segunda-feira, 16 de junho de 2025

ENCONTRO COM PEDRO M. RUIVO

 

por José Oliveira





 A Força do Atrito é um filme único no cinema português. Ficção científica, distopia, um mundo pós-apocalíptico, deambulações adolescentes ao deus-dará que ainda hoje criticam o presente. Um mal-estar e motivações misteriosas. Num romantismo por vezes terminal e velado onde jovens inocentes e novos demais na terra clamam por liberdade, ar novo, qualquer horizonte que os faça sentir alguma coisa. Perto do niilismo, perto das rebeliões juvenis de Nicholas Ray. A Pedro M. Ruivo, o seu realizador, aconteceu o mesmo que a Manuela Serra, Daniel Del Negro, ou João Guerra. A crítica cega, reaccionária e corrupta atacou o filme e, em muitos casos, o realizador, violentamente. Ninguém esteve disponível para sair das esferas canónicas do cinema português e do seu meio elitista. E um cineasta de tanto talento imortalizou-se com esta longa-metragem e uma média anterior. Para já.

A Força do Atrito, percebemos agora, mesmo numa cópia VHS que não prima pela perfeição, é um belíssimo filme. Mesmo com os seus defeitos, limitações ou paixões ardentes que não disfarçam certas arestas ásperas ou em carne viva. Um filme que corre riscos a vários níveis, sem medos de uma primeira vez – da escolha dos actores até aos ritmos ora calibradíssimos da acção, ora distendidos, romanticamente distendidos, conforme o clima.  Urge restaurá-lo, urge tirá-lo das mãos do seu produtor cego e surdo (e mal-educado, pois não me respondeu às mensagens para saber das cópias) e entregá-lo a quem o merece, a quem o concebeu, talvez para uma remontagem.

Conversámos com o cineasta que igualmente foi um importante assistente de realização de nomes gigantescos, revelando-nos a certa altura as suas ligações à zona do Fundão. O avô materno, Alberto Vaz de Carvalho, é de Casegas, na Covilhã, e casou com Maria Celeste Pignatelli, de Silvares. O irmão de Maria Celeste, Jaime Pignatelli, formou-se em medicina e exerceu em Silvares como médico e dentista pro bono e trabalhou nas Minas da Panasqueira e na Barroca Grande. Até à idade adulta, Pedro sempre passou as férias de Páscoa e o mês de Setembro em Silvares. E lembra-se de ver westerns no Cineteatro do Fundão que agora está em recuperação. Primeiro numa churrasqueira perto da Assembleia, onde ainda se podem comer costeletas de vitela e joaquinzinhos por menos de dez euros, e depois num café do Príncipe Real, entre whiskies, a conversa foi emotiva e fluiu sob o tom do confessionalismo e da esperança.

 

*

 

Começando um pouco pelo final, qual é a tua relação com o cinema hoje em dia?

Existe esporadicamente. Tem fases. Fases em que praticamente não vejo filmes. E outras em que vejo mais filmes. Continuo muito ligado a filmes e a realizadores que apreciei no passado, ou então a propostas novas, originais, com alguma radicalidade, que me surpreendam de alguma maneira. Não tenho uma grande relação com o cinema…  E português, então…

 

Mas vês mais em casa ou vais às salas?

Algum em casa, pouco. Embora tenha a Filmin… Não vejo um filme por semana. Antigamente, quando comecei, via dois ou três filmes por dia. Mesmo antes de andar na Escola de Cinema.

 

Podemos então dizer que já foste um cinéfilo.

Sem dúvida.

 

Sei que agora estás ligado à acústica. Foi antes ou depois desses estudos que entraste para a Escola de Cinema?

Primeiro foi o cinema, a acústica veio muito depois. Para mim o cinema era uma filosofia de vida. E vim para o cinema pela liberdade, pela possibilidade de construir universos. Pela liberdade de expressão que, sei lá, o Godard transmitiu, o cinema da Nouvelle Vague, ou as Novas Vagas dos mais diversos países, o cinema dos anos 60, um pouco depois do pós-guerra. Uma filosofia de vida, um modo de estar, quase. O que me levou para o cinema foram estas coisas, uma certa arrogância de pensar que se poderia viver de outra maneira, sem ser da maneira que a maioria das pessoas vive.

 

Nasceste em lisboa, certo? Como descobriste a Escola de Cinema?

Na juventude eu vivi no Brasil quatro anos e tornei-me lá cinéfilo. Em São Paulo, concretamente, havia a possibilidade de ver três ou quatro filmes por dia. Ou dois ou três, mas pelo menos um por dia não falhava. Comecei por entrar para um curso de Cinema em São Paulo, na Escola de Comunicação e Artes, embora só me tenha matriculado e nunca frequentado as aulas, e depois pedi transferência para Portugal. Não foi logo a Escola de Cinema, mas uma universidade que se chamava Universidades. Como a Escola de Cinema era um politécnico, nem precisava exclusividade. Portanto, houve um ano em que estive inscrito nas duas, mais ou menos em simultâneo. Depois abandonei a outra e fiquei só na Escola de Cinema. Mas rapidamente a abandonei, porque tive a oportunidade de começar a trabalhar nas produções do Paulo Branco, na altura em que ele começou, na V.O. Filmes, a primeira produtora dele.

 

Só para me situar, voltaste a estudar em que anos?

Recentemente. Acabei Engenharia e fiz um mestrado depois de 2005, quando abandonei o cinema. Estou há dez anos a trabalhar noutra coisa. Portanto, estive cinco anos a estudar novamente.

 

Voltando à Escola de Cinema, valeu a pena? Que recordações tens dos colegas e professores?

Quando eu lá estive a escola estava no início, pois tinha começado em 1973. Eu entrei ou em 78 ou em 79, já nem sei muito bem. Aquilo era assim um bocadinho à balda, os professores faltavam muito… havia uns mais regulares. Quem me influenciou muito, na cadeira de Estética, foi o João Miguel Fernandes Jorge, o poeta. Outro professor que também me influenciou, pelo lado encantatório, pela sua conversa, foi o António Reis, embora eu seja bastante crítico do seu cinema, ou de algum do seu cinema. Não adiro completamente àquilo. Como em muito do cinema português, há muito embuste. Algum embuste, nuns mais, noutros menos. Principalmente no cinema português mais canónico. Não tive oportunidade de ter aulas com o Seixas Santos porque ele tinha interrompido a sua carreira de professor por essa altura… O Jorge Silva Melo ainda não tinha entrado… O António-Pedro Vasconcelos faltava muito, dava montagem, mas não posso dizer que tenha aprendido muita coisa com ele… Também gostei do João Bénard da Costa em História do Cinema… A Escola de Cinema resume-se ao João Bénard da Costa e ao João Miguel Fernandes Jorge. Também ao António Reis, nas suas narrativas encantatórias de teor marxista e dogmático.

 

E quem recordas da tua turma?

Uma turma que não fez grande história. Eu estava no ano posterior ao Pedro Costa e ao Vítor Gonçalves. Tive um colega, o Carlos Assis, que era de imagem, trabalhou muitos anos com o Daniel Del Negro como assistente de imagem e depois fez uns trabalhos como director de fotografia. Entretanto, foi abalroado mortalmente no Marquês de Pombal quando ia na sua mota… E não me lembro de muito mais…

 

E como era essa experiência de começar a trabalhar profissionalmente em cinema quando ainda estudante?

