quinta-feira, 24 de março de 2011
"The Wings of Eagles", filme de portas que atravessar dói. Filme de regressos impossíveis e enganadores. Filme de todo esse tempo e da destruição inerente. Filme de deslocamentos - nem um lugar nem o outro - e dessa imensa tragédia. Imensa... Paixões amores totais inquestionáveis, paixões amores totais inconciliáveis. Grandeza e contradição. Verdade que tudo redime. Solidão e...comoção. O Homem. John Ford.
quarta-feira, 23 de março de 2011
caça ao prémio 2011
- devem fazer-se filmes para viver, não para ir aos festivais...
- devem fazer-se filmes contra esses bandos dos mesmos, boas famílias das palmadinhas das costas que a cada ano preenchem os lugares cimeiros dos icas e dos festivais e se congratulam entre eles...
- devem fazer filmes contra os festivais, contra esse antro de corrupção bafienta, contra o espectáculo do ego....
- a vida é do caralho, cinema...
- fazer filmes contra o dinheiro, contra as produtoras, contra os produtores, contra o vedetismo, contra a hipocrisia, contra o estado e contra o ica...
- viver e filmar, a mesma coisa...
- devem fazer-se filmes para amar o que pode ser o mesmo que para destruir...não para comprar casas, fatos de luxo, carros...
- devem fazer-se contra a melhor fotografia ou o grande prémio...
- jamais negócio...
- jamais punhetagem...
- jamais reconhecimento...
- devem fazer-se filmes contra os festivais indies da moda e contra os alternativos que nada mais são do que cordeirinhos, as tais "marias vão com as outras", rebeldes de trazer por causa e de fina veste, burgueses que sonham ser polémicos ou poetas comem no restaurante último grito... gente mais dentro do sistema que o próprio sistema, falsos de merda que se defendem com ataques fáceis contra ministras e contra o cinema do dinheiro mas não percebem que são tão falsos como eles...
- fazer filmes contra os "especialistas"...
- os tais que papagueiam Straub e editam Bruno de Almeida...midas filmes dizem eles.
- cinema faz-se de graça, sem um único tostão...coisa de solitários coisa de irmãos...tudo ou nada...
- devem fazer-se filmes contra os cabrões que desprezaram e se riram do filme amador (que tudo amava) de um puto que quase deu a vida para filmar a conversa da avó em plano fixo...contra os mesmos cabrões que se babaram com a tipa nua filmada em travelling do último génio antigo assistente de realização...lançamento do ano...investimento infalível atalanta...
- o puto que sozinho fez a imagem, os enquadramentos, montou, captou o som...e que nem deu nome a isto porque tinha apreendido era com o Eustache com o Garrel ou o Ford na escuridão da cinemateca...e que não sabe o que são correcções de cor...filtros...directores de fotografia...
- devem fazer-se filmes contra esses bandos dos mesmos, boas famílias das palmadinhas das costas que a cada ano preenchem os lugares cimeiros dos icas e dos festivais e se congratulam entre eles...
- devem fazer filmes contra os festivais, contra esse antro de corrupção bafienta, contra o espectáculo do ego....
- a vida é do caralho, cinema...
- fazer filmes contra o dinheiro, contra as produtoras, contra os produtores, contra o vedetismo, contra a hipocrisia, contra o estado e contra o ica...
- viver e filmar, a mesma coisa...
- devem fazer-se filmes para amar o que pode ser o mesmo que para destruir...não para comprar casas, fatos de luxo, carros...
- devem fazer-se contra a melhor fotografia ou o grande prémio...
- jamais negócio...
- jamais punhetagem...
- jamais reconhecimento...
- devem fazer-se filmes contra os festivais indies da moda e contra os alternativos que nada mais são do que cordeirinhos, as tais "marias vão com as outras", rebeldes de trazer por causa e de fina veste, burgueses que sonham ser polémicos ou poetas comem no restaurante último grito... gente mais dentro do sistema que o próprio sistema, falsos de merda que se defendem com ataques fáceis contra ministras e contra o cinema do dinheiro mas não percebem que são tão falsos como eles...
- fazer filmes contra os "especialistas"...
