéria numa digladiação crística - um padre a lutar com a sua crença frente
aos demónios de um novo mundo, de uma nova idade das luzes e das trevas (ecologia
e corrupção) - no segundo a matéria e as luzes de um mundo vicioso e pegajoso
tratam de conter uma pulsão destrutiva de outra ordem, aparentemente mais
profana. Ambos, padre e jogador, ocultam a propensão destrutiva e mercenária
das guerras onde estiveram e para as quais foram meticulosamente preparados, e
logo todas as perdas íntimas correlativas.
O jardineiro do seu filme mais recente domina todas as
fachadas dos protagonistas anteriores, uma questão de ordem e de repetição que
permite controlar a altercação e a sempre possível escalada de violência. Bem
como as marcas do passado literalmente impressas no corpo, expandidas neste tomo,
a aritmética que divide o tempo e o nutre, ampliada ao paroxismo e epitomada, e
um culto que permite um vórtice demencial num vocabulário, terminologias e
História que requer constante interação; enfim, e aqui algo de recente que
recupera a regeneração do plano final de The Card Counter: O Jogador -
decalcado do final de O Carteirista de Bresson – um método maníaco que
não se basta em se consumir no puro presente mas que lança ainda uma crença no
futuro.
Regeneração, precisamente, um dos grandes temas de
toda a história do cinema americano, que rima com redenção. Schrader, que
cultiva a austeridade de Bresson, de Carl Theodor Dreyer e de Yasujiro Ozu
(dedicou-lhes o livro de uma vida: Transcendental Style in Film: Ozu,
Bresson, Dreyer) jamais conseguiu escapar das forças morais e das placas
tectónicas da violência puramente americana, da sua nascença, da sua
construção, constatação, da sua constante destruição e regeneração. Assim, o
espírito transcendental que Schrader encontra nesses cineastas de nações e
culturas díspares – o interior dos seres, o invisível, a alma e a vida escondidas,
a fazerem-se matéria plena, palpável e rarefeita, e as formas cinematográficas
a comungarem dessa austeridade e desse enlevo – rebenta algures no caminho
devido à inevitabilidade de escape originário, um determinismo que se vê bem na
personagem de Ethan Edwards no The Searchers de John Ford, e que é a
bíblia outra de Schrader, mesmo que a não tivesse reconhecido. Forças
aparentemente opostas e impossíveis de comungarem numa cósmica busca
existencialista que tem ainda os pergaminhos de Albert Camus e de Jean-Paul
Sartre a dialogarem com o individualismo e o laconismo americanos.
E o que produz o poder cinemático, o suspense cortante e a
tensão presentes no filme de hoje? E logo a ambiguidade? No fogo lento com que Schrader
faz avançar a narrativa, as germinações e os peões em causa, com toda a
detalhada e maníaca exposição do modo de vida do jardineiro e da vida e dos
segredos das espécies cultivadas, do que ele aprendeu, do que quer passar aos
aprendizes, e de uma constante recriação, exploração e pesquisa, que permite
renomear e renovar quotidianamente o seus cosmos, o que subjaz é uma
complexidade do julgamento das superfícies, um paradoxo latente: torna-se
evidente que toda a contenção e postura correta e elegante de Narvel Roth
aprisiona a violência e a possível obscenidade, isto é, alguém que a cada
instante da sua existência renega e esmaga o seu fogo interior original,
uterino, enganando-se. E que a liberdade, e em última ou primeira instância a
verdade, reaparece nos momentos de pura violência e justiça em que ele devolve
à vida a jovem aprendiz Maya, encontrando-se. Assim, a decência pode ser abjeta
e a violência pura. É esta a importância, a esfinge e o pasmo do cinema de
Schrader no seu melhor.
Então, e a liturgia do futuro, a utopia e os sonhos metidos
numa ampulheta científica, resumida no incrível monólogo interior: «A
jardinagem é uma crença no futuro. Uma crença de que as coisas vão acontecer de
acordo com o plano. Essa mudança virá no seu devido tempo.»? É a infinita
complexificação, tal como são infinitas as multiplicidades de formas e de
geometrias, dos tons e das matizes, de estilos e de técnicas de jardinagem
expostas. Entre a perfeição de linhas e a selvageria, o milagre do tempo (também
meteorológico) e da hora e as omnívoras metamorfoses possíveis, percebe-se que
o futuro será jogado tanto pela assunção do deslumbramento e do raciocínio como
pelo aceitamento e pelo irracional. O espezinhamento da personalidade será
sempre a forma de violência inaceitável. Portanto, a troca da mulher mais velha
pela mais nova, a troca de uma contenção outra pela liberdade e jovialidade, torna-se
lógica no jogo de forças e dependências em causa.
Daí o final ao mesmo tempo lógico e imprevisível, uma dança
que tanto evoca a do juiz Holden no Meridiano de Sangue de Cormac
McCarthy como a do personagem de Tommy Lee Jones no subestimado The Homesman
- Uma Dívida de Honra. Passadas as panorâmicas e os travellings gizados a
regra e esquadro, a planificação Bressoniana que impede qualquer tipo de
brecha formal, constituindo um mundo de autonomias e regras perfeitas, passados
os flashbacks fétidos, toda a descompostura cai. E pelo menos esse
futuro, esse instante, regenera-se para sempre.
José Oliveira