Eu tinha uma colega de turma chamada Arlete Perdigão, que era produtora de televisão, e que se tinha também inscrito no Conservatório [Escola de Cinema, situada no Bairro Alto] na mesma altura. Era uma pessoa de outra idade, já com uns quarenta anos, e os restantes colegas andavam pelos vinte. A Margarida Gil, na altura mulher do João César Monteiro, ia trabalhar com a Arlete no Silvestre, produzido pela V.O. Filmes, que foi uma sociedade criada pelo Paulo Branco e pelo António-Pedro Vasconcelos, onde também participavam o Manoel de Oliveira e o João Botelho, começando a sua actividade com a produção do Francisca, do Oliveira, Conversa Acabada, do Botelho, e Silvestre, do João César, o último a ser filmado. E foi essa colega que me desafiou a mim e ao Carlos Assis a irmos trabalhar. Comecei como anotador no Silvestre, numa primeira fase em Trás-os-Montes, onde estivemos um mês e apenas filmámos uns três ou quatro dias, pois o César entrava em constantes crises. Depois do Paulo Branco ter interrompido essa produção, convidou basicamente a mesma equipa para trabalhar n'O Território, do Raúl Ruiz, que seria filmado logo de seguida, e onde voltei a ser anotador. Nas filmagens apareceu por lá o Wim Wenders, para visitar uma actriz que participava no filme e que era sua namorada. Nessa altura o Wenders estava com o seu Hammett, que era uma produção americana do Coppola, parado. Não tinha o que fazer, e quando viu ali meia dúzia de malucos na serra de Sintra, cheios de vontade de fazer filmes, putos de vinte anos misturados com outros de mais experiência – como o enorme director de fotografia Henri Alekan, que vinha do cinema a preto-e-branco, de estúdio, que tinha trabalhado com o Jean Cocteau – resolveu começar um filme com essa equipa técnica e praticamente com os mesmos actores. Entretanto, o Ruiz começou a fazer outro filme que era também escrito pelo Robert Kramer, com quem eu viria depois a trabalhar no Doc's Kingdom.

 

Também trabalhaste em Los Angeles no filme do Wenders?

Não, não fiz a parte americana, só a portuguesa, ainda na anotação. Comecei a ser assistente de realização com o João Mário Grilo n'A Estrangeira. Estamos em 1982. Aquilo eram muitos filmes, uns atrás dos outros. Mas também em 1982 já tinha sido segundo assistente – o assistente português – do Alain Tanner n'A Cidade Branca.

 

Estamos em 1982, ainda faltam uns dez anos para o teu filme. O que mais foste fazendo?

Muito trabalho como assistente de realização. Trabalhei com o Oliveira no Le Soulier de Satin, em que o Canijo era o primeiro assistente e eu era o segundo. Trabalhei n'O Desejado, do Paulo Rocha. Com o Werner Schroeter em 1984 [O Rei das Rosas]. Em 1986 com o Kramer. Também trabalhei com o Zeffirelli, para entrar em nomes mais sonantes, num filme onde o assistente de realização italiano era um sobrinho do Visconti. Filmado em Portugal, um filme sobre o jovem Toscanini como violinista, com produção americana, chamado precisamente Young Toscanini. Outro com quem gostei de trabalhar foi o Christian de Chalonge, num telefilme chamado Le Château du Pendu.  O Chalonge tinha feito O Salto em 1967, sobre a passagem dos emigrantes portugueses para França. Depois trabalhei em alguns telefilmes, produzidos pelo António da Cunha Telles. Entretanto, por volta de 1985/86, comecei a tentar concorrer aos concursos do IPC, como na altura se chamava o instituto que financiava o cinema. Finalmente, em 1987/88, tive o subsídio para A Força do Atrito. Por essa altura, junto com o Edgar Pêra, tínhamos proposto à televisão uma série, que era Corações Periféricos, que se passava nos subúrbios, os universos suburbanos das grandes cidades. Na altura partiu de uma proposta nossa à Secretaria de Estado da Cultura – chamava-se assim na altura – e à RTP.  Tínhamos desafiado o Luís Alvarães e o Manuel Mozos para trabalharem connosco. Tivemos aí uns problemas, porque o Pêra já tinha feito umas coisas para a televisão, Os Musicais do Sudoeste, e o Fernando Lopes – que era o responsável da RTP para essas coproduções – não gostava, portanto tirou o Pêra do grupo… e pôs um realizador da televisão do Norte, do Porto, o Fernando Ávila, e cada um de nós fez um telefilme. O título que no início eu e o Pêra tínhamos dado à série era Fábulas Urbanas, mas a RTP mudou para Corações Periféricos. Mas seriam mesmo como fábulas, no sentido do La Fontaine, com uma pequena moral, uma aprendizagem ligada aos adolescentes. Esse processo também deu para eu cortar relações com o Pêra, com quem estava sempre junto, éramos amigos diários e nocturnos, conheci-o nos Olivais através de amigos comuns.

 

Do teu segmento Perdidos e Achados, o que é que te recordas? Correu bem o processo? Ficaste satisfeito com o resultado?

No meu projecto também existiram algumas interferências, sobretudo no trabalho de escrita que tinha feito com o Pêra. O Fernando Lopes e o Seixas Santos censuraram, por assim dizer, o nosso guião, porque era uma coisa de adolescentes onde não estava presente a família, não havia pais. Acharam que tinha de ser enquadrado num espírito mais tradicional. E então começou um processo um bocado tortuoso até o Lopes aceitar o argumento.

 

Foi a tua primeira experiência como realizador. Correu bem a rodagem?

Sim, mais ou menos… a experiência foi boa. Tive alguns erros de casting, não terá corrido muito bem essa parte. O argumento era muito confuso, aquilo poderia ser quase para uma série, não era centrado numa ou duas personagens, tinha personagens a mais. Não fiquei particularmente contente… novamente, tive alguns problemas na montagem, com o Fernando Lopes. Chateou-me um bocado… ia ver as montagens, não gostava, interferia… e quando já tinha o filme praticamente alinhado, com a ajuda de uma montadora da RTP [Beatriz Sá Henriques], a partir do negativo de 16mm em que foi filmado, lá tive de fazer umas alterações.

 

E a recepção crítica?

Mal recebido, mais uma vez. O Jorge Leitão Ramos não gostou nada… eu não considero que o filme tenha sido muito bem conseguido, mas também não acho que seja abjecto. Enfim…

 

Passaram os quatro filmes na televisão, um por semana?

Sim, tenho ideia que foi semanal.

 

Entretanto, estamos quase nas filmagens d'A Força do Atrito.

Pois, demorou uns três ou quatro anos a darem-nos o dinheiro, pois nunca havia dinheiro por causa da crise, muito menos para o cinema. Os subsídios de um ano passavam para o seguinte… Entretanto, também comecei com um produtor e depois mudei para outro…

 

Começaste com qual, só por curiosidade?

Com o João Pedro Bénard da Costa, que tinha uma sociedade com o Joaquim Pinto [de nome GER]. Foram eles que tinham produzido os quatro telefilmes da série Corações Periféricos. Mas eu percebi que aquilo era muito caótico, e saltei fora do barco. Não quis ir para o Branco, e fui-me entregar a alguém que, epá… fui bater à porta do Tino Navarro e o Branco ficou zangado comigo.

 

Já que falas no Paulo Branco, como é que o descreverias nessa época, como era o ambiente de trabalho nos seus filmes, o célebre desenrascanço, as suas invenções…?

