sexta-feira, 29 de junho de 2012


The old world…
…é a primeira coisa que John Ford assinala a legenda no seu “Four Sons” de 1928. E se no contexto do filme em questão essa localização e essa memória são fundamentais, essa poderia ser igualmente a epígrafe de toda a sua obra e maneira de estar no mundo, filme a filme, palavra a palavra. O plano seguinte já molda, desenha e assombra tudo, na figura ao mesmo tempo terna e aterradora do velho carteiro já hoje anacrónico. Mas lá iremos. The old world…quer dizer no tempo em que os homens, as relações verdadeiramente genuínas e sem falsos interesses, a terra e um deus eram coisas não só que faziam todo o sentido e nem se tentavam definir, estavam sim dependentes como o feto o está do cosmos interior da grávida; coisas essas que eram menos arquétipos para a ficção ou para a arte mas sim, nos valentes, a única matéria que interessava, o precioso valor, o ouro. Mais do que essa consciência, era sim a lógica daqueles para quem oferecer um cigarro, pagar um copo de vinho na taberna ou franquear portas caseiras e oferecer a mesa era absolutamente o mesmo que enquadrar, queimar pelicula e unir rostos e corpos dentro do mundo; da mesma forma justa com que se pode matar a fome ao próximo ou mostrar-lhe um caminho, respeita-se o fluxo orgânico e justo de uma construção de imagens, sons, manobrares de tempo.

Certo que hoje em dia não temos carteiros arcaicos como não temos causas grandes ou arcos épicos a guiarem e a enformarem a história de nós todos e de cada um. Já não são possíveis as caminhadas infinitas, as odisseias, conquistas, epopeias, cavalgadas, as naus, o zé do telhado ou um Woody Guthrie. Para cá disto, a reconstituição, a nostalgia, os Michael Bay ou a cópia costumam ser armadilha inescapável ao maneirismo, ao pretensiosismo, à frívola calcinação. Na vidinha contemporânea da velocidade supersónica, do electrónico e do combustível, a letargia e acomodamento são tais que o contracampo já nem as revoluções permitem. Griffith, Ford, Cimino ainda, chegaram às mais eternas e perenes emoções pois no monumental, nos campos de batalha inomináveis, no espaço e no tempo que tudo abarca na sua dilatação e consumição, não fugiram aos duplos ou múltiplos destinos e perceberam que para irem neles a fundo era preciso instalar-se no grupo, no indivíduo e no suspiro, e só assim poderiam chegar ao incomensurável e ao indivisível da existência que comporta todas as zonas crispadas e todas as ambiguidades. Mas nunca com as intenções de um sociólogo, antes com as mutuas dúvidas, medos, ansiedades, contenções, explosões. Sem aproveitamentos ou casos de estudo, era questão de humildade. Nessas jornadas distópicas e nesses desenraizamentos, nessa fé panteísta e nas crenças herdadas - à maneira do Tom Joad que carrega a sua família às costas em “The Grapes of Wrath”; dos cheyennes de “Cheyenne Autumn” e de tantos outros outonos fordianos, americanos, universais; esse amargo porque precipitado crepúsculo embora merecido e dignificante do velho Spencer Tracy de “The Last Hurrah – que doendo como dói arrancar um dente do seu ninho, são executados sem olhar para trás. Lamento meus amigos, mas se os ventos já não sopram para Dickens, muito menos soprarão para Twain.

“Four Sons”, resgate de comoção, corrompimento da carne e da alma, questões de honra, altivas redenções possíveis, eternos retornos. Grandeza. Tudo tão terreno mesmo com a torre da igreja contra o claro do céu em estampa transcendental. A tragédia dos quatro filhos que são a glória de uma velha mãe numa pequena vila; essa idílica perfeição inicial sobre vales encantados em brincadeiras cândidas antes dos pecados que abatem os édens até aos infernos da claridade produzida pelas chamas bélicas – única luz ao dia – ou os infernos das cartas negras do carteiro tão simpático mas que nesse tempo podre já ninguém o quer ver, não pode deixar de me recordar o “The Deer Hunter”, pois tendo-o visto antes deste, me diz coisas e traça percursos semelhantes e assim vai à origem do que o homem forma dentro de si e que irremediavelmente fica e germina na estação propicia; o mesmo tipo de movimento dramático e implacável.

 Doces e duros universos, mas onde John Ford me envolveu e me cravou os olhos nunca me senti perdido ou abandonado, mesmo na máxima maldade e desorientação, nas coordenadas obtusas ou sobre uma rajada de balas furadoras; sempre a meu lado uma mão de fidelidade e de companheirismo, acima de tudo, de verdade – “as coisas são assim, não há que enganar”; sempre me senti como que numa casa que mais do que promessa era constatação, envolvências conhecidas e, instante a instante, frame a frame, surpreendentes; e eu nunca estive na guerra embora tenha comido alguns muitos bolinhos de mel.

