segunda-feira, 21 de junho de 2010
(…um certo “trabalho”, um certo momento, sem pedir desculpas, obrigado.)
Chantal Akerman – cineasta do corpo e do gesto.
“Ainda há pouco vimos na Cinemateca um antigo Dwan, um antigo Frank Lloyd, um antigo Vidor. O que descobrimos é que o cinema não é a arte do movimento – o movimento é sua técnica –, é a arte do movimento verdadeiro. O que o cinema redescobriu foram os gestos dos homens.”
Jacques Serguine
"Já nada acontece aos seres humanos, é à imagem que acontece tudo"
Serge Daney, sobre a televisão
Para pensar o fundamental do cinema de Chantal Akerman, o que julgo então ser a sua teoria e razão de ser, analisarei três momentos que considero serem decisivos na sua obra. “Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”, de 1975, sendo este o filme que irá constituir o centro da minha análise, mas também “Je, tu, il, elle “, logo do ano seguinte, 1976, e, por fim, um filme de 1993, “D'Est”.
“Jeanne Dielman”, monumental obra de mais de três horas, vai-nos deixar entrar na rotina de uma dona de casa, ao longo de três dias, apreciar as suas tarefas, a relação com o seu filho, a maneira como vende o seu corpo a homens, mas também iremos às compras com ela e a veremos a tomar conta de um bebé, entre tantas outras coisas.
Todo o cinema da realizadora Belga é assente, construído, através de um dispositivo formal fortíssimo, em que a fixidez da câmara – radicalíssima cineasta do plano, da composição e do tempo – nada mais está interessada do que ver, ou melhor, rever/redescobrir, o movimento dos corpos e dos gestos dos humanos.
Neste sentido, todo este portentoso cinema materialista, nada tem a ver com as vanguardas puramente formalistas que por esta década (a de 70) explodiam, e onde o homem ou não existia ou então era puerilmente vislumbrado numa dispersão estética à beira do histerismo, esse cinema politicamente engajado e com fome de provocação e de ruptura, que, volto a frisar, está claramente nos antípodas de Akerman, como dos Straub, por exemplo.
Essa coisa do “film is a gun” será sempre o oposto do cinema da Belga, porque ela filmará sempre “por”, “a favor de”, por amor e nunca contra.
Akerman está então mais próxima de um classicismo (embora, e isto também é fascinante, comungue de muitas das questões que enformaram o dito “cinema moderno”), no sentido da clareza do relato, da simplicidade (anti-simplista, essa simplicidade/complexidade), da solidez, da concisão e mesmo de uma vontade de contar coisas.
A frontalidade de Akerman (ausência de planos-picados ou contra-picados, nesse ponto de vista sempre à altura dos homens) , a forma como cada plano dura o que têm que durar para que se possa ver a tarefa ou acção que está a ser executada pela personagem, a insistência na pura rotina e na banalidade das tarefas (poder-se-ia dizer, “banalidade da ficção”) só nos faz ver o que já pensávamos que não interessaria – por precisamente pensarmos estar demasiado visto – ou seja, a maneira como um corpo se mexe, os gestos das mãos ou as expressão do rosto trabalham e mudam, como se anda, como se come, como se desespera, etc., uma infinitude cósmica de pequenas coisas que na realidade definem o humano e o tornam um “ser politico”. Chegar aí pela minúcia da representação, da paciência e do interesse fazem a singularidade da arte de Akerman.
Mas se por vezes (muitas, na minha opinião) Akerman e este filme chegam à emoção – e sem dúvida que chegam – esta não é arrancada às normas e estratégias da “ficção normalizada” e da psicologia, do aconchego onde o espectador se pode facilmente rever e pacificar, chegando então a ela (à emoção) de um modo mais complexo e grave – Bresson não andará longe – pois toda essa ausência de psicologismo faculta um manso desespero em filigrana que nos faz sentir um mal estar e um desespero que irão culminar na cena final do crime, nesse extraordinário plano em que Jeanne Dielman, sentada à mesa e com sangue na roupa, tem estampada em si toda a aflição do mundo. (Favor comparar com o último plano de “Singularidades de uma Rapariga Loira", de Manoel de Oliveira).