Era um ambiente muito entusiasta, normalmente havia nas partes mais técnicas pessoas com muita experiência, principalmente na imagem, na electricidade e na maquinaria, como o Acácio de Almeida e os que trabalhavam com ele. No som eram jovens entusiastas como o Joaquim Pinto e o Vasco Pimentel. Nos outros sectores também era tudo gente jovem, como as irmãs do Paulo, que também trabalhavam em cinema porque estudaram artes decorativas em Londres, e então trabalhavam no guarda-roupa e na decoração. E a coisa era assim um bocadinho a maluqueira do Paulo Branco, sempre a fazer filmes sem dinheiro, sempre a inventar esquemas. Não tinha medo, e nesse aspecto era muito pouco português, pois normalmente somos muito receosos, os gajos da economia dizem que os empresários portugueses são receosos, que arriscam pouco, e o Paulo sempre arriscou muito.  Fiz muitos filmes desses com o Ruiz, inclusive voltei a ser assistente dele já nos anos 2000 com Combat d'amour en songe, filmado na serra de Sintra…

 

Só por curiosidade, como era trabalhar com o Ruiz?

O Ruiz era muito, muito inventivo. Gostei muito de trabalhar com ele, aquelas posições da câmara, aqueles efeitos. O meu filme tem dois ou três efeitos copiados do Ruiz, ou usando a mesma técnica… era alguém que gostava muito de brincar com as imagens, e inventar imagens. Era um tipo que era engraçado porque sonhava de noite, escrevia de manhã e filmávamos isso a partir das nove ou das dez. Um tipo que funcionava através de vagos esquemas. Tinha um vago esquema, tipo A, B, C, D, umas coisas de lógica, estruturas lógicas, onde o A, B, C, D ou são personagens ou são situações, e depois do D volta ao A, por exemplo… ia sonhando, escrevendo, tinha uma maneira muito peculiar de arquitectar os seus filmes, que depois poderia resultar numa coisa muito complexa. E havia aqueles desafios que ele provocava aos directores de fotografia…

 

Suponho que seria muito diferente do Oliveira…

Sim, sim, sim. No Oliveira era tudo muito certinho. Houve um lado do Oliveira que eu gostei de aprender, que foi a experiência de trabalho em estúdio. Como trabalhar em estúdio, a perspectiva para os décors, a distância das coisas para montar certo tipo de imagens, os vários níveis de aumento dos décors, que supostamente se articulam e criam a profundidade, e mesmo certas regras geométricas de ângulos e de distâncias. O Le Soulier de Satin foi quase todo feito em estúdio, oito meses de estúdio, onde eu trabalhei uns quatro a seis.

 

O Oliveira decidia tudo, mandava…

Sim, era muito impositivo. E batia o pé e zangava-se. E quando se zangava, zangava-se mesmo. Tinha personalidade, não há qualquer dúvida.

 

Entrando agora n'A Força do Atrito, foi uma ideia tua e do Edgar Pêra?

A ideia foi minha, desenvolvi uma sinopse, que vinha da época em que Corações Periféricos era para ser uma série de dez episódios, inspirados um pouco na série The Twilight Zone, que estava a passar na televisão na altura – por volta de 1985, 86, 87 –, mas a de 1950, e nós adorávamos essas histórias de meia-hora ou menos, muito bem feitas, eficientes, e foi essa a nossa abordagem. Nós trabalhávamos assim: uns desenvolviam as sinopses dos outros, etc. O primeiro filme do Mozos [Um Passo, Outro Passo e Depois...] também partiu de uma sinopse do Pêra. A contribuição do Pêra para o meu filme surge no episódio da cena do velho e da gasolina, em que ele não entende porque é que os jovens começam aos tiros, tal como eu a tinha escrito. E como a nossa relação já não estava boa por causa daquela coisa com o Fernando Lopes, não nos entendemos bem. A cena de introdução do combustível nessa cena é ideia do Pêra. Quando voltei a pegar nisso para escrever o guião final, o Pêra diz que a ideia era dele. Ele exige ser creditado, nós discutimos, mas no final lá lhe fiz a vontade e ele foi pago e tudo. Enquanto a minha aproximação ao cinema nunca foi como artista, pois nunca me considerei um, o Edgar sempre se considerou um artista.

 

E a partir daí começas a escrever o guião com o Luís Alvarães?

Confesso que já não me lembro bem… Penso que fiz uma primeira versão com o Alvarães, sim. Depois fui ao Tino Navarro e ele deu-me um argumentista americano para trabalhar comigo, o Mason Funk.  Fizemos uma versão que era um pouco mais dramática e mais complexa em termos de produção. E para essas partes mais complexas não tivemos dinheiro… para mim, assim como está, quase que funciona, mas há umas partes que eu não filmei e que queria ter filmado. Tinha umas cenas de acção que tinha a ver com o desenvolvimento dos tráficos de combustíveis, emboscadas, isto na tal cena do velho e do combustível.

 

A personagem da neta do velho, tinha mais episódios amorosos?

Não, isso não tinha. E essa parte foi desenvolvida com o americano. Mas depois nas filmagens tudo foi um pouco mais reduzido. O Alvarães entra na primeira parte do guião e na parte final da produção, já depois de filmado, numa reescrita de alguns diálogos, que depois foram dobrados.

 

Uma das coisas de que se fala sempre a propósito do teu filme é a influência da saga Mad Max. É verdade ou é um mito?

É conversa fiada, não tem nada a ver. Sendo completamente diferente, tem mais a ver com o ambiente do Stalker e do Tarkovski, tirando o lado filosófico. Nem sou nada apreciador do Mad Max, ao contrário do Pêra, que era. Quando o filme foi lançado, o produtor fez um trailer por autonomia dele, para a televisão, que não tem nada a ver com o filme que eu fiz. Não falava do Mad Max, mas puxava um pouco para esse lado.

 

O que te interessava nesses universos da ficção científica, tanto no cinema como também na literatura?

Lia muito. Na altura gostava muito e lia muito o J. G. Ballard, e tinha essa influência em termos de ambiências. A literatura era importante. O Robert A. Heinlein também, apesar de não se ver muito no filme.  Mesmo nos argumentos seguintes que tentei escrever e nos que escrevi, e que tentei concorrer, sempre tive a influência do Ballard. Além disso, há dois conceitos que formam este filme: o acidente nuclear de Chernobyl, em 1986, e que no Ocidente só se soube três semanas depois, porque ainda havia a Cortina de Ferro; por outro lado, não havia futuro para a juventude em Portugal. Mesmo quando já tínhamos entrado para a União Europeia, eu não acreditava. E acho que tenho alguma razão. Uma juventude que não sabe para onde é que vai, uns gajos que não sabem o que andam a fazer. Querem vagamente ir para outro lado qualquer, mas não sabem muito bem… e depois tem esse lado ambiental, Chernobyl, coisas químicas, tudo assim muito vago…

 

No filme nunca se explica muito bem que tipo de catástrofe aconteceu…

Não, não. É tudo bastante vago. No início éramos para pôr uma coisa um bocado explicativa: tipo “nenhures / algures”, do género “outro tempo, outro lugar”, uma coisa abstracta, nalgum tempo, nalgum lado…

 

Nunca se identifica Lisboa?