- os tais que papagueiam Straub e editam Bruno de Almeida...midas filmes dizem eles.
- cinema faz-se de graça, sem um único tostão...coisa de solitários coisa de irmãos...tudo ou nada...
- devem fazer-se filmes contra os cabrões que desprezaram e se riram do filme amador (que tudo amava) de um puto que quase deu a vida para filmar a conversa da avó em plano fixo...contra os mesmos cabrões que se babaram com a tipa nua filmada em travelling do último génio antigo assistente de realização...lançamento do ano...investimento infalível atalanta...
- o puto que sozinho fez a imagem, os enquadramentos, montou, captou o som...e que nem deu nome a isto porque tinha apreendido era com o Eustache com o Garrel ou o Ford na escuridão da cinemateca...e que não sabe o que são correcções de cor...filtros...directores de fotografia...
quinta-feira, 17 de março de 2011
Lino Brocka
"Jaguar" chegou-me das Filipinas, realizado por Lino Brocka em 1979, filme meio perdido no meio de uma extensíssima obra. Sem saber muito, nota-se que é cinema popular, no grande e nobre sentido da palavra, extraído por uma oleada máquina que já com certeza fazia aquilo de olhos fechados e que por isso queria sempre mais. Mais pequeno, maior, explosivo, intimista, obsessivo.... Porque se falo em popular falo também em íntimo e minimal, que é o que se passa na história de um segurança que por cultivar a verdade e a honra até aos limites- salvo por causa de uma mulher, e por certas mulheres Brocka e muitos sabem que é impossível... – se vai deixar afundar numa teia de crime e violência que o levará à cadeia, depois dos seus minutos de ambígua fama por causa da dita mulher. Brocka não anda com atitudes de antropólogo, não anda com amarras formalistas e por isso mesmo podemos aprender mais do povo e da paisagem filipina da época, com a tal potência e sinceridade que a ficção e a pertença podem imprimir, do que com qualquer "especialista sociológico" que lá decidisse ir . Tocantes as cenas do bairro com todos esses reflexos dos charcos e esse barroquismo das formas arquitectónicas, esse cheiro das temperaturas e das cores, a multiplicidade de seres e de costumes. Interessa-me a câmara de Brocka, interessa-me a velocidade lenta do seu ritmo. Turbilhão ao ralenti. Câmara nervosa, por vezes eléctrica nas sequências de pancada ou de pulsões fugidias e incontroláveis, visceralmente física, atenta aos pequenos pormenores essenciais, passiva aquando das respirações e apaziguamentos humanos, contemplativa e compositiva na beleza do sexo ou da despedida. Hitchcock dos pobres é o que se pode dizer da cena em que o personagem principal foge rua fora depois do seu crime, num plano longo e inesperado no meio da obra, quase de ruptura, fazendo evidente trouvaille com a sequência de precisão de desenho animado do Cary Grant de "North by Northwest", como disse João Bénard da Costa a propósito deste Hitch. Pobreza volvida em força e em espanto, evidentemente. Logo outra coisa. Têm a lucidez de se camaleonar na singularidade de cada cena e de cada lugar e de cada emoção, por isso a extrema sujidade da sequência da fuga à policia, com uma Ciminiana sujidade e com aqueles fogos violentadores da película e das suas normas que parecem saídos de "The Deer Hunter", ou o hipnotismo da explosão final de um homem, hipnotizante montagem da perdição que chega por um isqueiro e pela sua movimentação de perder de vista, literalmente, bela metáfora e retenção do vertigo e da desorientação em que se deixou apanhar. Duro e frágil, cortante e no fio da navalha, directo e de distâncias compreendidas ao mesmo tempo, ríspido mas também terno e muito humilde, Brocka é um cineasta que me interessa muito mais do que quase todo o cinema filipino das modas de hoje em dia, aquele que faz a delicia dos caçadores de exotismos e do "novo".
quarta-feira, 16 de março de 2011
Condenados, libertados...
De longe e de passado obscuro aparece Tom Joad, tão obscuro como o escuro com que as primeiras noites das suas revelações vão ser vividas – todos dele parecem duvidar. De longe, como num western que "The Grapes of Wrath" começa por ser claramente até se deixar disseminar ou perder na sua epopeia humana e logo na sua veia fantástica. Escuro e obscuro finalmente fundidos para tudo pôr em causa.