“O cinema mostra-nos geralmente pessoas, acontecimentos, lugares que não conhecemos; não há razão para isso nos dar a impressão de que são aqui, mesmo ao nosso lado”, Daney sobre o naturalismo, precisamente também aqui queria chegar.
Para ficar claro, não se trata de naturalismo puro, não se trata de realismo puro, muito menos algum tipo de maneirismo, trata-se sim de algo de incaracterizável e da ordem das origens: como se move um corpo, um andar, a beleza de tudo isso e a câmara como o único objecto que o permite captar – uma ciência do olhar, tal como o microscópio na investigação.
E se Akerman, muito através da violência do plano fixo e da atenção ao corpo, redescobre e nos dá a ver, de forma cristalina, o movimento dos Homens, será também importante constatar que também nos faz redescobrir um certo movimento do mundo. Tanto pelo fora-de-campo, em que uma infinitude e riqueza sonora entra no quadro e se faz matéria, ou a luz e fluxos vários que pelas janelas perpassam, no entanto, penso que o mais vital será mesmo a forma como podemos atentar ao que está no centro do plano e se distende até às bordas do enquadramento. Porque, sabemos, o mundo não se move como na ficção corrente e seus truques, ou na televisão, onde a cada fotograma algo de forçado, “extraordinário” e por vezes anedótico tende a acontecer. Aqui, no cinema de Akerman, é algo mais próximo da vida que se plasma na película, o extraordinário do não extraordinário, os hábitos e o passar do tempo, as relações, a exasperação, tudo sem os ganchos narrativos habituais – basta ver todas as cenas exteriores, a justeza do tempo, a distância do olhar, a compreensão dos ritmos, a respiração certa.
Tudo isto se pode dizer que, comungando de uma ética semelhante, se diferencia, por exemplo, dos já referidos Straub ou de Pedro Costa, mesmo de Philippe Garrel.
Sem o interesse “Straubiano” do engrandecimento das gentes comuns através da dicção da palavra e dos grandes textos, da pose e do épico; também diferente da maneira como Costa devolve a dignidade e toda uma beleza dos seres e do seu mundo a gente real, as suas memórias e forças; um pouco ao lado do modo como Garrel aponta a câmara, de fronte a quem filma, e faz desse gesto e consequência a gravidade e razão do seu cinema, Akerman partilha com eles, vigorosamente, essa ontologia materialista do olhar e do fluimento temporal, esse primitivismo que é a razão inicial do cinema – dar a ver bem visto, os Lumière, sempre.
Mesmo o uso da palavra, repare-se como em “Jeanne Dielman” ela é utilizada: nos momentos de maior acção/compenetração, ela é quase inexistente, sendo relativamente próxima ao cinema de Jacques Tati, usada como essencial ou nota de rodapé; pelo contrário, quando ela surge quase berborraicamente, é nos momentos em que só ali ela (a palavra) pode ser assim usada, nos encontros onde a comunicação é inevitável e as personagens a tomam como vital e, de certa forma, passível de catarse.
Existe um movimento dramático fortíssimo em “Jeanne Dielman”, por vezes da ordem do existencialismo, que têm a ver com a razão da ausência de um pai no filme – e que surge explicada numa carta de um seu irmão – que é o que faz mover, meio cega e meia surda, por vezes imparável, a personagem, numa atitude que lhe permita elidir um desespero latente. E todo este movimento vai em crescendo, mas numa total e impressionante surdina, que culminará, obviamente, na cena do crime, mas que se notará na fabulosa sequência em que Jeanne Dielman vai pela única vez à varanda de sua casa, funcionando essa tomada de ar como algo vivificante. A construção da sequência é particularmente notável: do fora para o dentro a decoúpage sublinha ainda mais o “tempo real” (num filme que vive nessa ilusão, e que condensa com um peso e uma densidade essenciais os blocos de tempo/duração que compõe os três dias) e os elos para dar a ver uma angústia e um sentimento de perda que fazem adivinhar que algo não acabará bem; como logo na cena seguinte, ela sentada e a campainha a tocar, pela primeira vez, duas vezes – ali, nesses momentos, é a alienação a tomar corpo.
