Harry Callahan não perdoou a quem o matou. Não por
ser polícia e carregar consigo uma assustadora arma, mas porque não pertence
aos dessa estirpe. Harry pode ser um porco fascista na medida em que homens
acossados como o Stanley White de Michael Cimino, o Travis Bickle de Martin
Scorsese ou mesmo o Walt Kowalski do próprio Clint Eastwood o podem ser numa
consideração primeira e simplista, maniqueísta; ou podem ser humanistas, sim humanistas!,
numa Via Crúcis rumo a uma catarse essencial, a uma limpeza, coisa extrema só pertencente
ou passível de ser compreendida a quem muito suportou de insuportável, a quem
se fodeu muito, a quem muito se escaldou face a tanta maldade presenciada, um
certo cúmulo de quem tem a vista ferida pelo nojo, baixarias, terror a que um
ser neste mundo pode chegar sabe-se lá porquê, a liberdade e o terror de quem
nada tem a perder.
À brutal raiva das acções destes cavaleiros
corresponde um amor de idêntica escala que para sempre agredido jamais se poderá
deixar de manifestar em jorros de furores mortais. A dada altura, quando alguém
lhe pergunta o significado do adjetivo Dirty que o polícia ostenta como alcunha,
uma resposta que é uma das chaves das suas brumas e o dínamo que o faz correr: “...ele
não tem favoritos. Odeia-os a todos. Negros, gordos, magros, egípcios, é só
escolher. Seja quem for." Isto é, quem odeia toda a gente não odeia
ninguém, tal como quem tudo perdoa banaliza a questão e no fundo não deixa de
não perdoar nada. A moral como a razão, a noção de valor, o juízo, a vontade,
sempre foram conceitos e visões complexas e de costas largas, o que precedentemente
foi possível certo dia posterior é já impossível; o Ethan Edwards colecionador
de escalpes porque um dia viu uma boneca a arder e não o suportou, a ferida jaz
aberta e os mortos acumulam-se. Em coisas assim tamanhas e escapáveis, em
olhares assim cravados e profundos e em semblantes desse modo fechados,
ambíguos e com todos os mistérios resguardados, há que tentar perceber que para
assim se ser uma lança das compridas e das que perfuram além crenças e credos
foi a dado tempo e em dado lugar espetada e não mais cicatrizada. Harry como
outros possíveis Harry`s está paroxisticamente ferido, atingido tal estado, há
que esperar toda e qualquer altercação, explosão, e as leis de uns humanos e a
as leis de uma sociedade valem tanto como uma bafienta lição de moral de um
qualquer bafiento pregador. A personalidade escorrega para o dito mistério e
tudo se torna também escorregadio, tudo o que se dá como certo e benigno.
Consequência de certa lixeira deste habitat,
claro, mas consequência sobretudo da paixão por uma mulher. “Dirty Harry” é
fundado e só existe como e por uma história de amor. História de amor calada,
abafada, a trabalhar nos fundos de uma alma e a queimar para eternidades, em
surdina, em elipse e nos espaços of e nos olhos profundíssimos e se quisermos
tão comoventes de Harry, o Dirty. História de amor para lá do túmulo, muito…uma
das mais bonitas de que me lembro em filmes ou no resto. Uma Hitchcock ou uma Truffaut…uma
Henry James…uma…
E para que assim seja, para que Don Siegel diga
amém com Harry e com todos os assim estilhaçados às tripas e aos nervos, não se
cai em fantasias ou no santo resguardo do papelão e da intrujice. Neste périplo
em não tão negativo Santo Agostinismo, em que o tal Dirty Harry precisou então
de crer numa série de coisas de antemão para fatalmente por meio da acção tentar
compreender, a pulsão realista do realizador, a pulsão vital, o abismo pelo que
se vê e experimenta, essa urgência avassaladoramente assente nos cheiros, no
putedo e no bichedo, anjos e assassinos e anjos assassinos, nos passeios de
lixo e de fezes, nas cores que escondem e que berram, etc, vai sempre andar e
chegar em primeiro do que qualquer estrutura narrativa de argumentista.
Atração, repulsa… Os espaços e tinta da luz vão sempre irromper vibrantemente e
em retardamento da sacrossanta estória ou historieta; o facto vai ser superior
à derivativa ou etérea poiésis e assim brotar uma poiésis outra aqui ordinária,
despida, essencial. Nada de admirar, embora aqui se atinjam radicalismos sobre
o escuro e sobre o ontológico que envergonha e reduz a pó noventa e nove por
cento do documentarismo de algibeira que inundou nos últimos tempos os
festivais, mostras e meios do cinema; visto que já era assim na perna cortada
em “The Beguiled”, o excesso de realismo e languidez apenas eram o resultado
simples e complexo de olhar compulsivamente de frente e chegar a uma dimensão
outra que não a maquiagem; nas perseguições em directo e transcendidas pela
arte da montagem no “Madigan”, enfim, entre mais mil exemplos, as discotecas de
crua e cegante luz para dentro da objectiva em “Coogan's Bluff”; o manual de
evasão que constitui “Escape from Alcatraz” do primeiro ao último fotograma; toda
a pérfida instalada no humano desde o berço, da origem, que é centro e periferia
de cada obra.