Não. No final era também para ter um flashforward, com os personagens vinte ou trinta anos depois, noutra situação incomunicável. Era uma cena a seguir à chegada do personagem no comboio, no final. Alguém num espaço branco, high-tech, com um grande ecrã, a falar com o outro, em que se percebia que tudo o que tínhamos visto era um flashback desse momento. Do outro lado estava um gajo numa parede que era só imagem – num desses ecrãs que hoje são comuns, mas que na altura não havia muitos – a falar com um dos que regressaram. Descobriríamos que o filme era todo um flashback.

 

E porque é que não filmaste isso?

Não havia dinheiro. O produtor também não queria… tive alguma pena. Depois havia mais coisas, eu queria ter posto as falas ao contrário, invertidas, com legendas. De trás para a frente e legendadas. Uma outra língua, uma invenção. O produtor também não gostou e eu não insisti. Mas aos oitenta anos ainda poderei fazer isso… tal como o Oliveira… [Risos]

 

Embora nunca se fale de uma cidade específica, percebemos que é uma zona urbana de grande dimensão. A personagem do Manuel João Vieira é convocada para outra zona, mas antes de partir decide, com dois amigos, visitar zonas proibidas… era também uma metáfora de já nesse tempo muita gente querer sair das grandes metrópoles… procurar um futuro noutro lugar…?

Tinha a ver com todo um entendimento de falta de perspectivas. Da realidade não dar perspectivas. De alguma busca por outra coisa qualquer, mesmo não sabendo o quê. Uma coisa muito cerrada, um certo mal-estar. Hoje em dia a juventude queixa-se muito das condições, mas eu acho que já na altura era um pouco assim. Eu, por exemplo, não tenho filhos, porque nunca senti que tivesse condições para isso. Mas isso também depende dos sacrifícios que cada um esteja disposto a passar. Mas acredito que isso [ter um filho] passe a ser a coisa mais importante da vida. E o Estado não se preocupa em criar essas condições, também de habitação… nem se preocupa agora nem se preocupou durante vinte anos.

 

Pelo que estás a dizer, é ao mesmo tempo um filme pessoal e político?

Sim, sempre fui muito político.  A adolescência ensinou-me a liberdade. Tinha 13 anos quando foi o 25 de abril de 1974. E houve ali dois anos, 1974 e 75, em que houve uma balbúrdia neste país, e toda a gente gritava uns com os outros, em conflitos políticos. Mas era um exercício de liberdade incrível que eu como adolescente passei a admirar, uma coisa que se entranhou em mim.

 

Duas cenas extraordinárias que o filme tem: quando os protagonistas vão a uma zona contaminada e estão lá pessoas – são crianças? – agarradas à televisão…

É uma cena que resultou mal. Aquilo era um conceito de fogueira. Gente à volta da fogueira. Só que a fogueira era a televisão, o ecrã. Uma cena que foi mal encenada, pois eu queria um tipo de imagens mais abstractas a passar na televisão. Como está, aquilo é vagamente um jogo, penso. No fundo, queria imagens de quase discoteca, de alienação, as pessoas estarem ali, mas não estarem ali. Mas eu acho que resulta mal.

 

Fica a saber que eu acho a cena mesmo extraordinária.  E a cena da gasolina também, onde tu introduzes aí o aspecto da ganância…

Sim, mais próximas de situações-limite, as pessoas revelam-se. O fundo de cada um sobressai um pouco. Seja a psicologia, seja a educação que teve. E pronto, também achei que tinha de matar um deles…

 

Como surgiu a terna e sonhadora personagem da Sylvie Rocha, uma mulher, quase uma menina, num mundo masculino?

Tem muita falta de sexo o filme… [Risos]

 

É uma coisa mais platónica…

É tudo muito adolescente, ou pré-adolescente, quase… sim, nesse sentido platónico. Se calhar há ali um esboço de desejo com o João Grosso, uma cobiça, mas com os outros dois não… Depois há uma coisa que vem da filha do António Reis, numa cena em que ela deixa cair uma colher e diz: «maldito Newton!». Quando a miúda, a filha do Reis, tinha sete ou oito anos, o pai martelava com este tipo de informação a pobre da criança. Não é bem uma homenagem, não sei bem o que é… mas ela estava lá e lembrei-me disso.

 

Num dos mais belos diálogos essa personagem feminina pergunta à do Manuel João Vieira se quer ser irmão dela. Não temos sexo tórrido, mas temos esta tirada sublime e comovente de uma inocência persistente…

Penso que fui eu que escrevi, mas já não me lembro como é que isso me veio… As personagens são muito inocentes. Ou ia por um lado, que não me apeteceu, ou era por aí… inclusive estive para usar outra actriz completamente diferente, que não usei porque ia tornar aquilo muito sexual.

 

Era a Alexandra Lencastre?

Não, não, era a Sofia Sá da Bandeira. Fiz um casting, e depois tomei essa decisão.

 

Falando noutros actores, eu já tinha gostado muito do Manuel João Vieira n'O Sangue. Foi também uma escolha tua? Tiveste total liberdade nas escolhas?

Já no meu filme para Corações Periféricos tinha trabalhado com o Manuel João Vieira como actor. Para esse telefilme ele fez também uma música. E desafiei-o novamente. Por acaso ele tem ali um pequeno momento à John Wayne, que funciona como a minha homenagem ao Wayne, numa cena em que ele se rebola no meio do chão. Tem a ver com o físico dele, também.  Na minha cabeça, claro. O João Grosso tinha-o visto numa peça de teatro, do António Patrício, e tinha gostado muito dele, ali na Politécnica. O outro actor, Filipe Cochofel, fez algumas coisas, poucas, não o conhecia, mas acabei por o escolher.

 

Correram bem as rodagens? Houve conflitos ou a coisa…

Não houve assim grandes conflitos… Alguns com o Daniel Del Negro, que achava que os diálogos eram maus, que não queria estar lá em Aljustrel a semana toda, longe de Lisboa, inclusive quis abandonar o filme a meio. A nível de fotografia eu queria alguns efeitos de filtros e coisas assim e ele recusou-se sempre. Dizia que fazia a imagem limpinha, depois fazia-se na pós-produção os filtros, filtragens… E uma ou outra iluminação nocturna que eu queria que fosse claramente mais artificial e ele fugiu a isso. A minha relação com o Daniel não foi boa.

 

Mas eu acho a luz do filme muito bonita, dourada…

O filme é bem fotografado, mas eu gostava de ter assim uns céus vermelhos… tinha as referências que tinha aprendido com o Ruiz e com o Acácio. Ele fazia tintagens, e eu queria pôr um filtro e borrar ali um bocado e colocar à frente da lente… meter uma mancha vermelha…

 

Pintavam directamente na lente?

Sim, sim, com o Ruiz fazia-se tudo e mais alguma coisa. O Daniel não queria comprometer o seu estatuto profissional, não quis partilhar o risco, no fundo.

 

Tendo em conta a conclusão do filme que conhecemos, qual era a tua ideia? Ele foge novamente? Abandona a civilização?

Volta ao mesmo. Chega ao mesmo sítio. A vida continua igual. Como qualquer experiência, a pessoa no final ganha ou perde qualquer coisa, era um pouco isso. Ele atira umas pedras…

 

Os cenários são extraordinários, contribuem muito para esse lado apocalíptico que o filme tem, filmaste nas minas…

Filmei nas minas de Aljustrel, e nas de São Domingos, por causa daquelas texturas que os metais dão, os magnésios, aqueles roxos, os alaranjados, cores que variavam e sobressaíam conforme a humidade. Quando estava mais seco já não sobressaíam tanto… Um ambiente inóspito, agressivo. Filmei também na fábrica de pólvora de Barcarena, na altura em que estava abandonada. Também ali onde hoje é a LxFactory, que eram uns armazéns, onde o filme acaba, com um plano picado de uma torre que lá tinha. O mesmo armazém onde filmei com o Botelho Tempos Difíceis, que pertencia à Lisnave, enorme e cheio de papel de jornais velhos, já não tinha muita utilização. Aquele corredor inicial também é aí. O bar já não me lembro. Tentei fazer aquilo a que o Edgar Pêra chamará um “filme de decorador”.

