sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
Um dos últimos momentos do "Get Out of the Car", quando já nos chamados créditos – que nos grandes filmes nunca costumam ser da maneira habitual – Thom Andersen agradece aos artistas. De Dylan a Zappa passando com certeza pelos iguais artistas de rua que durante a metragem e a sua vivência espalham fúria e ternura nas paredes ou em portas ou em qualquer coisa que sirva. "Get Out of the Car" é um filme de artistas. Do rock''n''roll que explodia em "--- ------- / SHORT LINE – LONG LINE" para o fora de campo em que descarnadamente aqui a escutamos, do anonimato artístico dos painéis supostamente publicitários até a um sem fim de graffitis ou de pintura inclassificável que ostenta qualquer superfície votada ao esquecimento, "Get Out of the Car" é, como "Los Angeles Plays Itself "uma carta a uma cidade conhecida, misteriosa e amada, de relação complexa, mas também um resgate de fantasmagoria, de margens, de tradição, culturas próprias e primitivas, originais, do que de mais belo há num tempo e espaço e que arrisca a passar sem rasto. Dos lugares de ninguém que são captados com a mesma paciência, trabalho e saber que a máxima dignidade requer. Do solo aos céus tudo o que se esbate nos fundos, nas profundidades, nesses lindos azuis e nas nuvens são como que um agarrar de memória face ao esquecimento e à ignorância. Dádiva e reconhecimento, obviamente
E agora começando pelo início mesmo, a obra logo se expõe como 16 mm. O que é fundamental e se faz centro dos sons e das imagens, implacavelmente. Uma matéria fortíssima num filme onde praticamente não se encontram pessoas mas que só por elas poderia existir e onde se sentem a cada frame. Filmado como se filmaria carne. Os artistas e o artista do lado dos pobres que trabalham e suam e tornam isto mais habitável – Thom Anderson. Porque compreendeu a história ou o legado ou o maravilhoso desse tipo de película e porque investiu nesse lado precioso das granulações, dos contrastes, dos escuros, essa espécie de alma e cheiro que os heróis – os heróis como Garrel ou Pennebaker, por exemplo – utilizaram de maneira única. Também isto, esta arte, em vias de extinção. E volta-se ao "fazer" e ao "como fazer" e ao embate com o meio, ao "como se trabalha" e ao "não querer enganar" por nada deste mundo, coisas assim. Os planos fortes, com peso, estrutura, lógica, concisão, bruteza, parecem e são com certeza fruto de uma imensidão de pensamento e intuição e reflexão – ou seja, cravados sobre imenso tempo – mas não paradoxalmente e em lógica e conformidade, todo o filme está nu e deixa ver o modo como foi feito, técnica, forças, fraquezas, dificuldades – e não só por umas certas vozes em of o literalizarem. É um manual de pura prática cinematográfica clássica e artesanal e por aí um deleite como o delicioso som final. Belo filme materialista, belo filme humanista.
"Los Angeles Plays Itself " é um filme de arqueólogo bem mais próximo de Straub do que de Eisenstein ou Godard ou Scorsese. Olhar amplo e total, material e abstracto. "Los Angeles Plays Itself " é um filme que ama e odeia. Artesanato sim, mas com todo o rigor e vigor. Concretíssimo e claro temperamental pelo espaço do amor, ou do seu contrário. Uma cidade, Los Angeles sempre chamada e nunca L.A que isso é para os filmes ou para os "filmes filmes". A sua história através dos filmes e a história dos filmes através dela. Relação obviamente problemática, cheia de impasses, relação tortuosa. Thom Andersen, o cineasta, orquestra tudo numa voz of pacificada que logo de arranque se percebe unicamente regida pelo ímpeto e pela singularidade das paixões. Sobre o cinema da cidade de cinema mas muito ou sobretudo sobre a cidade em si tratada como mundo dentro de um mundo, e nem sempre estará a falar de fitas. Logo movimento com força histórica, social, politica que ora convoca o cinema, ora o despreza, o culpa, agradece, reconhece-lhe importância ou perfeita inutilidade. Cinema que tantas das vezes serve para provar que Los Angeles é muito mais ou tudo mais, uma verdade espacial, arquitectónica, humana. Ficção que ironicamente ou não se volve no mais puro e acabado documentário através dos tempos que as máquinas de película a percorreram e a varreram.
"Los Angeles Plays Itself " é então muito mais ficção que documento e logo documento de uma sensibilidade. Thom Andersen expõe a sua visão despida da cidade, o seu gosto, os factos de pesquisa, monta as sequências filmicas que lhe tocam e as que não gosta, dá um espaço enorme à ambiguidade – quantas vezes não sabemos se ele gosta ou não de certo filme, certo excerto... - quase insulta, quase goza, perde-se de amores por Kent MacKenzie único "The Exiles", que leva aos píncaros o antigo "Gone in 60 seconds", reconhece e engrandece os cineasta marginais dos anos 60. Que também vibra com Billy Wilder.
