Queen Christina, Rouben Mamoulian, 1933
Começa em tragédia e em tragédia acaba.
No entretanto...
Um hiato, um sonho. Como um sonho. Como naquele momento perfeito à Nicholas Ray, paz segundos, uma eternidade, assim: ela a rainha que na mentira descobriu o fogo do amor, de homem para se tornar mulher, finalmente mulher de corpo e alma inteiras. Na perfeição beijou, roçou-se, apalpou e olhou de olhos bem abertos tudo o que a rodeava para não mais esquecer As poses, os movimentos, a volúpia.. A neve lá fora e a luz mais do que perfeita ténue a banhar a iluminar tudo, hallo da ordem do sagrado. Testemunha e cúmplice Nesse dia chegou ao céu, nesse dia chegou-se aos infernos.
O que era pose hierática, firme, gélida vai-se tornar o seu contrário.
Mamoulian não dá tréguas e dá dádivas. Os poderosos, os dissimulados, o povo, o resto. Enquadramentos régua e esquadro cortantes, composições que sangram. Movimentos ímpetos de pura fisicalidade à conta de tamanha tenacidade. Cavalgadas walsh, cavalgadas tão orgásticas. Corredores fantasmagóricos dessa luz que revela os espectros. Trono e cabeça caída contra a espada e a parede, tão triste e desesperada. Luz da fatalidade.
Os grandes, aos grandes a graça do grande plano proibido pelo hiato. Aos grandes a candura das coisas raras, essa aura impronunciável.
Mamoulian frio analista dos mecanismos do poder: plano sequência, quadrado inflexível, escalas. Mamoulian intimista, pequeno e secreto: o mais-do-que-grande-plano para lhe perder a terminologia e se deixar perder e encontrar pelos encantos do rosto. Talvez o cinema tenha sido inventado para registar o que de maior existe, o rosto que detém o olhar logo o estado interior. E aí, nesse gesto essa pulsão, descola-se da regra e volta-se ao cinema coisa ontológica dos inícios e dos fins. Rosto adentro, penetração finalmente. Como quando, já falei nisso, a menina ou amazona que se quis tornar menino ou cavaleiro para ter um pouco de paz e de liberdade e..."Provavelmente, quanto mais longe de casa, mais próximo da verdade." Uma e a mesma coisa.
Cineasta esteta, ascético, amador.
Tanta beleza, obra de tanta beleza...como lá para o final, os barcos de papelão com as bandeiras ao vento, as águas que brilham de faz de conta e de lengalenga, todo o imaginário dos cromos de criança a voltar de modo sereno e incandescente. Tanta beleza porque correlativa aos sentimentos, ao amor, aos ódios, às raivas e às angústias - a modelação ideal, a distância reveladora.
Nesse hiato, contínuo, em que a rainha tornada adulta e velha à força toda redescobre os traços, os desenhos, os esconderijos e as florestas e quartos da infância e com isso o cinema também a esse estado regressa inocentemente, a implacabilidade do desejo e do coração que move montanhas e ultrapassa secos desertos para ir até ao seus limites, esse abismo...redescobre como não enganar os bons sentimentos. A Rainha é bela na felicidade cristalina daquela plenitude, fica desolada e imensamente frágil na impassibilidade da dúvida e mesmo assim é sempre bela porque protegida e formada pelo seu eu. A mais jovem, eternamente jovem daquele universo.
Castelos abandonados, ouro rejeitado.
Entrega-se à vida e ao seu príncipe que não o é para os outros, o que a foi resgatar aos cimos impenetráveis.
...somos pó e em pó nos havemos de tornar. A morte não pode tudo, nunca. Jamais. E a Rainha vai-se lembrar das promessas e se entregar à vida – "devemos viver pelos mortos?" tinha ela perguntado certa vez – para como na profundeza e convicção do olhar final sobre os mares e sobre o que não se define ir em frente, respeitar e aceitar o calor do sangue que escancarou horizontes. Sem olhar para trás. Sem pedir desculpas. Contra-campo, fim.
Carne e osso.