 

Foi fácil conseguires planos onde não temos sinal da civilização?

É escolher o quadro. Também filmei num viaduto junto aos Olivais, na zona da Expo 98, naqueles cais, uns barracões de uns cinquenta metros. Eu punha o carro a andar e filmava uns sete ou uns dez segundos sem ninguém, depois juntava com outros bocados de outros lados, e era assim. É um trabalho de construção de imagem.

 

Fazias muita planificação? Usavas storyboards?

Vagamente, sim. Pelo menos planificação fazia sempre. É um trabalho que gostei, esse de composição e trabalho das imagens. Hoje em dia há um realizador português, que é o Mário Barroso – que não tem nada a ver com isto – que é a pessoa em Portugal que constrói imagens mais ricas com pouca coisa. No primeiro filme dele [O Milagre Segundo Salomé], que é um filme quase sem dinheiro, produzido pelo Paulo Branco, as imagens que ele conseguiu foram praticamente sem nada, sem adereços, mas aquilo tem uma riqueza pela composição. E eu gostei desse primeiro filme dele por causa disso. Identifiquei-me com ele nesse sentido de conseguir imagens ricas sem nada. Sendo que no meu caso fazia isso aos bocadinhos.

 

Num texto escrito por um amigo meu – Francisco Rocha – ele acaba a dizer que o teu filme contou, nas áreas técnicas e artísticas, com uma autêntica dream team do cinema português. O Luís Cília na música, o José Nascimento na montagem, o Del Negro… como te conseguiste rodear de todos esses nomes importantes?

O Nascimento era um amigo, já tinha montado o meu outro filme. Comecei a montar com ele, alinhavámos juntos o filme praticamente todo, mas o Tino Navarro achou que o José Nascimento estava a demorar muito tempo para acabar o filme e colocou o Luís Sobral na parte final, que era o montador habitual dos filmes que ele produzia. Mas a estrutura basilar foi feita pelo Zé.

 

Estavas sempre presente na montagem?

Sim, sim, na altura era em 35mm, com a moviola, para trás, para a frente, corta e tal, um gajo estava sempre presente. Hoje deve ser igual, apesar do digital, mas uma pessoa perdia muito a noção do tempo numa sala de montagem. Ver muitas vezes…

 

E o trabalho com o Cília?

Com o Luís Cília foi no final. Eu inicialmente ainda falei com o Pedro Ayres Magalhães, que era um amigo, andávamos muito juntos, era na altura em que ele estava a começar com os Resistência, aquela coisa de guitarras que ele fez. E ainda falei com ele para fazer umas coisas dessas de guitarras, mas depois o Tino Navarro também não se entendeu com ele a nível de dinheiro. E então fui bater à porta do Luís Cília. Inicialmente eu tinha ideia de uma música mais brutalista, mais dissonante, uns ruídos estranhos a vaguearem por ali. Pedi-lhe assim uma coisa meio repetitiva, tipo as sonatas do Bach, com a arte da fuga e o contraponto. E gosto da música. Fiquei satisfeito. Gostei de trabalhar com ele. Depois ele disse-me que gostou do filme, menos da voz-off introdutória. Eu por acaso gosto, mas ele…

 

O filme também é uma espécie de pedrada no charco, no sentido que é um género que não existia no cinema português. Não foi fácil, com certeza. Tentaste o financiamento muitas vezes?

Na primeira vez que concorri com este argumento, ele foi aceite. Aconteceu que o Augusto M. Seabra, que para mim era uma das pessoas que escreviam com alguma consistência sobre cinema, era do júri. E valorizou muito o meu curriculum, que vinha lá com os Wenders, com os Schroeters e tal, os Paulos Rochas, o Oliveira e esses cromos todos. O projecto a concurso era um bocadinho diferente, tinha mais actores músicos, como o António Manuel Ribeiro, que seria o líder de um gangue; com o Ayres Magalhães a fazer também um papel… tinha um lado mais de cultura pop. Cultura pop da altura, por assim dizer. O Seabra defendeu o filme e no fundo creio que foi aprovado por causa dele. Depois acho que se arrependeu, mas pronto. No ano anterior tinha concorrido com outro projecto diferente. O Paulo Rocha acho que disse que era interessante, e tal [Pedro imita a voz aguda de Rocha], mas nesse ano ganhou a Ana Luísa Guimarães. Mas eu gostei desse filme dela, Nuvem, era muito interessante. Era do ano do Pêra, ela.

 

Voltando à Escola, diz-se que existiam facções bem marcadas em termos de cinefilia. Uns eram mais cinema americano, outros europeu. Quais eram as tuas influências, para além das que fomos falando?

Eu era muito eclético. É como na música. Não defendia nenhuma escola. Gostava muito da Nouvelle Vague, dos inícios, do Godard. De tudo, cinema europeu, do bom, não de todo. Do Eisenstein também, Dziga Vertov. Gostava dos Hawks e dos Fords, da série-b americana, e o meu filme tem muito do pensamento da série-b por trás.

 

Num texto que André Marques escreveu para os Encontros de Cinema do Fundão, ele diz que o que mais o comove, e passo a citar, «é esta juventude perdida e à deriva – algo que o cinema clássico de Hollywood tão bem explorou, desde Nicholas Ray a Terrence Malick.» Não sei o que tens a dizer…

Eu gostava muito do Nicholas Ray. Quando fiz o filme se calhar não pensei muito nele, mas pode ter qualquer coisa. E um dos meus filmes preferidos, que já não o devo ver há uns trinta anos, é o They Live by Night. Já agora, quando vocês me pediram um filme da minha preferência para passar com o meu, uma das alternativas que também pensei foi o Touch of Evil, do Welles, passado na fronteira, com aquele plano sequência inicial, a explosão… e outra referência é o Fuller, com quem eu trabalhei no Wenders.

 

Privaste com ele?

Privei uma vez um bocadinho, eu e o Pimentel, no final de uma manhã, a caminho do almoço, lá no terraço da Praia Grande, a ver-se o mar. Fomos lá fazer um bocadinho de conversa, mais o Pimentel, eu devo ter ido atrás, e o gajo começou a falar [Pedro imita o falar emotivo de Fuller] do Vasco da Gama, do oceano grandioso, conquistas… ali a vender um pequeno argumento dentro do seu estilo um bocadinho gongórico. Na filmagem do Texas Bar eu tinha um livro do Samuel Fuller, pedi-lhe para ele assinar, e o gajo ao assinar diz-me: «Pedro, you ask me for this, don’t ask me my balls!» [Pediste-me um autógrafo, não me peças os tomates!] [Risos].

 

Trabalhaste no filme que ele realizou em Portugal, Street of No Return [Rua Sem Regresso]?

Não. Ia trabalhar, mas depois fui trabalhar com outro americano, um tipo que trabalhou com a Joana Vicente, uma produtora portuguesa que foi para Nova Iorque. Mas gosto muito do Fuller e daqueles filmes de guerra, como o Verboten!, porque são filmes muito eficientes, feitos com pouca coisa. E os filmes de acção. Mas também gosto da Marguerite Duras. Sou muito eclético.