...e por mais um que outro, é possivelmente injusto, até maniqueísta, exagerado ou incompreensível, hermético...ou simplesmente mostra, cientificamente friamente, deixa-nos fazer o juízo e lembra que todo o filme toda a obra deve falar por si, o resto é treta desculpas para a mediocridade ou teorias espampanantes.
Cidade mais do que encenada mas que também apropriadamente se sabe encenar. Movimento dialéctico.
Mas finalmente nada disso é problema pois as suas ideias provam que está ali carne e osso, o que ali se diz é justo porque é como o cineasta é. E nunca por nunca há lampejo de vampirização, antes toda a comoção que desfaz a neutralidade ou o aproveitamento e que precisa de todos os filmes e mais alguns para provar o seu amor infindável a esse mundo.
Implacável ética de verdade. E se a verdade é coisa difícil de circundar ou de acreditar ou...pelo menos sabemos que perpassa ali a verdade de um homem e que mesmo que possa chocar é a verdade movida pela incendiária chama dos fogos do coração. Filme do coração, tão limpidamente declarado e directo e justo e em primeiro grau como a tocante forma como todo e qualquer pedaço de filme e de visão é juntada sem hierarquia ou norma, de autor, de história, de classicismo ou modernismo, de "qualidade" ou de fanfarronice. Cinema todas as histórias e uma história só, disse-nos Godard. A de Andersen e a das dezenas de cineastas actores tudo...as nossas que por lá passam fantasmagoricamente. Cinema e bocados cortantes de vida dos interlúdios que remetem para qualquer lado.
Pequeno grande acto de terrorismo subversivo ao seu modo. Pequeno e grande, bela imagem para este pequeno enorme filme. Assim: agarra-se na produção histórica da grande máquina instalada na sua cidade, e juntando outras coisas pequenas, agarra na sua humilde máquina, a do cineasta, e faz nascer choques, relações, desejos...
Quanto pode essa singela máquina dissidente em relação com a gigantesca? Alguma coisa? Algo? Sucintamente: Pode muito. Pode tanto como. Pode tudo.
Filme teórico poderia ser, mas sem teoria alguma, sem nada a provar, antes olhar lúcido e desarmado de esperteza, encantado e desencantado, sem ilusão e extremamente sensualista no que monta e no que filma. Corpo inteiramente orgânico moldado e sempre alterado pelas entranhas e pelo íntimo. "Los Angeles Plays Itself " urge nessa ética de todo o romanesco e poderia substituir mil teses ou mil catálogos académicos de supostas superioridades odes autorísticas temáticas conceitos quaisquer. Tudo a um nível, reorganização de sentido. Sentido.
Gesto utópico, o filme apetece-lhe continuar para sempre e o "intermisson" que mete pelo meio pede uns quantos mais. Gesto desmesuradamente utópico, diria. Gesto que lhe apetece muitos mais filmes, muitos mais planos, corpos, gente, atmosferas como atmosféricos são todos aqueles filmes negros que em Los Angeles existiram. Daí permeável a um romantismo subliminar, coisa extremamente romântica pareceu-me, que pode derivar de imensos lados . "Los Angeles Plays Itself " filme inacabável.
sábado, 12 de fevereiro de 2011
Hawks/Vidor
Alguma coisa tem forçosamente de acontecer e de ser vista para além do abalo da tela quando se assiste a "Today We Live" de Howard Hawks e "The Big Parade" de King Vidor um a seguir ao outro e em ecrãs de jeito.
Hawks une-se a Faulkner. As ambiguidades sexuais, os desejos e a disseminação das normas e das farsas são ultrapassadas a cada impulso. Um trio onde dois são irmãos, o outro vem tão de trás que irmão parece e o desconhecido que chega de longe e rouba o coração ao vértice ou ao vórtice que tudo despoleta e que tudo reordena.
Muito ou o que interessa se passa nas águas nos ares e nos tempos e lugares onde aquela mulher não pertence ou onde os ecos continuam a ecoar. Tinha que ser ou assim foi mesmo, uma tragédia.
Ficando assim é provavelmente um dos cúmulos do lirismo do romantismo e da beleza celeste de todos os Hawks, onde o olhar parece olhar de um lugar próximo ao éden ou onde tudo era ainda possível e essas refrações esse imaculado faz-se coisa tão poderosa e visível e sensível como qualquer um dos duelos que ele orquestraria mais lá para a frente pelos velhos oestes. Tantos anjos e tanta leveza e peso como os anjos com asas e os sem asas daquele filme que todos sabemos...