Por fim, o pudor, a ética e distância de todo o filme, de cada plano e de cada som – que juntamente com a subtileza com que a elipse é trabalhada e amplia o todo de segredos e não-ditos – aparece como algo perfeitamente essencial e incomum. Note-se como o filme trabalha a curiosidade e desejo do espectador, nas cenas de prostituição, por exemplo, em que a porta se fecha sempre e nos deixa do lado de fora e nos ignora, até que se “abre” no último dos dias. Mas aí, nesse momento desconcertante e de uma urgência indizível, tudo é o contrário do habitual e do esperado, do apetecível, um mal estar que nasce da malaise da personagem – o oposto de uma certa pornografia das imagens (imagens no sentido amplo da imaginação) que faz por exemplo a “glória” de um Lars Von Trier, onde tudo nos surge escancarado. Toda uma ética em processo.
O mesmo com a distância, que à maneira de Brecht ou de Bressom, jamais ousa aproximar-se do que não é aproximavél, do interior complexo e indefinível das pessoas, do intimismo único. Apenas os percursos, os gestos, os corpos, precisamente.
“Je, tu, il, elle “, logo realizado após “Jeanne Dielman” é um filme onde Akerman leva ao paroxismo o seu interesse pelo corpo e pela sua fisicalidade, pela sua nudez (e obviamente não me refiro somente às cenas de sexo). Trata-se de uma obra em três partes distintas que são no entanto inseparáveis na sua lógica interna e orgânica. Começamos com uma mulher sozinha num quarto (Julie, a própria Akerman), uma voz off em que ela diz que teve de partir, e daí por diante vamos ter um desfilar de planos/quadros sensuais onde, por escrita de cartas e mudança do aspecto e organização desse espaço único e concentracionário, assistiremos a uma enfatização da pose, a uma utilização/exploração do corpo que se diria à beira da pantomina ou do lúdico, mas que a meu ver corresponde mais a esse desejo de constatação do primado do corpo e da carne, do íntimo, algo que já era importante em alguns momentos das suas obras anteriores. E veja-se que se formalmente a câmara se liberta um pouco, já temos ligeiríssimas panorâmicas que seguem um pouco a personagem pelo quarto, a frontalidade e a fixidez continuam a ser o credo da cineasta Belga e o dispositivo essencial para a sua empreitada, continuando a não existir qualquer rasto de “assinatura” ostensiva de linguagem, mesmo que aqui a luz adquira uma expressividade e uns contrastes que na obra anterior eram completamente apagados por um esbatimento da luz e do “logos” da técnica. O que não oblitera soluções e caminhos surpreendentes, como logo no plano inicial, com o prolongado foundou a negro e a voz off a imiscuir-se nessa escuridão – coisa próxima de alguns experimentos de Duras ou Godard, ou da “Branca de Neve de Monteiro.
Saímos para fora e para o segundo grande bloco do filme, espécie de road movie atípico, e o filme mudará. Ou seja, se por um lado as personagens possuem um nível de psicologia diferente dos filmes anteriores – já se notava no que Julie dizia em off no bloco anterior – e surgem mais expostas, porventura mais frágeis e em busca de algo, de um qualquer sentido, Akerman vai-nos pôr no centro de estímulos ópticos e sonoros puros (à maneira de Deleuze), num hieratismo permeável que se por um lado rasgam o filme e a sua lógica até então, surgem vigorosamente como mise-en-scène propulsora do estado de passagem, do sentimento de viagem que esse bloco transmite. E o tempo entra nos planos, literalmente, como na inadjectivavél e incaracterizável cena em que Julie e o camionista comem num restaurante e uma televisão explode de sons e rasgos de luz, em fora-de-campo, cúmulo então dos ditos estímulos visuais/auditivos – personagens defronte a todo um mundo de imagens e ruídos onde não sabem bem como reagir, e aí surge uma espécie de espanto contido. Algo também próximo do sensorial que, no entanto, nunca ousa descolar-se num enlevo qualquer, tudo permanece magnificamente sólido e centrado.
Vamos ter uma cena de masturbação, toda insinuada e em off visual, e a certeza de que o pudor e a inteligência da sugestão e da distância continuam centrais na ética e na estética da Belga.