Veia fantástica que começa logo a manifestar-se nessas já referidas noites iniciais onde Joad, filho, aparece como um vulto e como vulto se irá manter, numa espécie de fatalidade traçada por essa obscuridade, ferida que se recusa a fechar. Silhuetas que só se entreveêm nos escassas e ténues feixes de luz com que o céu ainda ali consegue libertar, como as águas dos rios também o farão ou pouco mais. O resto são as velas que fulminam a escuridão, redescobrem o medo ou a verdade nos rostos e nos corpos, corpos que abanam como varas, como poderia abanar aquela árvore do majestoso plano em que Ford desafia tudo e o faz durar até aos limites e na sua justeza – Tom Joad e Casy, o que já foi padre, a tal árvore como testemunha, a avassaladora e ainda ou ali ascética profundidade de campo, e entre tudo uma frase: "talvez não existe pecado ou virtude, apenas o que os homens fazem, bem ou mal..." lembro-me assim. E é ainda fabuloso porque temos um fantasma consciente a falar com outro que ainda não o sabe totalmente – como tomará consciência no seu plano final... - e os dois a avançarem para os abismos que representa aquela terra, aquela casa, aquele buraco negro de onde não se escapa...
Condenados.
Contra-luzes, perfis fantasmagóricos, nevoeiros ou brisas estranhíssimas, paisagens retorcidas, idas ao desconhecido ou ventos sobrenaturais...Ford a encontrar-se com Torneur ou Franju, Straub a vislumbrar-lhe o tempo e o olhar, Costa a querer perder-se e achar-se em tudo isto...
Pode ser assim, pode, mas o filme é ainda mais, é talvez aquele em que a dureza ou a delicadeza formal e imensa da Câmara de Ford surge vilipendiada com pulsões intempestivas de realidade, de caos, de ódios, no fundo como grande travelling que fura estrada fora e descobre um novo mundo e talvez um novo humanismo e toda a podridão dos poderosos. Quem lhe quiser chamar direitista pode muito bem mudar a agulha para o lado contrário, pois é essa espécie de raiva que também está no olhar de Fonda, de contra tudo e todos, revolução feita com os valores do coração, que "The Grapes of Wrath" chega a vibrar e a exceder a luminosidade das suas costuras para ter a força dos manifestos manifestos e não das boas intenções ou meias medidas dos razoáveis.
Coração, porque Ford não se esquece dos grandes valores e dos grandes sentimentos que tornam tudo suportável e que o cinema ou a arte de hoje em dia foge a sete pés. Um filho que precisa e chama por uma mãe – Ma... - e a mãe que deixa as lágrimas caírem quando revê o filho e se calhar já vê outra coisa. Ou ainda a Ma que queima as recordações pois até isso já não lhe é permitido levar logo recordar...A Ma que fica com a Grandma na hora da sua morte e que não revela a ninguém para que tudo possa prosseguir. A ma que escuta as palavras finais do seu filho, impassível e vulcânica, onde a ternura máxima casa com a violência máxima da palavra e da verdade dos sentimentos, sendo a mesma coisa e por isso mesmo de uma nobreza e justeza e grandeza totais. Intimismo e afecto, generosidade apelação. O movimento do filme – beleza obscura e abalo embate com a sobrevivência a terra.
A Ma...Jane Darwell, uma das mais belas mulheres de Ford, uma das mais belas mulheres do cinema. Do mundo. Uma elegância, uma dignidade, uma altivez, os seus olhos húmidos, rosto tremente, paixão ferida, essa doçura...um impronunciável comoção que só mais tarde rimará com a mãe Ana de António Reis. Pouco mais ou nada mais.
