quinta-feira, 26 de janeiro de 2012


"Berg – Ejvind Och Hans Hustru" é na filmografia de Victor Sjöström quase posterior a “Terje Vigen”, prosseguindo assim o fulgor panteísta, trágico e apaixonado. Não um panteísmo relacionado com dependências económicas ou grandes exaltações discursivas sobre a terra como propriedade ou glória, antes questão convivencial, dependente, de vida ou de morte em última instância.

Se os movimentos e as variações temporais, geográficas e pictóricas detêm na sua construção uma feroz lógica intrínseca, a relação entre homem e mundo é sempre total, intensa e por isso emotiva.

O primeiro movimento ou andamento, depois da paisagem se mostrar grandiosa e imperturbável, é o do fechamento, o dentro. Aí, na história do fora da lei Berg-Ejvind (outra vez como actor tão imenso o imenso cineasta) que vem de longe e cai de amores por uma forte mulher de abastados recursos que o salva, vamos ter silhuetas voluptuosas envoltas em negro e que do negro são cinzeladas e se impõe, cheias, matéria espessa a remeter para os óleos dos retratos de Rembrandt. Aqui no baixo e no muito dentro, pinturas esculpidas pela câmara à luz que escassa.

O segundo movimento, ainda mais musical e agora tão mais disperso e abstracto. A câmara solta-se, entrega-se aos ares. A fuga dos amantes lá para os cimos, para as montanhas imponentes, que metem medo e gelam espírito e espinha. Cinco anos de felicidade, uma filha dada à vida e um forasteiro de outras vidas com questões passionais muito mal resolvidas. Almas perdidas ao vento, esse elemento fundamental e personificado do cinema de Sjöström. Os cimos e os céus abertos. Figuras na imensidão da paisagem esse romantismo. Frágeis, provisórias, diminuídas. Fugitivos. Proscritos.

Terceira e capitular construção é a do cerramento. Cerramento brutalíssimo e obviamente nada pacificado nos picos e nos dentros, junção e síntese impossível do que está para trás. Os esforços descomunais e a forçosa alienação só para a sobrevivência, os avisos e vociferações da natureza em estado puro e selvagem e os ódios mútuos do casal que emerge no irreconciliável. Uma luta de proporções épicas e de resvalamentos catastróficos.

A dissolução do casal e então o resultado: no gelo mais gélido imaginado, dois corpos para sempre unos e conservados. Neve sem fim. Grandes planos terminais. O vazio. Fim.

“Almighty God”…”Death gave them forgiveness…”… “Their only law was their love.”

Para Victor Sjöström o desespero não nasce de linhas e perspectivas, volumes ou etéreos pronunciados, que lá para a frente preocupariam os chamados modernos pelos “especialistas”. Tudo nesta nossa terra conhecida é uma massa forme capaz de abarcar e de absorver cada partícula, cada ínfimo corpo, cada resquício mínimo da natureza e da civilização, do vivo e do morto, conhecido e não conhecido. Um grande corpo vivo/vivificante/generoso/orgânico/devorador/esfomeado/ cortante/sensual/perigoso. A mestria das pinceladas espessas e complexas. Totais e no entanto tantas vezes de solidão tocante, esses relacionamentos desconcertantes...

Lucidez, mas também poesia, lírica, subjectiva e convulsa.

Mais intertítulos de sentidos delirantes/ardentes/ultra eróticos (de memória): “...como num conto de fadas, Kari estava perdido...pensava que não mais via o sol...até avistar castelos e princesas”; “...a erva tremia, por debaixo da neve”; “...queria como fazer amor com os sonhos”; “...dava o meu peito ao teu punhal e imaginava que amamentava”.

Mais quadros de erotismo extremo e sem tempo, pois chegar ao que o mestre sueco chegou aqui...jamais: Berg-Ejvind ou Kari a aquecer a comida em águas escaldantes e por trás dele rios que correm à Da Vinci; O tal proscrito outro que regressa e o par de desejosos volve-se trio. Justiça e amor ou justiça no amor é o que ele deseja e o filme fica tenso e irrespirável no absolutamente árido, físico também às custas de pulsões recônditas, despontando as composições desequilibradas, no fio da navalha, a tombar aos precipícios. A um passo da queda. Soam alarmes outros de ciúmes e fomes e escancaram-se as portas à loucura. A sequência mais inusitada e insinuante, aberrante, escandalosa, excitante é aquelas em que Holla, a mulher para dois homens – essa mulher corpulenta e de sensualidade esbanjante e lúbrica – lava roupa de peito tão destapado aos sopros e a Arnes, o tal elemento intrusivo, que este se derrete e rasteja de desejos. Bem antes das pancas de Howard Huges. Perversão e provocação depois levadas aos limites paroxisticos do pedido do beijo, em que se desmultiplicam metáforas como o fálico objecto artesanal que ela tem em mãos e vai acariciando até à explosão hormonal dele e violenta recusa dela. A dúbia e horrenda perda do bebé em que fica a dúvida das culpas, dos motivos...das intenções e nobrezas de coração. E como não falar nos flashbacks...sejam os bucólicos nostálgicos de uma paixão a dois sempre em fuga para a frente, para cima ou para o poço...ou a criança sobre as águas a planar, coisa próxima do susto e do pesadelo suado.

Tragédia, sim. Mas que se diga que qualquer laivo de melodramatismo barato, de códigos, convenções ou normas de género como caderno de encargos a ser seguido, mesmo que com a caução de grande arte, é liminarmente afastado, porque Victor Sjöström fode isso e a natureza é sempre colosso estético que se impõe e que fala e corresponde com o artista num belo pacto. Sem sacralizações, a natureza aguda a foder também pressupostos e a desvelar atmosferas e a câmara em frente a olhar e a colher.

Um poeta...um trabalhador viandante...um homem livre.

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