Por último, o bloco final, em que Julie chega a uma casa e uma mulher a espera. Elas saúdam-se, comem, fazem sexo. O filme acaba. Nos gestos de saudação temos uma serenidade e alegria sincera e ao de leve. Sentadas na mesa e a comerem sente-se a pura mecânica de algo de vital. É nas cenas de cama e de sexo que todo um prazer em bruto explode e o “cinema do corpo” praticado por Akerman atinge alturas únicas e raramente igualadas. São corpos e desejos em movimentos viscerais, pulsantes, circulares, devoradores, animalescos, em que toda uma materialidade é posta em cena e sentida – o peso, as dimensões, as amplitudes de cada circulação, a pressão da libertação. São apenas três planos, que duram bastante, e ali vemos todas as potencialidades de um corpo, da ânsia e da carne, pressentindo-se também toda uma relação e passado. Elegante e justa volúpia porque enquadrada e derivada de tudo o que o filme têm para trás. Portentosa ode ao humano.
“D'Est”, realizado em 1993, viria trazer outro tipo de questões e de formas ao seu cinema, embora todas as questões de fundo, nomeadamente a inteireza ética, continuasse a ser inviolável. Acusado à altura por Jean-Luc Godard de fazer uma “estetização da pobreza”, penso no entanto que nada poderia estar mais longe da verdade. Aqui, como em todos os filmes dela, curtas-metragens incluídas, o que temos é um sistema formal fortíssimo, de aço, “Languiano” à sua maneira, que permite dar conta da matéria da cena e do mundo constantemente castrado pelo varrimento e pela escritura do enquadramento, sem deslumbramentos ou falsidades. Escritura – mas sóbria, lúcida, nada ostensiva e jamais dispersiva – que aqui surge várias vezes pela forma do travelling e que faculta percorrer e ver limpidamente uma grande e imensamente rica paleta humana que constitui as gentes de Leste, mais propriamente da Rússia pós-comunista. Travellings combinados com a dureza dos estáticos planos dos interiores, em que aí o olhar fica parado no intimismo do dentro.
Repare-se como a leveza dos movimentos de câmara parece por vezes fazer nascer um ascetismo que não faz parte nem de Akerman, nem das famílias do cinema em que ela se insere, mas é então preciso dizer que não se trata de algo da pura ascese, não há ali nenhuma metafísica ou Deus a pairar, sim uma delicadeza – sempre – e uma distância e ritmo interno ao plano que nos permite deter o olhar e percorrer o todo das pessoas e dos lugares, quase numa tridimensionalidade que fará corar todos estes novos filmes que se vêem com óculos.
Acto de revelação. A medida e o ser do travelling em Akerman, tal como o plano fixo, é o do redescobrimento do homem e da sua grandeza, por inteiro, esse gesto de dar claramente a ver o que já pensávamos não interessar, o que já tantas vezes olhamos que já nada distinguimos - um simples passeio descomprometido, uma espera na paragem do autocarro, uma criança leve e inocente, alguém a gerar música - e aqui sim, muito próximo da importância que tantos os Straub como Costa dão à maneira como se enquadra e engrandece o homem e a sua colossalidade. O Homem, o que remete para o fundo o contexto, o espaço, as datas. A câmara de Akerman só nos cura dessa patologia dos temas e dos debates, de “um tempo” marcado, entregando-nos uma espécie de eternidade, de suspensão cósmica, de força e de fragilidade. Uma questão de integridade, de planos (que permanecem como espaço resistência, de ontologia, de técnica e de respeito por uma matéria que está no mundo antes de se apontar a câmara e vilipendiá-la, que é o que acontece a quem não pensa o plano como algo do cinema, com a profundidade, o enquadramento, o fora-de-campo, etc.) e não de imagens (os tais simulacros, os derivativos da publicidade, os híbridos da multimédia, etc.). O resto é saber filmar, estar à altura de. Sempre foram estes os fundamentos do cinema de Chantal Akerman.
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2 comentários:
Que post fantástico!
Blog excepcional!
Parabéns pela escrita e o bom gosto nos filmes analisados. Voltarei mais vezes.
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