A câmara de John Huston que em Dublin entra por uma
casa adentro, se faz harmonia, corpo presente, assente. Giza espaços, modela
tempos, baila, sonda. Fende, elide, aglutina, se abre ao invisível, memória. Lá
fora, a neve. Essa que cai sobre todos os vivos e sobre todos os mortos.
Antes disso, uma carroça pára à porta, o
primeiro plano, em vai e vem, para dentro se aquece o primeiro grupo de
convidados de um acontecimento qualquer. Neblinas e nevoeiros vários, frescas
rarefacções, fumos densos e transparentes, esbranquiçados, frio, neve. Já estamos
dentro, dentro vamos ficar quase sempre. Vos garanto, o fora parece que mata.
Parece o fim do mundo, não estou a exagerar.
Que filme é este que se enceta em alvuras negras
e que se encerra em negrumes claros sobre movimentos fora de tempo e fora de
lugar, em paroxístico diálogo e apelo ao fim dos fins, terra da verdade, morte?
Atordoante. Lúcido. Tanta danação como a que derrama do demoníaco “The Treasure
of the Sierra Madre”, juro pela segunda vez, não estou a exagerar.
É verdade que “The Dead”, e como se cola bem o título,
depois dessa festa tão cinzenta, nefasta, depois de uma travessia urbana de
temperaturas mortíferas, se vai finalizar com um homem e uma mulher em fúnebre e
elegíaco tom confessional, com o tempo a regressar violenta e espessamente, lamento
impossível de um amor impossível, essas constatações doridas das agudas
impossibilidades. Mas se essa mulher aturdida e esmagada por um amor impossível
que ressoou quando já não se esperaria, essa Gretta Conroy de olhos
impenetráveis e letais, se escancara toda ao seu marido certa vez salvador, um Gabriel
Conroy que talvez nunca o tenha desconfiado e assim mesmo ficou a saber e
reflectir mais um bocadinho sobre o lugar dele e deles neste nosso mundo.
No fundo, estourou-lhes a provisoriedade e fascínio
de tudo isto neste nosso, numa reflexão e visão mais clara e ardente, porque olhada
pelo filtro do eminente apagão, descobrindo aquilo a que Sophia, tão a Sophia, de
Mello Breyner Andresen, definiu como terror, “Terror de te amar num sítio tao
frágil como o mundo”. Talvez no mundo nunca se tenha tratado de outra coisa.
Rememoração última e inteira desse marido que
tão triste papel pensa ter desempenhado na vida da esposa, que desconfia que nunca
foi amado. Escutámos “The Lass of Augrhim”, balada tradicional Irlandesa que de
forma mansa e fulminante desperta a consciência irmã ao verso de Sophia, essa que
nos diz que um a um, cada coisa cada pessoa, se converterá lentamente em sombra.
E se apagará. Essa balada que acordou do eterno túmulo uma paixão de antes dos
vinte, um tal rapaz delicado, olhos grandes e escuros, tão expressivos. Esse rapaz presumivelmente inocente e belo, daqueles
que só o tempo magoa, Michael Fury, que tão claramente só pode ter morrido de
amor, assim como essa sua amada, Gretta Conroy, também aí terá morrido uma
metade pelo menos. A visão
desse rapaz que cantarolava “The Lass..” há muito muito tempo é o cúmulo lancinante
de encontro e sentido entre a beleza e a morte. A inseparabilidade de tais.
“The Dead” é um tratado de beleza inerente,
tangente, intrínseco à morte. Sem volta a dar e de certezas perfeitamente
pacificadas. Por isso calmo, ninguém grita. Dessa fatal confissão a dois talvez
seja então necessário desvelar o novelo, para trás, assim como às portas do fim
se diz que tudo se nos passa pela alma de rompante. Acabado esse monólogo
maníaco e aceite de Gabriel, essas paisagens aquietadas que se lhe colam à voz
e à dicção já celestial, esses pardacentos cemitérios escandidos em linhas e
atmosferas conciliadoras, prespectivas liricamente geométricas e contracurvas
ao arrepio, ruinas, ramos, pingantes, cadáveres próximos, depois de tudo isso e
do indizível, enfim a beleza que abre ferida incicatrizável. A paz, mais do que
apagamento, que advém ao vulcão: Gabriel calmo, conformado, fechado. Gabriel,
nós.