King Vidor é King Vidor. Como sabemos que uma árvore é uma árvore. O amor é o amor e o idiota mimado que nem trabalhar queria e muito menos ir para a guerra foi saber o que ele é em terras e em manejos que não os seus. Fez-se homem e sentiu o que sei que nunca antes tinha sentido. Vidor nota-se tinha sede de tudo tinha sede de amor e irracional pulsões terra água sangue e aqueles céus como no esplendoroso final do reencontro ou do milagre.
E essa sede conjuga-se e faz-se igual à sede e à fome devoradora que o americano sente pela francesa. A despedida que para sempre parece é individual e sufocante, mas algo disto: eles comem-se qual animais, esfolam-se, fodem com os olhos e o toque as unhas e a latência aquela vibração que não pode explodir a não ser por esse olhar pelos nervos pelo sangue pelo resto que sabemos. Atiram-se botas, pedaços de sei lá o quê, cuspe suor cabelos pêlos tudo. Vidor esfomeado, Vidor que filma uma mãe a dizer ao filho - que a cabeça no colo dela tem - para ele percorrer montes vales e montanhas o que for preciso para não deixar escapar o que mais ama como a perna lhe escapou. Vidor sem medo da infância essa inocência regresso assombrado, Vidor sem medo das emoções ou do patético que jamais o será.
Hawks a borrifar-se como sempre para os efeitos de assinatura maneirismos e a chegar à mais acabada serena cândida das belezas.
Vidor foi à guerra - em todos os sentidos como Fuller - à guerra da vida guerra mítica das paixões guerra mesmo, e vibra sobre a película como essa arte prometia vibrar tão de dentro.
Alguma coisa tem forçosamente de acontecer e de ser vista para além do abalo da tela quando se assiste a "Today We Live" de Howard Hawks e "The Big Parade" de King Vidor um a seguir ao outro e em ecrãs de jeito.
Hawks une-se a Faulkner. As ambiguidades sexuais, os desejos e a disseminação das normas e das farsas são ultrapassadas a cada impulso. Um trio onde dois são irmãos, o outro vem tão de trás que irmão parece e o desconhecido que chega de longe e rouba o coração ao vértice ou ao vórtice que tudo despoleta e que tudo reordena.
Muito ou o que interessa se passa nas águas nos ares e nos tempos e lugares onde aquela mulher não pertence ou onde os ecos continuam a ecoar. Tinha que ser ou assim foi mesmo, uma tragédia.
Ficando assim é provavelmente um dos cúmulos do lirismo do romantismo e da beleza celeste de todos os Hawks, onde o olhar parece olhar de um lugar próximo ao éden ou onde tudo era ainda possível e essas refrações esse imaculado faz-se coisa tão poderosa e visível e sensível como qualquer um dos duelos que ele orquestraria mais lá para a frente pelos velhos oestes. Tantos anjos e tanta leveza e peso como os anjos com asas e os sem asas daquele filme que todos sabemos...
King Vidor é King Vidor. Como sabemos que uma árvore é uma árvore. O amor é o amor e o idiota mimado que nem trabalhar queria e muito menos ir para a guerra foi saber o que ele é em terras e em manejos que não os seus. Fez-se homem e sentiu o que sei que nunca antes tinha sentido. Vidor nota-se tinha sede de tudo tinha sede de amor e irracional pulsões terra água sangue e aqueles céus como no esplendoroso final do reencontro ou do milagre.
E essa sede conjuga-se e faz-se igual à sede e à fome devoradora que o americano sente pela francesa. A despedida que para sempre parece é individual e sufocante, mas algo disto: eles comem-se qual animais, esfolam-se, fodem com os olhos e o toque as unhas e a latência aquela vibração que não pode explodir a não ser por esse olhar pelos nervos pelo sangue pelo resto que sabemos. Atiram-se botas, pedaços de sei lá o quê, cuspe suor cabelos pêlos tudo. Vidor esfomeado, Vidor que filma uma mãe a dizer ao filho - que a cabeça no colo dela tem - para ele percorrer montes vales e montanhas o que for preciso para não deixar escapar o que mais ama como a perna lhe escapou. Vidor sem medo da infância essa inocência regresso assombrado, Vidor sem medo das emoções ou do patético que jamais o será.
Hawks a borrifar-se como sempre para os efeitos de assinatura maneirismos e a chegar à mais acabada serena cândida das belezas.
Vidor foi à guerra - em todos os sentidos como Fuller - à guerra da vida guerra mítica das paixões guerra mesmo, e vibra sobre a película como essa arte prometia vibrar tão de dentro.