Reprodução do que olho, atracção, recuo, medo. Rugosidade
– deixar que a violência, a riqueza, densidade e complexidade do mundo fira a
pelicula e a encharque. Que me fira a vista também. Vamos tão perto, tão
cerrado, tão em cima, apagámos. Ícaro sem aura, desconsagrado. A relevância e
primazia ao ar, à fibra, à atmosfera e à música do presente intacto, rude,
pleno de cada momento, de cada cena; estados que explodem, excedem, se prendem
ao quadro fílmico; Se falei em música que se diga que esta ainda nada tem a ver
com notas ou composições, sim com os cintilamentos, florescências, noturnos,
opacidades, ruídos, deambulações, embalos e rupturas do que está nas
superfícies e nas profundidades de campo e constituem cada coisa por si,
movimentos e reciprocidades entre os diversos componentes das matérias; então,
música concreta do mundo; quanto à outra, à de Lalo Schifrin, sonoridade
perfeitamente em sintonia clássica com o visível, sonoridade que tem o efeito e
a função de solda entre blocos, mas também de despertar de conflitos e
interjeições entre elementos, nesse sentido, perfeitamente concreta também, e
tão crucial como por exemplo Bach ou Mozart para um Ingmar Bergman, esqueçam-se
as hierarquias, pergaminhos e actas de certos doutandos, veja-se o que cada
coisa anima. Depois deste aparte, o escuro, o referido escuro onde tanto “nada
se vê”, esses raspamentos ao negro, quase negros sobre negros ou brechas mínimas
sobre escuridão total que não o do diafragma maquinal mas sim o crepúsculo da
terra, que mais do que uma recusa à luz do cinema e às lanternas mágicas
iniciais são então avidez louca do retrato em primeiro grau, apostolado do olho
à máquina e dessa maneira o maior dos cânticos à própria máquina; nem se trata
de anarquicamente apagar a luz, trata-se sim de não a acender – gesto de
fidelidade e paixão; kamikaze e generosidade da altura dos olhos e da potência
e perigo de se juntar dois planos, duas castrações ao cosmos. Não há volta a
dar.
Pulsão de registo, como quando Harry e a mulher
do parceiro atingido descem as escadas de um centro de recuperação: a
fogosidade analítica como a um tempo temos as linhas e fugas e ornamentos de
uma arquitetura espacial e também a tensão de dois corpos e estados de alma
nesse lugar, fechamento espacial e abertura espiritual. A correria imposta pelo
demente (demente que não falarei mais dele, muito menos o tentarei escrutinar,
porque por mentes e terrenos assim, não ouso imiscuir a caneta nem as minhas
botas, tal como o realizador, que com a sua classe, também não.) a Harry sobre
jardins, becos e altos de São Francisco: um mapeamento perfeitamente lúdico e
preciso de uma cidade e uma descida aos abismos demoníacos de um inferno
pessoal, geral, abarcante. O que está de mão dada e de lógica feita com o
percurso final do autocarro de crianças, que entre placas de sinalização,
vistas panorâmicas como outras tantas poderosas que fenderam o filme, melodias
e revelações da anatomia dos olhos e da anatomia das tempéries interiores, vão
do traçado materialista e urbano ao grande abstrato da existência, com a
fluidez, despojamento e secura cortante que nestes tempos só um Siegel desta
vida, um Aldrich e depois Clint nos fariam experimentar.
E assim, assim mesmo, o grito lancinante,
crepuscular e transformador, aterrador, silente, ao lado das escalas justas, do
último tiro. Assim, assim mesmo, a profissão que um homem tem que ter jogada ao
rio, circulo fechado, fim, início; afastamento da câmara até quantidades
indefiníveis e o resultado ancestral: alguém a uma dada hora perdido numa das
incontáveis constelações, sabe-se lá onde. Cada um que vá buscar a sua moral…
Os opostos podem reconciliar-se, o maior dos
bens abraçar o maior dos males e o seu oposto, só a mediocridade, arrivismo, hipocrisia,
demagogia, é que não? Que acabe agora este mundo, já, porque de certeza começa
outro. Tal como o jocoso e muito sério: “Do I feel lucky? Well, do ya, punk?” a
roda da vida e a bomba do coração tanto tanto dependem. Um novo filme ou uma
nova vida estão prestes a (re) começar; ou então não, pois tais como certos
anticlímaxes ou certos animais persistentes e de hábitos feitos dificilmente
mutáveis, há também tipos que nunca quebram. Inteligências de Siegel.
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