"Then it don't matter. I'll be all around in the dark - I'll be everywhere. Wherever you can look - wherever there's a fight, so hungry people can eat, I'll be there. Wherever there's a cop beatin' up a guy, I'll be there. I'll be in the way guys yell when they're mad. I'll be in the way kids laugh when they're hungry and they know supper's ready, and when the people are eatin' the stuff they raise and livin' in the houses they build - I'll be there, too. " - Declaração de intenções, declaração de guerra. E a ma que o protege com o olhar e o com o seu dentro. A ma que depois de o filho se levantar ainda o tenta fazer voltar as costas. O filho que já não olha para trás.
Máximo classicismo e algo que já é outro grito. Tradição e revolta. Dispensa-se teses, dispensa-se teorias, só o cinema só a vida, coisa total. Libertados.
sexta-feira, 11 de março de 2011
O que o cinema foi…
“Tren de Sombras” aparece-nos ou assombra-nos precisamente de um mundo de sombras, matéria fantasmática da película com que se fazia o cinema e fantasmas de um presente que certo dia certa película certo olhar a câmara pioneira dessa arte cinema foi e assim já não parece voltar a ser. O que foi e o que é, Guerín dialéctico. Prólogo. Certo dia um descobridor que não conhecia a palavra cinema, alguém que olhava por uma câmara com o mesmo desejo, fascínio, o mesmo êxtase, a mesma exaltação e ciente de um mundo de hipóteses igual a um Griffith a olhar o Mississípi cinematógrafo por exemplo. Algo em estado ardente, original, primeiro grau, primeira vez, virgem que não foi usurpada e banalizada, fonte de incomensuráveis mistérios e proezas utopias… Gèrard Fleury era o seu nome e podia ter passado completamente despercebido outro dos maiores.
Algo aconteceu a esse amador artista que gostava de filmar a família, paisagem, a beleza. Tudo se perdeu, décadas em que o seu parto ficou a apodrecer. Triste, triste e revoltante como tudo o que o tempo levou e que não tivemos oportunidade de ver e que poderia tornar a vida de alguém mais vital, aguentável bela. Guerin descobriu as filmagens, descobriu a candura pré-linguagem, descobriu que um advogado com uma rudimentar máquina Lumiéres e sem luz que não a deste mundo, só assim, sem nada mais que a ontologia "Entrée d'un train en gare de la Ciotat" pudesse alcançar as alturas, o maravilhamento, o impronunciável, o milagre, o que não se acredita tal como no Griffith referido, Murnau, sei lá… Epstein. Imensos horizontes com imensos céus que rasgam o plano, terra perdida de meninos e amantes que brincam se amam. Águas e barcos e relação de amor entre eles. Baloiços e cabelos levados pela ventania. Lillian Gish parecidas. Meninos de gravatas também pelo vento tocadas. Um homem a correr pelo campo até a um comboio como corria a rapariga do “City Girl” ou a Mãe Ana do António Réis mais à frente. Película estralhaçada Guerin nas tintas tudo aquilo vale ouro há que reanimá-la trazê-la à vida. Operação de resgate gesto de arqueólogo coisa funérea. Mas vida só vida tanta vida. Pois Guerín, como logo no plano primeiro por ele filmado, como a “Aurora” lua mesma e aquela barca e a aparição do referido homem que amava filmar a família, vai àqueles lugares como tinha ido aos de John Ford do “The Quiet Man” para não só sentir e inserir fantasmas com os mais velhos truques do cinema – tão lindas homenagens só por amor se filma assim como Fleury filmou os seus – mas também criar a sua ficção homenagem e ver como tudo aquilo está como o mundo o cinema mudou. Do velho ao novo, na mesma com película, o que foi certa vez possível já é impossível, mas a paixão moral indestrutível, as formas e a história, os sonhos e as fábulas, reino da infância para sempre eterna perigosa, agigantam-se sempre e de coração se insuflam quando se espreita disponível e a tudo aberto. Entre o branco e o preto e as cores relação secreta sim, relação dialéctica da mesma família como irmãos.
O que permite ao espanhol meter-se na casa e num estonteante e hipnotizante jogo de espelhos, reflexos, luz sombra timing dizer ao cinema que Hitchcock e Buñuel grandes assim existiram e a força foi igualmente tremenda. Casas encantadas, vertigos, tristanas ambientes. As sobre impressões continuam e a relação passado presente insiste em acto tão acto como os faróis dos carros que fazem vibrar planos e assustar as casas e as árvores ternas e as monstruosas.