Maravilhoso, maravilhoso, era que os realizadores voltassem a ser perfeitos anónimos, trabalhadores, operários...coisas assim.
Como no tempo em que o cinema era grande, imensamente grande como não mais foi. O contrário desse vedetismo de hoje, essas grandes estrelas ainda mais importantes e brilhantes do que as estrelas de antigamente, que atravessam mares oceanos e continentes para muito mais do que os filmes - o que importa, o que sempre importou - se auto-promoverem e se exibirem. Um lixo, um nojo...
Que ao amor voltássemos...
E depois, depois, que os jornalistas de filmes - a outra palavra, sublime palavra, acabou - não façam birras por esses humildes ou envergonhados ou taberneiros os arruaceiros ou simplesmente, repito em voz alta, trabalhadores, não falarem, não vomitarem intenções ou conceitos ou teorias, não irem aos festivais, festas, etc...coitadinhos dos "jornalistas de cinema" que não podem tocar nas suas estrelas...
E preparem-se, preparem-se para lerem muitas vezes a palavra "megalómano". Vem aí "Merda"...
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
Mario Monicelli
Até agora dois filmes de Mario Monicelli vistos. "Guardie e Ladri" e "I Compagni", dois objectos à primeira vista tão diferentes, interessa-me uma e a mesmíssima coisa. No primeiro, o filme com Totó, suposta comédia onde eu talvez nunca tenha visto uma plateia a rir-se tanto e com tal intensidade – e verdade pareçeu-me, embora eu talvez só tenha sorrido ao de leve aí uma ou duas vezes – como no segundo, suposto neo-realismo, filme de protesto ou coisa assim, uma e a mesma coisa para mim. Não vou conseguir bradar adjectivos absolutos, o que ali se passa é de outra dimensão. Quero dizer que são dois perfeitos e acabados documentos. Precisamente que documentam um tempo, lugares, modos de vida, humanos e coisas do momento e dos tempos todos. "Guardie e Ladri" trabalha o enquadramento e tudo o que nele concretamente lá está, das ruínas aos descampados às casas, para nele inserir a comoção o calor e os sentimentos de pessoas ternas e complexas e simples mais que simples. Solidão é no filme palavra cortante como o frio. Calor-frio e é essa a bela temperatura do filme. E se trabalha "realisticamente", ou lá está, "neo-realisticamente", Monicelli furta-se a esse campeonato para inserir nesse realismo uma atmosfera perto do onirismo ou do sonho. È aquele preto e branco com árvores estranhas ou o que sobra de céu quase a diluir-se até às bordas. Ele sabe que a "realidade" tem muito que se lhe diga e que a difusão é coisa séria.
"I Compagni" leva ainda mais longe, muito mais longe, as leituras de realismo extremista. Adultos e meninos a irem ao trabalho pela manhã, os trabalhadores em massivo grupo, a entrada na fábrica e os breves preparativos como breves são as pausas, a violência das máquinas e os rituais perigosos e repetidos ad-infinitum. "How Green Was My Valley", tantas vezes me veio à memória....Planos fortes, densos, com uma carga de zonas escuras e de sujidade que perpassam qualquer definição ou aplicação do tal movimento que os Italianos foram mestres nessas épocas. É já outra coisa, é o amor aquelas almas e por isso um potente compromisso ético-estético para lhes fazer jus. E é, não uma ilustração, isso fica para os medíocres, sim um rasurar, um escavar, no lado mais sujo e corrupto e fundo e falsamente ambicioso do humano. Monicelli vai tão ao fundo que o que encontra e o que vê é assim tão contrastado e tão podre como a ânsia de poder e de dinheiro que certos seres humanos podem ter. E se falei em planos não posso deixar de referir: aquele que do cimo do comboio faz panorâmica para a direita e vai ter com as pessoas, atravessando no percurso um nevoeiro inaudito e sumptuoso (pronto, rendo-me aos tais adjectivos); o último plano também de comboio, a despedida, grão lírico que o cinema do Italiano sempre parece estar predisposto a integrar. E outro à entrada da fábrica, em pasmosa sequência, seguindo grupos e motivações, também o nevoeiro cortando. Planos, só planos e nada menos do que planos..
E nos dois filmes uma extrema atenção a qualquer humano, seja naquele olhar lindo e apaixonado que o filho do "ladrão" deita à filha do "policia". Ou então, como disse o Mário, a dignidade e o espaço oferecido e o não reduzir a adereço qualquer humano que apareça em "I Compagni".