Vamos aos bailes, aos ditos e aos não ditos, ao
bêbado e aos supostos sóbrios, às cantatas e pianadas e à idade que pesa como a
juventude inibe. Às danças leves e às danças rasteiras, aos jogos de poder e de
emancipação. E do tempo que fere inevitavelmente até ao percurso que o urdiu, talvez
possamos entender de que tipo de luz se tratou, nos envolveu, nos machucou de
vida e nos machucou de morte. Luz que desde o primeiro manifesto no degrau zero
até aos etéreos desmultiplicados, foi tudo o que importou, à matéria e ao
pressentimento, à vida sem cinema e ao cinema da vida. À bruteza e ao rumor.
Luz concreta, luz violadora à retina, às pupilas, córnea, nervo óptico, ponto
cego. Luz desabitual na prática filmante. Como explicá-la, acolhê-la, com ela
conviver, simplesmente enfrentá-la, no rosto de uma jovem cândida ou de uma
velha acossada, sobre as velas ou sobre os vidros das protectoras janelas, num
vão de escada ou no luzente ouro da bebida que embriaga? Luz onde se vê e entrevê
morte, trevas, claridade, evanescência, transcendência, enfim, beleza, sublime
beleza, ousarei mesmo imprimir o viciado “sublime”?
Só por essa correlação e lógica entre o
presumível gregário anfiteatro da mansão, essa correnteza como num rio e o seu contraponto
posterior do quarto a dois, num movimento dialéctico entre o festivo e o seco, cortante
relação com o privado e o singular, a pequena semente que queima nesse quarto
escuro, a consciência na terra, o devir para todos igual e o irregressível, é
que será possível entrar no rol destruidor e transformador deste implacável e,
sem dúvida, tão esclarecido filme.
*
Todo o acaso trabalha nos cliques do abismo.
Predestinação, destino, roda da sorte.
Século XVIII: algures num qualquer castelo
shakespeareano de uma Dinamarca de contos de fadas, um jovem também pelos vinte
anos, Y, perfecionista das geopolíticas, devorador de calhamaços a esses bastos
assuntos dedicados, estudioso à beira da loucura que só para isso respirava,
alienado das academias. Além disso, praticamente mais nada. Nunca tinha sonhado
alguma jovem bela, jamais sequer entrevisto qualquer rua de um vício como o
tabaco ou a boa pinga, nada. Nada além dos tempos livres do violoncelo e dos
envolvimentos prematuros em altas tertúlias onde ele era o jovem prodígio,
orgulho parental. Sempre tirou as notas máximas em qualquer exame. Elipse: certo
dia, certa hora, sem se imaginar o porquê nem como, uma branca dá-se numa das
provas máximas, a mais almejada delas, a de uma vida. Realizou-a sofregamente,
recebeu-a calado, taciturno, trágico. Quando a sua mãe e o seu pai e demais
membros familiares ansiosos por novo record do mundo chegaram ao castelo, para
as devidas honras, o rapaz prodígio não saía do quarto. Esperou-se, esperou-se…
Porta deitada a baixo. Y jazia morto. Vieram cátedros, sociólogos, psicólogos,
cada um tinha o seu relatório. Uma evidência só: Y matou-se ao primeiro
falhanço.
*
Afectação de um sobre o outro andamento; das
partes a um amplo todo; do todo às partes. Entre os dois actos: mudanças de
temperatura, aquecimentos, arrefecimentos. Paletas quentes, paletas geladas.
Nunca em sucessão, antes assombramento mutuo, simbiose. Uma luz inexplicável,
sem fórmulas. Inexplicável não pelo seu apagamento, mas quase sempre pela sua
acentuação. Essas sombras da claridade que tudo calcinam, vacilam, penetram.
Não esqueçamos a luz. Luz, revelação, um belo quase terrível, terrível mesmo.
Do lado de ninguém em especial e por cada um de
nós, acabou assim o truculento John Huston. Num filme sem personagens
principais pois todos estão metidos no mesmo barco ou sobre o mesmo halo, acto
último nesta peça imensa onde actuamos incessantemente, eclipse do mundo. Eterno
retorno, retorno impossível. Talvez que oblívio cósmico.