O berço, a guerra. A fluição dos eventos e as correspondências traçadas por Ford que só podem ter a ver com a severidade e predestinação do mal, causas e efeitos. Montagem, essa inteligência e sensibilidade e milagre da transfiguração. Montagem que não vem dos grandes compêndios teóricos, nem mesmo de Eisenstein, vem sim da vida, dos mistérios dela, certezas e finca-pés, imprevisibilidades. Nem naturalismos pré-definidos, nem realismos pré-definidos – o desfilar para a eterna mancha feita sais, gelatinas, cloretos, brometos, emulsões…; esses eternos relacionamentos de cada coisa apelidável, atracções, repulsas. Substâncias que um qualquer dia também se vão consumir num fogo qualquer ou apagar-se seja de que modo for; máximo consolo essas eternidades de testemunho, amor, vingança.

Alhures um soldado à nora…

Findam-se as ilusões naquela terra antiga e então explode uma guerra e urge polpa para ela. Em marcha caminham os soldados para fora do meio do seu contentamento rumo a algo que lhes obscurece a vista. Do sino imparável e ensurdecedor (não importa o putativo “mudo”, o som é literalmente bombástico) para o terreiro e as cruzes de um cemitério em que nos limites da profundidade do quadro vão homens para queimar. A velhinha feita de ferro que é a Mãe Bernle a vê-los alinhados e compassados, nessa geometria aí tortuosa que a esmaga e espezinha, se banha em lágrimas e o espelho é já trágico – nenhum dos filhos a nota, cada um deles já tem os olhos no vazio completo, já tem os olhos fechados, já só dialoga com a morte. O sino que ainda os esmagará mais e lhes comunicará algo no plano último de despedidas.

Dito isto ou sucedido isto o mundo vai-se fechando, agudizando, sombreando, os eclipses sujarão os céus e as luas velar-se-ão a cromatismos mínimos de presença. As formas e as escalas do artesão e do capitão que conhece o piso e o ar em que está metido vão sendo cada vez mais secretas, cerradas, concentradas, sempre generosas para quem sua ou mesmo para quem invade a casa – para Ford um homem sempre foi um homem, esteja de que lado estiver.

Aquela gaita bélica que explode na face da Mãe em declaração raivosa da estupidez dos limites do ódio, os elos do filme e a sua geografia reverberam sempre o círculo complexo, sabido e dessabido, inocente e corrompido, da existência – o bebé a ser lavado pela sua mãe e um soldado morto nas mãos de um irmão consanguíneo no mais improvável dos lugares. Algo está muito mal quando já nem a elipse salva e do sangue que tinge os campos se corta para uma sombra em contraluz da negra carta do negro enviado. Algo está muito muito mal quando a elipse já não fornece chaves de possíveis serenidades, releituras, respirares calmos. E aí, do berço que já não acolherá para o fatídico sino que agora já é requiem, pesaroso alarme. O outro dos filhos que se senta a seu lado e antevê nova carta… As pombas assustadas…

Milagre da transfiguração. Pesadelo da transfiguração.

E se a terceira carta é inevitável pela disposição das peças e das posses no tabuleiro total, se o paroxismo brutal da arca infantil que de facto se volve caixão aquando de nova e ultima chegada do antes tão aguardado distribuidor de boas novas, existe, existe apesar de tudo e é ouro, um filho imigrado nas américas que além de uma mulher já detém um neto para a sua mãe. E com Ford sai-se sempre do buraco e para a frente é que é caminho. Deve-se escutar os outros mas deve-se escutar e sentir sobretudo o músculo vital. Deus, os homens e a terra. Jamais a depressão eterna, jamais o apagamento, nem que se tenha de derramar sangue próprio. E urge o acto heroico passível a qualquer um, Alexandre-o-grande ou o zé-dos-anzóis. E aprende-se a ler e a embarcar e a perder-se na grande maçã e na poluição viril; os comboios até já apitam e se movem com outra graça e os barcos ondulam as águas que parecem felizes. E o plano de, apesar de tudo, diga-se sempre, retorno, nova síntese, chegada, promessa. Bela grave pacificação, descanso. A grande e única moral que importa, sempre um horizonte.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Resiste muito, obedece pouco.