Até agora dois filmes de Mario Monicelli vistos. "Guardie e Ladri" e "I Compagni", dois objectos à primeira vista tão diferentes, interessa-me uma e a mesmíssima coisa. No primeiro, o filme com Totó, suposta comédia onde eu talvez nunca tenha visto uma plateia a rir-se tanto e com tal intensidade – e verdade pareçeu-me, embora eu talvez só tenha sorrido ao de leve aí uma ou duas vezes – como no segundo, suposto neo-realismo, filme de protesto ou coisa assim, uma e a mesma coisa para mim. Não vou conseguir bradar adjectivos absolutos, o que ali se passa é de outra dimensão. Quero dizer que são dois perfeitos e acabados documentos. Precisamente que documentam um tempo, lugares, modos de vida, humanos e coisas do momento e dos tempos todos. "Guardie e Ladri" trabalha o enquadramento e tudo o que nele concretamente lá está, das ruínas aos descampados às casas, para nele inserir a comoção o calor e os sentimentos de pessoas ternas e complexas e simples mais que simples. Solidão é no filme palavra cortante como o frio. Calor-frio e é essa a bela temperatura do filme. E se trabalha "realisticamente", ou lá está, "neo-realisticamente", Monicelli furta-se a esse campeonato para inserir nesse realismo uma atmosfera perto do onirismo ou do sonho. È aquele preto e branco com árvores estranhas ou o que sobra de céu quase a diluir-se até às bordas. Ele sabe que a "realidade" tem muito que se lhe diga e que a difusão é coisa séria.
"I Compagni" leva ainda mais longe, muito mais longe, as leituras de realismo extremista. Adultos e meninos a irem ao trabalho pela manhã, os trabalhadores em massivo grupo, a entrada na fábrica e os breves preparativos como breves são as pausas, a violência das máquinas e os rituais perigosos e repetidos ad-infinitum. "How Green Was My Valley", tantas vezes me veio à memória....Planos fortes, densos, com uma carga de zonas escuras e de sujidade que perpassam qualquer definição ou aplicação do tal movimento que os Italianos foram mestres nessas épocas. É já outra coisa, é o amor aquelas almas e por isso um potente compromisso ético-estético para lhes fazer jus. E é, não uma ilustração, isso fica para os medíocres, sim um rasurar, um escavar, no lado mais sujo e corrupto e fundo e falsamente ambicioso do humano. Monicelli vai tão ao fundo que o que encontra e o que vê é assim tão contrastado e tão podre como a ânsia de poder e de dinheiro que certos seres humanos podem ter. E se falei em planos não posso deixar de referir: aquele que do cimo do comboio faz panorâmica para a direita e vai ter com as pessoas, atravessando no percurso um nevoeiro inaudito e sumptuoso (pronto, rendo-me aos tais adjectivos); o último plano também de comboio, a despedida, grão lírico que o cinema do Italiano sempre parece estar predisposto a integrar. E outro à entrada da fábrica, em pasmosa sequência, seguindo grupos e motivações, também o nevoeiro cortando. Planos, só planos e nada menos do que planos..
E nos dois filmes uma extrema atenção a qualquer humano, seja naquele olhar lindo e apaixonado que o filho do "ladrão" deita à filha do "policia". Ou então, como disse o Mário, a dignidade e o espaço oferecido e o não reduzir a adereço qualquer humano que apareça em "I Compagni".
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
Blake Edwards, cineasta de corpo inteiro.
Days of Wine and Roses.
- As elipses e a concentração. Uma criança que nasce do trio protagonista – homem, mulher, álcool – do aparente nada. Que cresce. Que eleva à tragédia o destino dos coitados apanhados pela bebida. Toda a expressão do tempo que destrói e das marcas que se instalam no seu último plano: "pareceu-me ouvir a mãe". Uma criança, simplesmente.
- Os espelhos. Ou os reflexos. Como quando Lemmon se olha à entrada do bar e vê o homem que ainda não conhecera/reconhecera. A outra face, outra vida. Ou todos os espelhos literalmente ou os espelhos dos outros e nos outros. Distorção, dilaceração e destruição em caleidoscópio. Vertigem abismo. Um fatalidade.
- A cena em que Lemmon volta de Houston despedido do trabalho e pronto a enfrentar-se. É preciso ser um grande cineasta para num só plano, fixissimo, em ligeiro picado, de frente enquadrando e enfrentando igualmente o casal, os dali não lhes dar saída, permitir virar a cara, abafar o óbvio.
Uma emergência, sufoco, saber de frente - como a câmara está implacavelmente em frente - que caiu a falsa protecção ou a mentira, a farsa.