 

Estiveste ligado à música?

Não, mais através de amigos, como o Ayres Magalhães, os Heróis do Mar, e ia conhecendo outros através deles…

 

Só para acabar este capítulo, porque é que escolheste o Tino Navarro?

Em vez de ir bater à porta do Paulo Branco, que eu achava que tratava mal os realizadores, fui ter com outro que realmente me maltratou… Eu na altura namorava com uma tipa que me influenciou porque trabalhava com ele, e insistiu para eu fazer isso. Lembro-me que na altura eu queixei-me do João Pedro Bénard – que era muito caótico, o Mozos demorou imensos anos a acabar o Xavier por causa disso, por exemplo – ao Botelho, e ele também me aconselhou o Tino Navarro, aí de uma maneira não muito limpa, não muito honesta, e acho que o Botelho esteve mal. Eu gostei muito de trabalhar com ele no Um Adeus Português e no Tempos Difíceis. Mas hoje em dia quase deixei de lhe falar, e nós moramos por aqui [zona do Príncipe Real], porque não gosto nada dos filmes que ele tem feito. Cristalizou aquele estilo, ali à volta da literatura, e parece quase o Oliveira dos últimos tempos, que fazia filmes telescola para os netos.

 

Falemos agora da recepção do filme. Como foram os festivais? A estreia?

Foi pessimamente recebido, ninguém defendeu o filme. O Rui Pregal da Cunha, que era o cantor dos Hérois do Mar, que já tinham acabado, andava a escrever no Semanário. E quando soube que eu ia fazer um filme chateou-me muito para me fazer uma entrevista. Lá dei a entrevista e apareceu impressa lá uma coisa a dizer: «Pedro Ruivo, 27 anos, 2 filmes.» Epá, isso caiu-me muito mal. Eu saía muito à noite, mas nunca quis andar atrás dos jornalistas, porque pensei que tinha de ser avaliado pelo meu trabalho.

 

Isso acontecia, realizadores atrás dos jornalistas?

Não sei… eu sabia quem eram os jornalistas, mas não ia falar com eles. Não os conhecia, não me tinham sido apresentados… sou um gajo também tímido… devo ter criado uma animosidade mesmo com pessoas que tinham andado comigo no Conservatório, como um crítico do Expresso, o António Cabrita, que andou no ano à frente do meu, e que escreveu coisas que não quero revisitar. Foi muito mal recebido, e Lisboa é pequenina e as coisas sabem-se. O Fernando Lopes também andou a dizer que eu fiz um filme horrível… Mas teve mil e tal espectadores numa semana, ali no São Jorge. Mesmo actualmente não é mau.

 

Viajaste com ele a festivais?

Não, eu nunca fui. O filme esteve no Fantasporto, foi a um festival em Espanha, penso que em Pontevedra.  E foi a um também na Argentina. E eu acho que o Gerry [o filme de Gus Van Sant escolhido por Pedro M. Ruivo para acompanhar o seu nos Encontros] tem um produtor argentino, e é filmado na Argentina. E eu tenho ideia de que os gajos viram o meu filme e disseram: «vamos ver o que é que se aproveita desta merda.» Tem ambiências parecidas e tem um plano que é copiado, que é um travelling assim um bocadinho picado, sobre os gajos a andar.

 

Foi uma das razões por que escolheste o filme…

São filmes, para já, cinematograficamente muito diferentes. Mas depois, essa junção, pode despertar qualquer coisa. Quando o vi disse que tinham copiado um plano do meu filme, mas nunca mais liguei. E agora fui vê-lo outra vez, e percebi que tinha sido filmado na Argentina, onde o meu filme tinha passado num lugar qualquer e, com a história do produtor argentino, lembrei-me que poderiam ter pegado na minha ideia e terem feito um filme completamente diferente. Mas ao fim destes anos todos eu ainda a pensar nisso…

 

Ficaste ressentido por ninguém ter olhado para o filme seriamente?

Na altura foi bem difícil, claro. Apesar de tudo fiquei contente com o resultado, pois apesar dos problemas de produção que já contei, eu fui levando as coisas para a frente. E depois o que escreveram chegou a roçar a violência. Mas é assim, na altura faziam-se poucos filmes, três ou quatro por ano, não tem comparação com os dias de hoje. Naquela altura, mesmo os grandes filmavam de quatro em quatro anos, ou coisa do género. Portanto, era complicado deixarem entrar alguém novo.

 

Mesmo na Cinemateca não defenderam o filme?

Na Cinemateca, não. O pai Bénard, como eu me tinha zangado com o filho, sei lá se o viu… ainda por cima tive algum dinheiro da Gulbenkian e zanguei-me com o filho… podia ter metido esse dinheiro ao bolso, mas, burro como sou, dei-o ao Tino Navarro.

 

Depois desse filme tentaste concorrer mais vezes com projectos pessoais?

Concorri mais umas três ou quatro vezes, mas nunca mais tive hipóteses. Depois fiz pequenas coisas: uma cassete que foi feita sobre o Pavilhão de Portugal na Expo 98. Sobre os descobrimentos, com uma animação, umas entrevistas. Fiz produção em televisão, nuns programas da SIC e da RTP. Fiz uma ou outra publicidade.

 

Gostaste de trabalhar na publicidade?

Não, não gostei. E as que fiz em nome próprio foram muito simples, porque também fiz algumas como assistente de realização, e detestava aquilo. Era o dono do produto a dar opinião… todos a dar opinião… até o caõzinho dava opinião… ter que levar com aquilo era horrível. Eu como realizador não levei porque fiz coisas muito simples. Fiz uma sobre a introdução do euro, com o ex-marido da Catarina Furtado.

 

Mas mantiveste os trabalhos como assistente de realização?

Sim. Afastei-me uns tempos para trabalhar na televisão, em vários canais. Depois voltei para trabalhar com o Ruiz, trabalhei num filme com o Johnny Hallyday como actor, numa produção do Animatógrafo do Cunha Telles, uma parvoíce francesa cheia de dinheiro. Mas valeu por ter conhecido um decorador com quem me entendi muito bem, foi ele que construiu os cenários todos e fiz as repérages com ele, etc., que foi o Ivan Maussion. Um gajo que ganhou uns Césares e trabalhou com o Patrice Leconte. Fiz o filme da pedreira com o João Mário Grilo, A Falha. Trabalhei no primeiro filme do Hugo Vieira da Silva, o Body Rice. Mas chateei-me com ele, ou ele comigo, e não fiz o filme todo. E foi aí que decidi que cinema, chau! O Paulo Branco estava a pagar-me uma miséria, nem falou comigo para me explicar, e acabou.

 

E a seguir?

Tirei uma licenciatura em Ciências da Engenharia. Depois um mestrado, já na área do Ambiente. Fiz uma tese de mestrado ligada à produção de bivalves na costa portuguesa. Tem a ver com as amêijoas, conchinhas, esse tipo de produção. Depois é que comecei a trabalhar em acústica, que não tem nada a ver com os bivalves. Passados quatro ou cinco meses das aulas práticas contactei com uma empresa para fazer um trabalho ligado à acústica, com equipamento emprestado, e segui esse caminho.

 

Quando dizes que podes voltar ao cinema aos oitenta anos, tens alguma “ambição” ou…?

Ambição não, poderei ter algum gosto.