WW

terça-feira, 5 de junho de 2012



Harry Callahan não perdoou a quem o matou. Não por ser polícia e carregar consigo uma assustadora arma, mas porque não pertence aos dessa estirpe. Harry pode ser um porco fascista na medida em que homens acossados como o Stanley White de Michael Cimino, o Travis Bickle de Martin Scorsese ou mesmo o Walt Kowalski do próprio Clint Eastwood o podem ser numa consideração primeira e simplista, maniqueísta; ou podem ser humanistas, sim humanistas!, numa Via Crúcis rumo a uma catarse essencial, a uma limpeza, coisa extrema só pertencente ou passível de ser compreendida a quem muito suportou de insuportável, a quem se fodeu muito, a quem muito se escaldou face a tanta maldade presenciada, um certo cúmulo de quem tem a vista ferida pelo nojo, baixarias, terror a que um ser neste mundo pode chegar sabe-se lá porquê, a liberdade e o terror de quem nada tem a perder.
À brutal raiva das acções destes cavaleiros corresponde um amor de idêntica escala que para sempre agredido jamais se poderá deixar de manifestar em jorros de furores mortais. A dada altura, quando alguém lhe pergunta o significado do adjetivo Dirty que o polícia ostenta como alcunha, uma resposta que é uma das chaves das suas brumas e o dínamo que o faz correr: “...ele não tem favoritos. Odeia-os a todos. Negros, gordos, magros, egípcios, é só escolher. Seja quem for." Isto é, quem odeia toda a gente não odeia ninguém, tal como quem tudo perdoa banaliza a questão e no fundo não deixa de não perdoar nada. A moral como a razão, a noção de valor, o juízo, a vontade, sempre foram conceitos e visões complexas e de costas largas, o que precedentemente foi possível certo dia posterior é já impossível; o Ethan Edwards colecionador de escalpes porque um dia viu uma boneca a arder e não o suportou, a ferida jaz aberta e os mortos acumulam-se. Em coisas assim tamanhas e escapáveis, em olhares assim cravados e profundos e em semblantes desse modo fechados, ambíguos e com todos os mistérios resguardados, há que tentar perceber que para assim se ser uma lança das compridas e das que perfuram além crenças e credos foi a dado tempo e em dado lugar espetada e não mais cicatrizada. Harry como outros possíveis Harry`s está paroxisticamente ferido, atingido tal estado, há que esperar toda e qualquer altercação, explosão, e as leis de uns humanos e a as leis de uma sociedade valem tanto como uma bafienta lição de moral de um qualquer bafiento pregador. A personalidade escorrega para o dito mistério e tudo se torna também escorregadio, tudo o que se dá como certo e benigno.
Consequência de certa lixeira deste habitat, claro, mas consequência sobretudo da paixão por uma mulher. “Dirty Harry” é fundado e só existe como e por uma história de amor. História de amor calada, abafada, a trabalhar nos fundos de uma alma e a queimar para eternidades, em surdina, em elipse e nos espaços of e nos olhos profundíssimos e se quisermos tão comoventes de Harry, o Dirty. História de amor para lá do túmulo, muito…uma das mais bonitas de que me lembro em filmes ou no resto. Uma Hitchcock ou uma Truffaut…uma Henry James…uma…
E para que assim seja, para que Don Siegel diga amém com Harry e com todos os assim estilhaçados às tripas e aos nervos, não se cai em fantasias ou no santo resguardo do papelão e da intrujice. Neste périplo em não tão negativo Santo Agostinismo, em que o tal Dirty Harry precisou então de crer numa série de coisas de antemão para fatalmente por meio da acção tentar compreender, a pulsão realista do realizador, a pulsão vital, o abismo pelo que se vê e experimenta, essa urgência avassaladoramente assente nos cheiros, no putedo e no bichedo, anjos e assassinos e anjos assassinos, nos passeios de lixo e de fezes, nas cores que escondem e que berram, etc, vai sempre andar e chegar em primeiro do que qualquer estrutura narrativa de argumentista. Atração, repulsa… Os espaços e tinta da luz vão sempre irromper vibrantemente e em retardamento da sacrossanta estória ou historieta; o facto vai ser superior à derivativa ou etérea poiésis e assim brotar uma poiésis outra aqui ordinária, despida, essencial. Nada de admirar, embora aqui se atinjam radicalismos sobre o escuro e sobre o ontológico que envergonha e reduz a pó noventa e nove por cento do documentarismo de algibeira que inundou nos últimos tempos os festivais, mostras e meios do cinema; visto que já era assim na perna cortada em “The Beguiled”, o excesso de realismo e languidez apenas eram o resultado simples e complexo de olhar compulsivamente de frente e chegar a uma dimensão outra que não a maquiagem; nas perseguições em directo e transcendidas pela arte da montagem no “Madigan”, enfim, entre mais mil exemplos, as discotecas de crua e cegante luz para dentro da objectiva em “Coogan's Bluff”; o manual de evasão que constitui “Escape from Alcatraz” do primeiro ao último fotograma; toda a pérfida instalada no humano desde o berço, da origem, que é centro e periferia de cada obra.