- E daqui para o todo. A dimensão dramática. A progressão avassaladora do récito em comunhão com a realização assustadoramente camaleónica de Edwards. A sujidade rasurada do preto e branco, a desolação dos espaços, a tristeza e melancolia daquele mundo. A criança a chorar, a mãe a ir ao seu quarto, o pai a beber mais um copo da estante que enquadra o plano – da planitude para a profundidade do campo: estante, copos, garrafa, pai, porta, mãe, criança, quarto. Do terrível vício à infância vilipendiada.
- O momento fulleriana das confissões e centelhas acendidas à beira mar - "Pickup on South Street" pareceu-me, pareceu-me – a garrafa que cai na água em raccord ou embate com a cena dos desenhos animados em ruído que a televisão transmite no momento da tentativa de salvação do homem à mulher. Dos líquidos às electricidades.
- O lirismo fulminante e fugaz da brincadeira no palheiro. A procura da garrafa nos vasos de plantas – é preciso ver esse avançar do furacão em desespero e esse avançar da câmara com ele, em prodigiosa sintonia raivosa, letal, para se perceber o que deve ser o trabalho de um cineasta – dar a ver e a sentir. O máximo de peso e a justeza plena de onde se olha. Que linguagem aquela?
- O segredo dos grandes, dos maiores dos maiores: Preminger, Hawks, Losey, Walsh, Ray, Huston, Siegel, Fuller, Rivette, mais alguns.
- O plano final. Rua, janela, Lemmon, Lee Remick a desaparecer. O "Bar" em letreiro luminoso instalado/estourado no rosto e no corpo e de certeza na alma. Sem retórica alguma. Contracampo: a imagem do que já não voltará a ser. Perdição.
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
O QUE É PROGRAMAR UMA CINEMATECA HOJE?
Poderia escrever sobre a moda dos documentários, ou dos documentários documentários, os documentários de prestígio feitos por quem não tem a mínima noção do que é forma em cinema, estética, ética. "Autografia", o objecto (não sei o que lhe chamar, mas há coisas piores por aí...) feito por Miguel Gonçalves Mendes nada sabe do que o cinema foi, do que pode ser, do poder incomensurável que a câmara e a montagem podem possuir frente a uma realidade e a um homem, muito menos sabe de distâncias, de espaço, de qualquer coisa da ordem do carinho pelo que filma. Apenas um bruta montes, como no abjecto momento em que Mário Cesariny, o poeta por MGM vilipendiado, se assusta com a câmara que lhe pretende entrar pelas narinas dentro e se tem que desviar. Tudo, mas tudo, o que naquela longa dispersão se passa é absolutamente informe, e que os especialistas e os programadores da moda vejam nisto qualquer coisa – alguma coisa para além do interesse evidente de Cesariny – nada mais pode ser do que estupidez ou interesses. Ou as duas. Mas há pior.
Pior muito pior são os trechos de outro pretenso realizador – aspas tantas aspas – que também misteriosamente se está a impor em certos círculos improváveis e os seus filmes passam onde ele quer, mesmo nos espaços outrora de resistência e memória, aqui no burgo. Bruno de Almeida e o seu "The Lovebirds" já é ficção, tanta ficção que se vomita, puzzle de histórias e de personagens que não existem de maneira alguma. Mas o problema nem está aí, Bruno de Almeida, pretenso realizador, desconhece igualmente e contundentemente qualquer noção de espaço, de distância, dos tempos, de bom gosto ou, melhor ainda, do que é a vida e o mundo e de como tudo isso pode ser fortemente ou subtilmente ou visceralmente captado pelo cinema. De abjecção em abjecção, a câmara de Bruno de Almeida torna-se num instrumento hediondo, no mais fútil e perigoso dos instrumentos e se o cinema tivesse começado assim ou fosse só assim, qualquer coisa assim, era a mais nojenta das artes, ou, claro, não era arte nenhuma. O homicídio de uma prostituta e a cena de sexo anterior, todos os grandes planos, cortes abruptos de plano geral para as caras de um modo tão grosseiro, feio, inacreditável que apetece partir com aquilo tudo. Lugares belos que pela câmara e o olhar adoptado pelo pretenso realizador são transfigurados nos lugares mais horrendos do mundo, homens e mulheres, umas bonitas outras menos que interessa, igualmente tornados monstros pela objectiva monstruosa de Bruno de almeida. Alguém que quer ser Scorsese, provavelmente Altman ou Anderson, mas que não tem resquício de talento e, muito pior, de humildade. Alguém a querer impor-se realizador, enciclopédia de truques e de cinema, copista de um modo de fazer, um feito pobre de ânsia moderna ou coisa assim, mas que é absoluta nulidade ofensiva e pretensiosa, cai no risco de neste meio ganhar o título de autor – este mundo de autores...outra bela palavra – objecto de cinemateca. Mas há pior, sei que há pior.