 

Sim, perdoa-me a palavra, não é a apropriada…

Não tenho projectos pensados… O projecto mais imediato é mesmo pegar n'A Força do Atrito e dar-lhe uma versão 2. Inverter os diálogos, aquelas coisas que eu disse que queria fazer e não consegui… mas não sei… Mas também tenho muitas cassetes filmadas em Mini-Dv, pequenas coisas, mais diarísticas, e poderei dar uma forma a isso, uma consistência, arranjar ali um corpo. Não desisti ainda de trabalhar as imagens, pronto. Pode ser que volte, vamos ver.


[Entrevista realizada para o catálogo dos Encontros de Cinema do Fundão 2025 e igualmente publicada no Jornal do Fundão: https://www.jornaldofundao.pt/cinema/encontros-de-cinema-do-fundao-conversa-com-pedro-m-ruivo]

sábado, 7 de junho de 2025

SOBRE ENZO G. CASTELLARI


por José Oliveira

Quando pela metade da primeira década deste novo milénio Quentin Tarantino começou a propalar aos quatro ventos a sua admiração pelo italiano Enzo G. Castellari, este já tinha a sua carreira de uns quarenta e tal anos e quarenta filmes praticamente concluída. Na verdade foram bem mais de quarenta e tal anos, pois, como podemos ler na sua monumental autobiografia – Il bianco spara!, lançada em 2016 – o seu primeiro contacto com uma câmara de filmar teve lugar logo depois do primeiro biberão. Com poucos anos de idade deixou-se encantar pelos estúdios de cinema italianos, dos pequenos aos grandiosos, com a mítica Cinecittà à cabeça. O seu pai, Marino Girolami, campeão europeu de boxe nos anos 1930, precocemente retirado devido a problemas de coração, abriu um ginásio e especializou-se em massagens terapêuticas. As suas mãos fazem furor e uma das muitas estrelas do cinema que se entregam a elas é Anna Magnani. A grande actriz italiana pede que Marino ajude o seu filho com paralisia a ter uma vida com mais qualidade e este consegue-o. Nascerá entre os dois uma amizade eterna e, já nos anos 1940, Magnani levará uma das milhentas histórias que Marino escreve por diversão à tela, começando uma grande aventura para os Girolami, pai, filho e depois os netos.

Tal como Marino, que acabaria por realizar mais de 70 filmes, também Enzo Girolami (Castellari é uma adopção do nome de solteiro da sua mãe) aprenderá toda a técnica do cinema a observar a prática, primeiro, e a meter as mãos na massa, depois. Os seus estudos em Belas-Artes e em arquitectura, em Roma, onde sobreviveu com a sua família aos bombardeamentos da Segunda Grande Guerra, ombrearam sempre com o trabalho nos filmes do seu pai e, quase sem pré-aviso, nos seus próprios filmes, que chegariam a meio da década de sessenta. Pochi dollari per Django, de 1966 (tentativa de capitalizar a personagem de Django, de Sergio Corbucci, realizado esse mesmo ano), onde Enzo não surge creditado oficialmente em favor a León Klimovsky, fica como momento decisivo da assunção do seu génio criativo e trabalhador, tendo Klimovsky e os produtores percebido imediatamente que Castellari era um prodígio que dominava todas as etapas de feitura de um filme e que não havia dúvidas sobre quem decidiria – da planificação ao storyboard, do trabalho com os figurantes aos movimentos de câmara intrincados, da montagem à dobragem, tudo Enzo dominava, à imagem e semelhança do pai. Passadeira estendida para vários westerns cada vez mais sui generis, sobretudo depois de descobrir o maverick Sidney J. Furie e os seus enquadramentos e grandes-planos bizarros, aparentemente desequilibrados e por isso mesmo riquíssimos, comparando-o a Matisse, Pissarro, Renoir, Modigliani ou Tiziano. E dentro do sistema italiano Enzo tornar-se-ia, de maneira especial, um Maverick, invejado tanto pelos êxitos como pelos engenhos. Desta fornada, talvez Johnny Hamlet, de 1968, hiperbolização shakespeariana a cores garridas e erotismo também garrido, seja o mais tórrido e o que contém mais marcas e figuras de estilo inauditas a serem exploradas futuramente – como a câmara a girar impossivelmente à volta da cabeça de Hamlet na gruta e os flashbacks estonteantes. 

Logo no prólogo da referida autobiografia, é Franco Nero, um dos seus principais colaboradores, que o define com precisão, afastando o fantasma de realizador fascista e reaccionário que muitos quiseram ver por causa da forte musculatura dos seus heróis, das permanentes cenas de acção que fizeram história ou dos vários êxitos de bilheteira de produtos considerados “divertimento descartável” pelos grandes estúdios: «Hoje, com a devida distância temporal, quase todos já compreenderam o mesmo que o espectador que então pagava os bilhetes para os seus filmes: eles não eram de direitas nem de esquerdas, sim um espectáculo feito de uma maneira específica, com a ideia de que o público deve ter um leading man, um actor protagonista capaz de fazê-lo sonhar, que represente na tela o Herói Belo e Valente. Uma concepção clássica e reconfortante do cinema como sonho, e não como espelho de uma realidade feia e cinzenta, criada por homens sem qualidades.» 

Fascinado pelas potencialidades espectaculares e ainda novas do cinema, vai tocar em vários géneros, inventar outros e misturá-los de forma explosiva. Realizando westerns, filmes de guerra, policiais (com La polizia incrimina la legge assolve, Castellari permitiu à sua variação italiana, o poliziesco, descolar com sucesso), fantasias, tangentes à ficção-científica ou mesmo o giallo (o thriller à italiana tocado pelo terror, género que Enzo nunca gostou), entre outras variações e sub-variações, poderemos aproximar Castellari aos cineastas clássicos americanos dos géneros, genealogia que ele, com certeza, não negará. Também ele aceitou encomendas, argumentos alheios, pegou em filmes a meio, não teve medo de presentes envenenados, salvou produções desastrosas, concretizou desejos de actores importantes, etc. No entanto, com Castellari, a ideia de um autor total, dentro do cinema de grande espectáculo e de acção, impõe-se sem reservas – de resto, chegou a recusar convites de Hollywood por não ter assegurado o final cut. 

Será sempre ele que reescreverá, à sua maneira, cada guião que lhe chega; que lutará pelos actores certos para cada caso; que decidirá cada posição e movimento de câmara; que inventará as mais descabeladas e bombásticas ideias para transcender diminutos orçamentos ou desinvestimentos radicais durante o processo; que no final dos dias extenuantes de filmagens em partes longínquas do planeta, não só selecionará os takes ideais com os seus diferentes ângulos, como montará tudo, cena a cena, fazendo que no término de cada rodagem a montagem esteja praticamente finalizada e o filme pronto para uma primeira exibição – num caso deveras singular na história do cinema. Como singular é a forma como Enzo concebeu os ritmos dos seus filmes de maneira musical através de baladas e temas famosos, criando atmosferas e melodias que depois terão de ser reinventadas pelo compositor escolhido – para Keoma, por exemplo, utilizou faixas de Leonard Cohen e Bob Dylan, e será fascinante tentar achar esses ecos na música dos irmãos De Angelis no filme que conhecemos. 