Reprodução do que olho, atracção, recuo, medo. Rugosidade – deixar que a violência, a riqueza, densidade e complexidade do mundo fira a pelicula e a encharque. Que me fira a vista também. Vamos tão perto, tão cerrado, tão em cima, apagámos. Ícaro sem aura, desconsagrado. A relevância e primazia ao ar, à fibra, à atmosfera e à música do presente intacto, rude, pleno de cada momento, de cada cena; estados que explodem, excedem, se prendem ao quadro fílmico; Se falei em música que se diga que esta ainda nada tem a ver com notas ou composições, sim com os cintilamentos, florescências, noturnos, opacidades, ruídos, deambulações, embalos e rupturas do que está nas superfícies e nas profundidades de campo e constituem cada coisa por si, movimentos e reciprocidades entre os diversos componentes das matérias; então, música concreta do mundo; quanto à outra, à de Lalo Schifrin, sonoridade perfeitamente em sintonia clássica com o visível, sonoridade que tem o efeito e a função de solda entre blocos, mas também de despertar de conflitos e interjeições entre elementos, nesse sentido, perfeitamente concreta também, e tão crucial como por exemplo Bach ou Mozart para um Ingmar Bergman, esqueçam-se as hierarquias, pergaminhos e actas de certos doutandos, veja-se o que cada coisa anima. Depois deste aparte, o escuro, o referido escuro onde tanto “nada se vê”, esses raspamentos ao negro, quase negros sobre negros ou brechas mínimas sobre escuridão total que não o do diafragma maquinal mas sim o crepúsculo da terra, que mais do que uma recusa à luz do cinema e às lanternas mágicas iniciais são então avidez louca do retrato em primeiro grau, apostolado do olho à máquina e dessa maneira o maior dos cânticos à própria máquina; nem se trata de anarquicamente apagar a luz, trata-se sim de não a acender – gesto de fidelidade e paixão; kamikaze e generosidade da altura dos olhos e da potência e perigo de se juntar dois planos, duas castrações ao cosmos. Não há volta a dar.
Pulsão de registo, como quando Harry e a mulher do parceiro atingido descem as escadas de um centro de recuperação: a fogosidade analítica como a um tempo temos as linhas e fugas e ornamentos de uma arquitetura espacial e também a tensão de dois corpos e estados de alma nesse lugar, fechamento espacial e abertura espiritual. A correria imposta pelo demente (demente que não falarei mais dele, muito menos o tentarei escrutinar, porque por mentes e terrenos assim, não ouso imiscuir a caneta nem as minhas botas, tal como o realizador, que com a sua classe, também não.) a Harry sobre jardins, becos e altos de São Francisco: um mapeamento perfeitamente lúdico e preciso de uma cidade e uma descida aos abismos demoníacos de um inferno pessoal, geral, abarcante. O que está de mão dada e de lógica feita com o percurso final do autocarro de crianças, que entre placas de sinalização, vistas panorâmicas como outras tantas poderosas que fenderam o filme, melodias e revelações da anatomia dos olhos e da anatomia das tempéries interiores, vão do traçado materialista e urbano ao grande abstrato da existência, com a fluidez, despojamento e secura cortante que nestes tempos só um Siegel desta vida, um Aldrich e depois Clint nos fariam experimentar.
E assim, assim mesmo, o grito lancinante, crepuscular e transformador, aterrador, silente, ao lado das escalas justas, do último tiro. Assim, assim mesmo, a profissão que um homem tem que ter jogada ao rio, circulo fechado, fim, início; afastamento da câmara até quantidades indefiníveis e o resultado ancestral: alguém a uma dada hora perdido numa das incontáveis constelações, sabe-se lá onde. Cada um que vá buscar a sua moral…
Os opostos podem reconciliar-se, o maior dos bens abraçar o maior dos males e o seu oposto, só a mediocridade, arrivismo, hipocrisia, demagogia, é que não? Que acabe agora este mundo, já, porque de certeza começa outro. Tal como o jocoso e muito sério: “Do I feel lucky? Well, do ya, punk?” a roda da vida e a bomba do coração tanto tanto dependem. Um novo filme ou uma nova vida estão prestes a (re) começar; ou então não, pois tais como certos anticlímaxes ou certos animais persistentes e de hábitos feitos dificilmente mutáveis, há também tipos que nunca quebram. Inteligências de Siegel.