A pior coisa - aqui sim, não me apetece mesmo chamar-lhe filme - que vi nos últimos largos tempos, poderia até, se quisesse engavetar, dizer em todo o cinema português, é "A Espada e a Rosa", de João Nicolau. Formado nas ciências, nota-se pela verborreia que sai pelas bocas dos tipos que Nicolau trata como bonecos ou como anormais, dissipa assim qualquer dúvida que as curtas-metragens anteriores tinham instalado quanto ao seu estatuto como realizador – uma fraude, uma tão grande fraude. "A Espada e a Rosa" funciona, melhor, não funciona, em três movimentos ou em três espaços. Leia-se, sem movimento e sem espaço, "A Espada e a Rosa" não existe. Tentemos: no primeiro movimento apanhámos um tipo rico, burguês, infantil, inchado, dos que provavelmente nunca passaram por dificuldade alguma e que se chateiam pelo luxo e pela boa vida, apanhamos cientistas e as conspirações que vão alastrar ao todo como doença ou capricho insuportável, e logo aquilo que define cada plano – ou o que deveria ser um plano, obviamente Nicolau nunca fez um plano na vida e o que o anima são imagens e a brincadeira que este gadgets lhe podem proporcionar – ou seja: tem obrigatoriamente que acontecer sempre qualquer fricção, qualquer gag, qualquer pretenso insólito, qualquer palhaçada que quanto mais estranha ou exótica se torna, melhor.
Ironia mais burguesa do que a burguesia.
Nicolau jamais é capaz de escutar um silêncio, um suspiro, lidar com o nada e aceitar o nada ou a presença do mundo, a comoção de um actor. Para Nicolau qualquer imagem ou acção ou o que quer que seja tem que estar macaqueada de alguma forma, ou por uma música, uma dança, o horrendo e orgulhoso vocabulário tornado geracional que só pode ser o seu. Fala-se de tristeza, utopias e perdição, mas o que transparece e se impõe é a referida burguesia que nunca passou de um copo de leite a querer fazer-se aventureira e transgressora. Primeira das muitas cenas execráveis: um acidente de táxi e uma espécie de dança dos espertinhos com sangue, espertinho, a palavra mais adequada para tudo isto.
Segundo movimento, alto mar a bordo de uma nau:"A Espada e a Rosa" funciona com bonecos, bonecos de sonhos de piratas, marionetas, já se disse, onde Nicolau as orienta a seu belo prazer, supostamente protegido pelo lado freak da narrativa, pela suposta originalidade de criativo de agência publicitária, de menino génio pronto a ser posto no pedestal da próxima grande coisa qual Salaviza e os seus travellings porno-estetizantes (Daney, continuas aqui), o futuro do cinema português, o novo que nunca foi visto. Não é pelo humor que não existe que "A Espada e a Rosa" é abjecto, provavelmente também não o é pelo facto de Nicolau não ter a mais pequena noção do que é "mise-en-scéne", enquadramento, timing, montagem, coerência ou estilhaçamento, qualquer sentido formal. Sopa de mixórdia audiovisual, cores de loja de guloseimas. É sobretudo , insisto, essa vontade de menino mimado de fazer acontecer a cada segundo algo supostamente inaudito, seja um irromper musical, seja um hieratismo estúpido de qualquer um dos bonecos ou de todos ao mesmo tempo, o exotismo de algo fora do contexto que pode ser uns chineses, umas brasileiras ou a tão boa comida que por lá se come. Parêntesis para nova abjecção: o número musical em inglês e português: "Fuck me", "Vêm foder"; como tudo o resto desse misturar de línguas (do francês ao alemão...) para ter piada ou para confundir ou para pôr questões sobre o off ou sobre a desorientação tem o vigor e a graça de um sketch TVI.
Nicolau diverte-se, para ele o cinema é diversão e brinquedo de menino rico de boas famílias, a coreografar assaltos e a filmar monitores, efeitos de magia, coisas "fora", diferentes, essa poética do kitsch e de uma liberdade que mais não está do que completamente aprisionada por essa esperteza que tudo permite levar à frente e com tudo gozar, despir pessoas para lhes ver o cu e as mamas e o resto e para aí, no terreno da liberdade de jovem génio da genial e imprevisível e "rebelde" "O Som e a Fúria", bater a sua punheta interdita, sonhada talvez lá por debaixo do irresistível mundo dos espelhos do cinema e dos iogurtes.