As suas invenções e genuína criatividade podem ver-se em múltiplos exemplos ao longo dos anos, sempre com grandes colaboradores na área técnica e artística: o espectáculo das maquetes e das miniaturas pela mão delicada do genial Emilio Ruiz, que bem antes da frieza digital asséptica e virtual não tentou esconder a crueza e a fragilidade do falso, bem pelo contrário, numa celebração do analógico, dessa beleza cândida do cinema como jogo infantil e regresso ao berço; a ilusão das perspectivas, os enquadramentos e as composições pictóricas que advêm dos seus estudos de arquitectura, pintura e cenografia, e que lhe permitiram dar uma sensação de grandeza dentro de quadros limitados de produção; o trabalho com os duplos e com as equipas de efeitos-especiais que materializaram no ecrã acrobacias impossíveis e explosões visuais sem limites; as câmaras lentas e os zooms dramáticos. E, no que se refere à carne e osso, as extraordinárias e tão variadas interpretações que conseguiu de actores tão diferentes, em grandes ou pequenos papéis, como Franco Nero, Fabio Testi, Fred Williamson, Michael Sarrazin, Vic Morrow, Fernando Rey, Woody Strode ou o amador Mark Gregory. A simplicidade (e os gestos) com que Castellari muitas vezes fala destes e de outros actores lembra mais um professor de arte a falar de esculturas de Michelangelo ou de Bernini – pois cresceu no meio delas – do que de chavões de representação. 

É bem verdade que, como muitos realizadores italianos da sua era e da sua esfera, Castellari poderá ser acusado de emular filmes americanos de sucesso. Mas a inteligência do seu trabalho de escrita, sobretudo quando aconteceu com outro grande amigo seu e fundamental parceiro, o argumentista Tito Carpi, resgatará quase sempre a cópia conforme e o pechisbeque. Das obras que os Encontros de Cinema do Fundão irão mostrar este ano, The Big Racket, de 1976, para muitos o Citizen Kane dos policiais italianos, faz lembrar, estilisticamente, os filmes de acção de Don Siegel, Peter Yates ou Sam Peckinpah, mas se podemos considerar a perseguição de carros de La polizia incrimina la legge assolve mais apurada e temerária do que a de Bullit, e o lirismo da vida privada do detective extasiante, também fica claro que em Racket as câmaras lentas e os tiroteios descarnados fazem uma catarse de muita da violência que a máfica italiana infligiu nessa altura e que ficou na consciência e no medo colectivos. Um grito de rebelião contra as várias espécies de subordinação pelo terror – tanto as oficiais como as criminosas – é uma peça essencial que rima com o humanismo vingativo de Il cittadino si ribella. 

Um aparte: para uma reavaliação crítica decente da obra de Castellari, que vai lentamente em marcha, continua a faltar, de maneira gritante, notar o extremo romantismo e lirismo que irrompe aquando das breves cenas da vida privada de certos protagonistas. Breves, mas intensíssimas, nos melhores casos sobre relações condenadas a não durar, tanto pelo modo de vida escolhido pelos personagens, como pelos seus demónios e fantasmas íntimos. Outro dos casos mais belos e magoados está na relação pai-filho que novamente assombra Nero em Il giorno del Cobra: no espaço paradisíaco do reencontro e da redenção cai constantemente uma treva indestrutível e indizível que vai lentamente esvaziando todas as durações, todos os horizontes e promessas – e a célebre câmara lenta alia-se à música de querubins (música sacra da infância e nostalgias insulares de tons asiáticos, quase Manga) em funções microscópicas passionais. A cena de beisebol é o jardim do Éden (tal como a cena do arco e flecha de Keoma ou os crepúsculos de La polizia) do cineasta da acção trepidante: simetrias na métrica do enquadramento e na métrica da montagem que abraçam e assemelham os dois numa eternidade. 

Começado ainda na finalização de Racket, Keoma, de 1976, é uma das obras máximas do cineasta, o seu favorito, e um dos melhores westerns de sempre, spaghetti ou não. Começado e acabado sem guião, com as cenas a serem escritas diariamente e de improviso a partir de um tratamento em bruto, filmado em cenários já calcinados pelo êxodo industrial, é uma história de contornos bíblicos, fantasmática e apocalíptica, carregada de órfãos e de discórdias de sangue, onde vários tempos se misturam, muitas das vezes dentro do mesmo plano. Ingmar Bergman, pasme-se, foi uma influência, não só porque uma das personagens representa a Morte, mas sem dúvida pela irracionalidade temporal e devaneio estético, fora de qualquer mundo conhecido, atingindo o sublime horrífico. Também obrigatório é The Inglorious Bastards, de 1978, e não só por causa da homenagem e das palmas que Tarantino lhe concedeu, considerando-o o seu filme de culto. Inserido num sub-género obscuro, o macaroni combat, é o apogeu das maravilhas artesanais e ostenta dentro o máximo de personagens subversivas que sempre complexificaram as suas narrativas. Por último, o segundo tomo dos seus filmes realizados no Bronx, com um orçamento bem decente, mas também com algumas das cenas de acção mais delirantes – Escape from the Bronx, já de 1983, uma época complicada para o cinema de ação italiano, produzido com a mente em Escape from New York, de John Carpenter. Especuladores imobiliários, ditadores clássicos e ditadores New Age, extermínios, reféns para trocas, moral sem moral, num tipo de relato onde a possível demagogia serve para ir de maneira directa e assustadora aos cernes das questões. E, com esta consciência e ousadia, a veia punk de Castellari agiganta-se, ajudada por toda essa iconografia (das roupas aos penteados) e comportamento altivo que os personagens ostentam orgulhosamente. Que importa que se vejam defeitos ou arestas não-limadas se a outra face da moeda é uma moral elementar, justiceira, e por isso certíssima? 

Filmes a rodos pelo mundo fora, do Mar Morto à União Soviética, e já nos anos 90, depois de mais um western apátrida com Nero, Jonathan degli orsi - mais um dos pontos altos de Castellari, com riscos e mergulhos, nomeadamente no grande meio natural e espiritual, no insondável cósmico, absolutamente inauditos na sua obra. Corbucci… Malick… Enzo… - começou a experimentar a televisão do mesmo modo que concebeu o seu grande cinema, primando sempre pelo domínio pessoal da encenação e dos meios, desprezando a linguagem Chapa-5 dessa indústria. Os anos 2000 foram para pequenos experimentos quase caseiros, entre amigos, alguns com temas fascinantes (Gli angeli dell'isola verde, que Enzo caracteriza como um western moderno de carácter ecológico, mas que infelizmente não passou do episódio piloto), terminando a carreira de realizador em 2010, num filme sintomaticamente chamado Caribbean Basterds (vénia ao Inglourious Basterds de Tarantino), utilizando as mais recentes tecnologias de som e de imagem, rodeado de jovens aprendizes, mas também de velhos cúmplices, que para ele não se importavam de trabalhar de graça nessas pequenas produções ou nas escolas de cinema onde Enzo partilha amiúde as suas experiências. 

Houve uma época em que o cinema foi pessoal e popular, onde a cópia serviu como molde para uma miríade de obsessões intransmissíveis, nas quais os desejos particulares e porventura inconfessáveis conseguiam achar eco no mais universal. Enzo G. Castellari, aventureiro de mil e uma noites e de mil e uma vidas, estará no Fundão para nos contar mil histórias e conversar a partir de um rol imenso de memórias inscritas tanto na mente como no corpo.  Era uma vez… um autor popular. 

NOTA: os títulos dos filmes a exibir nos Encontros encontram-se em inglês, pois são essas versões que serão mostradas.


[texto escrito para o catálogo dos Encontros de Cinema do Fundão 2025]