quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

 


Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia, de Hector Babenco, 1977

Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia é Hector Babenco por inteiro. Existem os bons cineastas, os corretos, os grandes cineastas, os mestres, e os cineastas únicos. Babenco, daqui, é absolutamente único, sem imitação possível e sem imitar ninguém, sem a danada da mentira do estilo, sem ânsias de reconhecimento e de filiação, livre, aberto à danação ele mesmo, incomparável, imprevisível, quer rode filmes falados em inglês ou americano no brasil, quer faça um filme como Carandiru só com o interesse de homenagear quem o salvou; sem desejos de prémios, de seleções oficiais, de qualquer tipo de louvor – escancarando a sua morte, as suas tripas e o que o corrói; a sua alma inquebrantável, a sua violência e doçura.

 Lúcio Flávio é obviamente um filme víscero, suado, desnudado, em primeira mão, no grau mais fervente e primevo, um pouco como o Abel Ferrara de Bad Lieutenant. Os corpos mexem-se destapados, pulsantes, inchados, inspirando e expirando em direto, em combustão furiosa como o motor de um bólide acossado ou fanado, sem a pressão do “ação” e do “corta” do realizador em comando. A intriga é direta, também ela bruta, embora com belas e subtis progressões e efeitos: a elipse do tempo que passa na prisão escancarada tenuemente na barba de Lúcio, o bebé revelado num êxtase calado e a possibilidade de um mundo novo e do milagre… a confusão entre oficiais e ladrões, essa impossibilidade da destrinça… o final com o sonho onde tudo é sonho ou pesadelo de uma realidade assumida sem amarras?

Mas o que mais choca será o planar metafísico do protagonista bem como o seu prolongamento em direção aos sentidos das formas e da montagem: a violência e a descarga inaudita que acontece quando um monte de metralhadoras são descarregadas sobre um caixão a descer para a terra, cortando corta para um corpo de um jovem a mutilar-se, são de uma ordem que escapa ao terreno e ao físico, ao dizível e ao lógico, e caminha nos sentidos dos segredos e das razões irresolúveis da existência, algo terrenamente impronunciável e jamais explicável, perfeitamente irracional mas sentido, vindo de abismos recônditos: homens a matar um morto, a matar a morte, e um jovem em flor, cheio de viço, a matar-se. Um Babenco infernal, mas tão terno como o olhar final de uma amada, de uma mãe com um filho ao colo, a amar sem sombra de dúvidas o criminoso da sociedade.