Depois é sobre o cinema como todo o filme foi mas é como uma aula. Do lado do científico e com tanta força como o filme sobre os Straub do Costa. Mostra-nos o que são rolos, o que são cortes, o que é montagem, como se pode pôr planos diferentes em relação erótica, criar jogos de olhares, sorrisos cúmplices, um cosmos de sentidos tanto como um dia kuleshov…mostra-nos os barulhos das mesas de montagem, a fragilidade tacteabilidade dos materiais, exposições, rugosidades, luz que fura e invade e altera e espalha, permeabilidades, grãos e pequenas grandes explosões dos químicos pratas sais sua composição.
E as luas continuam, continuam agora envoltas nas névoas. Névoas que também já penetraram o meio aqueles caminhos, pastos, aquelas ovelhas, esconderijos, antiguidades, misticismos. Corpos rijos corpos evanescentes no espaço algo tudo que se desfaz desaparece nada dura para sempre o cinema a vida. Penetração desaparição. “Trén de sombras” filme desejo.
"Lost West" - Folha Cinemateca
Eles Cantam.
Neste tempo de cinema rico em que a maior parte dos seus praticantes se auto-intitulam como profissionais e por isso mesmo mexem mundos e fundos para verem os seus projectos aprovados pelo famoso I.C.A., batendo às portas das televisões, instituições culturais e tudo o que cheira a dinheiro, para depois de o filme estar pronto mesmo assim se chorarem por falta de verbas, tempo de rodagem, actores, palmadinhas nas costas, críticas de cinco estrelas, etc...Neste tempo de fabricação de génios à priori, de promoção de criatividades e talentos, de acordos entre produtoras e festivais, "o futuro do nosso cinema...", "finalmente algo novo, bizarro e inclassificável", tudo rótulos que uma certa imprensa necessita para brilhar nos seus cabeçalhos, ditirambos que certas publicações especializadas internacionais que certo dia – quando havia os grandes, Daney, Shorecki, mais atrás, Rivette, Bazin – foram grandes e que agora se vergam perante a primeira mediocridade ou fanfarronice que se exalta consigo própria, se envaidece, se grita e que paradoxalmente expõe a sua farsa. Só não vê quem não quer... são o "som e a fúria", vila do conde, os doutorandos das cartas brancas, os Nicolaus, os novos Cahiers que deveriam ser velhos... Neste cinema do tecnicamente correcto, dos raccords mais do que perfeitos, da luz uniforme, da procura da vedeta, da próxima "next big thing", das intricadas técnicas narrativas, museus de cera onde não existe uma folha que mexa, nada que mexa...Zero absoluto.
Em tempos assim... que bom é voltar ao anonimato, ao tempo em que a pobreza se tornava força, aos filmes de necessidades vitais, aos visceralmente amadores tal como Jean Douchet ou o outro Jean, o Eustache, nos ensinaram...
Mário Fernandes..."Lost West", autor ou obra, a ordem tanto faz. Ninguém desse maravilhoso mundo oficial do cinema o conhece, ninguém viu os seus filmes, estão-se nas tintas pois não lhes proporcionará um chavelho e os sentimentos, os verdes anos, há muito que se foram. Vou tentar explicá-lo: um western a preto e branco de três horas em que se canta, se fere emocionalmente, se ama e se mata, onde se percorrem vales e montanhas, rios e saloons, o céu toca na terra e ambos parecem fazer amor, onde o passado embate brutalmente com o presente e vice-versa, onde o que um dia foi já não mais poderá ser...cowboys em fúria cowboys impotentes, tiranos gigantes meninos que as armas e o mimo não conseguiram largar...ninfas em branco...os contra-luz que arrebatam auroras e crepúsculos, escuro escuríssimo cerrado, tanto whisky para o dia passar, as memórias se esvanecerem, a coragem irromper, os amores...da salvação ou da redenção não falo porque isso cada um a verá e a terá como merece...
Também não importa muito, não importa nada o reconhecimento, foi o Mário que me mostrou o filme em secretismo e que não o quer mandar para festivais, quer mostrá-lo só aos seus ou na cinemateca sua segunda casa. Também eu vim de longe e de boca aberta fiquei mas isto já não interessa nada...