De movimentos em movimentos saimos definitivamente da nau e vamos ter pena de José Mário Branco e de Luís Miguel Cintra, tratados ao nível da ralé e da escória que anda pelo todo. Vamos ter algo em animação, longa como tudo o resto, pretensiosa como tudo o resto, sem forma como tudo o resto, emboscadas, reféns e bombas, vamos ter um travelling por uma floresta em que a câmara se solta, qual Apitchapong ou Gus Van Sant, que de tão contrário a qualquer fisicalidade faz pena. Faz rir. Objectivo cumprido? De Monteiro (já lá vou) a Wes Anderson o passo é proporcional à estupidez e ao desejo de rebeldia de menino do coro, maria vai com as outras, cordeirinho, e o que acontece pelo final é o que acontece pelo todo, onde a nulidade cinematográfica casa gloriosamente com a nulidade humana, com a nulidade de qualquer tipo de ontologia, não só do cinema, como, principalmente, do lado do real e da vida. O artificio ou o falso não salvam isto por que isto é da ordem da superioridade, o tal talento sem limites que acima de tudo e de todos se coloca e que com tudo se permite gozar, exceder, reverter, masturbar.
Fórmulas matemáticas, palavreado da física ou da química de rato de internet, cervejas e vinhos vitaminados, questões de honra e de traição tratadas com a falsidade e o embuste que rege Nicolau. João César Monteiro é o que quer viver aqui, como nas curtas-metragens anteriores, digam o que disserem. Mas Monteiro era uma arte que só de muito longe e de muito escuro, provavelmente de debaixo da terra, se deixava entrever, onde as várias ordens, da infância ao sublime terra e água ao que quer que seja, se tornavam corpo uno corpo de mistérios e de fatalidade, mundo bruto homem inteiro. Indecifrável.
Nicolau quer mostrar que Monteiro hoje só pode ser outra coisa ou que hoje em dia provavelmente faria isto , quer virar ao contrário e fazer tábua rasa da magnífica memória dos Tourneur, de Walsh, de King, etc. Quer ter a candura e o romantismo terminal de um Manuel Mozos ou os rasgos de Miguel Gomes e cai passo a passo no ridículo. Nicolau vira o feitiço contra o feiticeiro e nada mais faz do que profanar tudo isto e ao mesmo tempo expor claramente a idiotice de uma parte geracional, espécie de família, a sua, com certeza, e finalmente a inutilidade de tudo isto. Não há som, não há imagem, pretenso raccord que não seja inútil. Imaginado António de Macedo elevado ao paroxismo.
Tenho que o dizer: nem me importo muito com o dinheiro gasto neste lixo ou com os ditirambos internacionais e nacionais que lhe continuarão a chegar, e, se pensar bem, nem me importo – ou melhor, importo-me, foda-se- que se diga que a cinemateca abriu o mês comemorativo de Fevereiro com o esplêndido e indizível Manoel de Oliveira e fechou com Nicolau, e que em tudo isto há uma lógica - passagem de testemunho? O que foi o cinema e o que vai ser? Coisa perigosa, grosseira... O que nunca hei-de aceitar, ainda ontem falámos nisso, é que cineastas de corpo inteiro, Victor Gonçalves ou Joaquim Pinto, Jorge Silva Melo ou tantos outros jovens, rapazes e raparigas sozinhos contra o universo, que em cada filme fazem a sua biografia e a do mundo ou do seu lugar ou não lugar, que olham e que ardentemente captam e juntam poros e carne e sangue, continuem a ser impedidos de filmar pelos fascistas e medíocres e pela máfia dos que atribuem subsídios, dos produtores, dos festivais que recebem cópias em DVD de filmes digitais sem produtora, sem "nomes do meio", considerados por eles "amadores", possivelmente com falhas técnicas e não higienizados pelos "profissionais" mas com o fogo de furiosos vulcões em irrupções imparáveis. Amadores que amam muito, que é o oposto dos que nada amam e só se querem promover, realizadores vedetas, mundo bafiento e orquestrado do meio e da critica que é a mesma coisa. Costas protegidas contra os desnudados que tudo expõem. Dinheiro e maquinaria e publicidade que tentam apagar o desejo de cinema dos pobres e dos selvagens. Dos que fazem desta arte que nasceu para mostrar os homens e o mundo, os seus medos e alegrias e verdades e mentiras, a complexidade de tudo isto e a infinitude de sentidos, um tudo ou nada, questão vital, não merecia certas coisas como "A Espada e a Rosa".
Poderia ser assim: qualquer cineasta, a partir de agora, pode fazer um filme com a consciência de que um Nicolau é chamado realizador, ou cineasta, e que uma coisa como A Espada foi feita e passada em Veneza e aplaudida pelos idiotas e parasitas que teimam ocupar esta arte que nasceu com os Lumiére e que tantas emoções e sentimentos prometia. Fazer contra isto, ou seja, por amor.
José Oliveira
Marta Ramos
Mário Fernandes
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