quarta-feira, 12 de outubro de 2011



Vi um filme calmo e incandescente. E por entre essas duas sensações, belo. Senti, entre quadros, ares e arrepios de frio. "Few of Us", como outros filmes de Sharunas Bartas, é uma experiência sensorial, física, mental. Poderia entrar em delírios, e entro, estamos perante um western? No princípio o vazio, comboios, planícies, espaço aberto e rasgado. Depois, uma mulher que vem de longe, não sabemos de onde, nem ela diz, ela e os outros nem falam – lembro-me de "O Homem sem Passado" de Aki Kaurismäki, o movimento é semelhante. Passado, toneladas de passado no lúgubre e taciturno semblante da quela mulher - Yekaterina Golubeva, uma das presenças mais indecifráveis que o cinema guardará memória. Naquele ambiente carregado, sombrio, despovoado, esfíngico, entre as deambulações e os descansos e estranhos bailados que irrompem, vão-se travar duelos, vão aparecer céus avermelhados e de horizonte mitológico como aqueles que sabemos, ela vai dar as costas a uma porta como em "The Searchers" e vai desvanecer-se de destino incerto. Mas poderá ser todo o contrário e Bartas vai recusando qualquer chave cinéfila pela frustração de expectativas, modos, desenlaces. Filme desgraçadamente perdido como as pobres almas que lá andam, que recusa a descoberta de teorias a cada momento, porque quando julgava a ausência de campos-contracampos, lá aparece um quase clássico. A coerência fílmica não existe tanto quanto aparenta e depois de um imenso plano geral, o seguinte pode ser um apertado. Entre o grande e o pequeno, uma fé no rosto que por vezes parece tocar a ordem do sagrado, quase da transcendência, na maneira como estes são filmados e postos em contacto com a desmesura da paisagem, um frente a frente, quase uma não distinção. O mesmo esmero, o mesmo encanto, o mesmo enfeitiçamento por parte de quem olha. Por baixo das caras estão os corpos e estes parecem estar, precisamente como o meio que os envolve, todos mortos, fantasmas de regresso a uma terra que já foi viva e que também parece já existir num qualquer pós apocalipse. Pós humanidade. Nada mexe, a carne está paralisada, o sangue estancou irreversivelmente, os olhares não tem direcção nem brilho. A suposta Sibéria é de cera, a terra, folhas, água, neve, as casas, tudo o resto, encontra-se ente a calcinação e o fóssil. Os animais e os velhos que a recortam também não respiram. Estátuas. O desejo por um corpo nu é frigido. Um tiro é disparado e alguém cai, não tenho certeza se se morre duas vezes. Todo monolítico, marmóreo, eterno. E assim um sopro que nada tem de desespero, sim de apaziguamento. As formas do cinema e o reconhecimento do homem e do mundo para lá de tudo. Porque tudo atrás pode estar errado e afinal estávamos no princípio. Antes do verbo e com uma emoção que não posso reproduzir. Mas emoção. E o sublime nos filmes de Bartas só se dá em plenitude porque tudo o que está nele é belo e dói, qualquer que seja o tempo e o estado.

...

Leos Carax sobre Bartas:

"Le cinéma de Sarunas Bartas a toujours existé, depuis que le monde est monde. Mais nous, où étions-nous passés ?

Le monde est triste, accablant. Les hommes se sabotent, errent et crèvent.

Mais le monde est beau parce qu'il survit, parce qu'il dure.

Oui, le monde est beau même là où rien ne pousse, pourvu que quelques-uns continuent de l'habiter et d'y semer, avec l'audace des désenchantés.

Pourvu qu'un homme et sa caméra soient là, qui le combattent et l'aiment, au-delà du raisonnable."


3 comentários:

Álvaro Martins disse...

Grande filme. Já viste o novo dele?

José Oliveira disse...

Não, já anda por ai?

Álvaro Martins disse...

Sim, eu já o tenho, mas só arranjo legendas em francês, coisa que não percebo nada. Mas não devem demorar a aparecer umas em inglês :)