Contradigo-me e agora ainda falo mais eu: lembro-me daquele primeiro plano, Kit Carson de pernas estendidas, chapéu para baixo, parecia-me Henry Fonda. O coldre descarregado à sorte pendurado na árvore. A inseparável harmónica e aquele som que tantas vezes embalará o filme. De repente...tão repente...um daqueles putos desamparados do Nicholas Ray, qual dancing kid, a entrar em campo, rouba-lhe a arma, aponta-lhe mas não sabe o que fazer, treme por todos os lados. Claramente ainda não foi introduzido ao mundo em que vivemos. Kit sobe o chapéu, dá-lhe conta do seu erro e atira-lhe profeticamente: "a partir de agora não podes mais voltar atrás", é assim que me lembro, é assim que conto. Lembro-me de logo a seguir um belo cavalo rasgar a paisagem lentamente e de a música continuar nessa sinfonia da perdição que guiará todo o seu percurso por El Cabalero. Subidas e descidas, altos e baixos, caminhos rectos e tantos labirintos armadilhas. E quando ele chega ao riacho e encontra uma das duas mulheres de branco vestidas, as suas indecisões e recuos em contraste com as certezas com que do gatilho não hesita em puxar quando assim tem que ser...isso também não me esqueci, como não me esqueço do imperial e operático Beralt Tin de olho tapado como Walsh ou Ford o tinham tapado, as suas manobras de terror e os seus discursos sobre os destinos dos homens por debaixo de si. Poder-me-ei porventura esquecer daquele momento no topo da montanha em que o par Kit-Martha – ela de tão belo vestido comprido e esvoaçante - olha o horizonte e tudo tão velozmente mas tão suavemente escurece e assim ficamos numa indizível contemplação? Tem a mesma força e delicadeza ou candura do beijo daquela gruta que me remete ao John Wayne que pega em Natalie Wood resgatada aos índios e lhe promete o lar perdido no "The Searchers". Cúmulo da ternura, cúmulo do lirismo que tantas vezes invade o filme. Um pouco à frente, praticamente no final a bem dizer, Kit entra na lavaria, o local onde o minério se purifica, e deambula muito, tão perdido movimentos e olhar em torno para lado nenhum, desilusão latente, desaceleração, apaziguamento, tudo filmado na mais acabada certeza, sem espaço para dúvidas ou delírios que não assim – "o que é, é" - a câmara a tomar o pulso a um homem, homem de carne e osso, a sentir-lhe os ofegares, os medos, dúvidas, raivas porventura, suores e tudo o que adivinhar não se pode. Assim, sem mais nada querer em troca. Ou, momento supremo, o meu favorito: a mizoguchiana barca e as mizoguchianas águas em que Martha leva o corpo abatido de Tito até às margens para o eterno descanso. Evidentemente, uma inexorável doçura. Repito para que não se esqueça, supremo. E se falei em Tito, Kit, Martha, Beralt Tin, tenho que falar em Carlito Quijote, um dos do bando da pérfida e o mais exuberante de todos, de negro vestido de negro composto, da roupa aos olhos à aura, sempre bigger than life tanto como o seu chefe, numa das rimas e oposições mais secretas e significativas e escuras da obra. Carlito Quijote sempre tão sozinho sempre tão desesperado e acossado numa urgência que não se deixa entrever, de destino traçado como qualquer um dos que já referi. Falta-me o momento do duelo final, naquele espantoso cenário da boca do inferno, um em cima, outro em baixo, composição assumida da mítica dos velhos duelos do velho oeste para logo destruir tudo e acabar em êxtase. Êxtase que só se dá depois do hawksiano disparo, tão seco como o que já tinha perfurado Carlito Quijote nesse estranhíssimo e sensual bailado no rio. O corpo do vilão a rebolar pelas areias abaixo, um abalo prestes a habitar o único destino que o aguarda, lá em baixo. Ele sabia, aposto que ele sabia.
Ia a dizer, pôr-se no meio de um mundo, o do western, amar-lhe aquilo tudo que só esse magnífico género conseguiu ser, utopia e arte eminentemente perdida, retribuir-lhe os segredos, as audácias, a memória e...e ser logo outra coisa.
Não há dinheiro mas há a ousadia e saber, de com a câmara digital pequena e barata, e só ela, querer captar as paisagens conhecidas da mesma forma total e desmesurada com que John Ford captou o seu Monument Valley. Entra-se no referido saloon, El Passadiço, e num funcionalismo formal em que o plano da ponta da arma a entrar em campo nos dá conta das lições funcionalistas e humildes e concisas de Howard Hawks para nesse espaço concentracionário e meio irrespirável fazer tudo explodir tudo estilhaçar...eles cantam eles começam a cantar e tudo estoura pelas costuras como os campos de batalha de Sam Fuller estouravam e instalavam a loucura. "I´m drinking a cup of whisky" poderia ser o mote e o estertor para toda essa fragilidade de meios e de tudo cavalgar em fúria estonteante e incontável tal seu tão amado Sam, outro Sam claro está, Peckinpah.
Aceitar a pobreza, viver com ela como com a vida que se tem de viver, tostões no bolso cigarros valiosos, pegar nos amigos e vesti-los com aquela classe que só os vândalos e os vagabundos e os foras da lei e os taberneiros e os poetas poetas conseguem ter...pedir que se escrevam canções como aquela que nos versos sopra "...Gone with wind". Não ter medo da ficção à Shakespeare como "Pursued " ou outros Walsh o eram e no mesmo tempo ser o mais acabado documento de um tempo, de um passado em que aquelas minas que lá se mostram e se escondem eram o país dos outros humildes e então alvo fácil dos poderosos. Documento de amizades e de vidas que o filme cruzou e alterou. Documento de cinema porque alguém teve tomates para mostrar que se por paixão for só não filma quem não quer...e que pode ser assim, assim sem cheta e assim grande, onde se beija, se corre e se pára, se ama...se volta as costas porque já não se pode regressar a casa. Onde se canta, insisto, onde se canta sem medo de ridículos, anacronismos, esses incendiários fogos próximos da libertação ou da revelação como quando no "Forty Guns" o actor principal desatava a cantar sobre o palco onde os homens tomavam banhos, tão inverosímil mas tão fulminado pela força do coração.
"Lost West" filme que rebenta pelas costuras. "Lost West" filme límpido e sem efeitos. Sem efeitos porque a sua lógica, como foi construído e como existe na sua forma final, é um manancial e um orgasmo de desejos e de olhar, o olhar de alguém sobre uma época, uma paisagem e uma narrativa dos afectos que próxima da farra e da amizade e do companheirismo não permite golpes baixos ou exibicionismos técnicos, piruetas, masturbações, esses estilismos inúteis que o "pós-modernismo", abjecta palavra e conceito, faz normalmente funcionar quando se pega no que foi e no que já não parece possível. Amizade, é preciso repetir para que não se esqueça, porque todo o imenso coração de Kit Carson é obviamente projecção do coração de todos os que ergueram e se esforçaram para levar as coisas para a frente, e isso vê-se no documentário de rodagem chamado "Oeste Reencontrado", peça que urge descobrir para que a experiência fique completa.
"Lost West", grito também o título, filme de um herói, filme de um primitivo de olhar lavado que tudo conhece e que não tem o mínimo medo de não separar filmes e vida, ódios e paixões, toda a genuína grandiosidade perdida e toda a humanidade. "A partir de agora não podes mais voltar atrás" foi o aviso de Kit Carson e é a moral e a ética desta obra de e para "happy fews".
O western, seja de que formas acontecer, nunca acabou, Mário Fernandes sabe-o como o sabem alguns dos grandes cineastas contemporâneos. De Manuel Mozos a Clint Eastwood, de Vincent Gallo a Pedro Costa a Michael Cimino, Quentin Tarantino. Os que fazem ainda fé numa pureza qualquer e respeitam as suas convicções, sem os rótulos ou os catálogos dos modernismos ou dos pós-qualquer coisa. O western nunca acabou. Raio de esperança meu, o cinema também não.
José Oliveira
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