terça-feira, 17 de julho de 2012


"Raça de víboras, como podeis falar coisas boas, sendo maus? Porque a boca fala do que está cheio o coração. O homem bom tira do tesouro bom coisas boas; mas o homem mau do mau tesouro tira coisas más. Digo-vos que de toda a palavra frívola que proferirem os homens, dela darão conta no Dia do Juízo; porque, pelas tuas palavras, serás justificado e, pelas tuas palavras, serás condenado.”
(Mateus 12:34-37)

"Se houvesse um homem que ousasse dizer tudo quanto pensa deste mundo, não restaria um palmo quadrado de terra onde ficar. Quando um homem aparece, o mundo cai sobre ele e quebra-lhe a espinha. Restam sempre em pé pilares apodrecidos demais, humanidade supurada demais para que o homem possa florescer. A superestrutura é uma mentira e o alicerce é um medo enorme e trêmulo. Se com intervalos de séculos aparece um homem de olhar desesperado e faminto, um homem que vira o mundo de cabeça para baixo a fim de criar uma nova raça, o amor que ele traz ao mundo é transformado em fel e ele torna-se um flagelo. Se de vez em quando encontramos páginas que explodem, páginas que ferem e queimam, lágrimas e pragas, sabemos que elas provêm de um homem com as costas na parede, um homem cuja única defesa restante são as suas palavras, e as suas palavras são sempre mais fortes do que o peso mentiroso e esmagador do mundo, mais fortes que todos os ecúleos e rodas que os covardes inventam para esmagar o milagre da personalidade. Se algum homem ousasse traduzir tudo quanto há no seu coração, expressar o que é realmente a sua experiência, o que é realmente a sua verdade, penso que o mundo se despedaçaria, que se reduziria a pedacinhos e nenhum deus, nenhum acidente, nenhuma vontade poderia jamais reunir novamente os pedaços, os átomos, os elementos indestrutíveis que entraram na formação do mundo..."
Henry Miller, Trópico de Câncer

domingo, 15 de julho de 2012


A sociedade só vive de ilusões. Toda a sociedade é uma espécie de sonho colectivo. Essas ilusões tornam-se ilusões perigosas quando começam a parar de iludir. O despertar desse tipo de sonho é um pesadelo.

Paul Valéry em Pensamentos Maus e Outros


A câmara de John Huston que em Dublin entra por uma casa adentro, se faz harmonia, corpo presente, assente. Giza espaços, modela tempos, baila, sonda. Fende, elide, aglutina, se abre ao invisível, memória. Lá fora, a neve. Essa que cai sobre todos os vivos e sobre todos os mortos.
Antes disso, uma carroça pára à porta, o primeiro plano, em vai e vem, para dentro se aquece o primeiro grupo de convidados de um acontecimento qualquer. Neblinas e nevoeiros vários, frescas rarefacções, fumos densos e transparentes, esbranquiçados, frio, neve. Já estamos dentro, dentro vamos ficar quase sempre. Vos garanto, o fora parece que mata. Parece o fim do mundo, não estou a exagerar.
Que filme é este que se enceta em alvuras negras e que se encerra em negrumes claros sobre movimentos fora de tempo e fora de lugar, em paroxístico diálogo e apelo ao fim dos fins, terra da verdade, morte? Atordoante. Lúcido. Tanta danação como a que derrama do demoníaco “The Treasure of the Sierra Madre”, juro pela segunda vez, não estou a exagerar.
É verdade que “The Dead”, e como se cola bem o título, depois dessa festa tão cinzenta, nefasta, depois de uma travessia urbana de temperaturas mortíferas, se vai finalizar com um homem e uma mulher em fúnebre e elegíaco tom confessional, com o tempo a regressar violenta e espessamente, lamento impossível de um amor impossível, essas constatações doridas das agudas impossibilidades. Mas se essa mulher aturdida e esmagada por um amor impossível que ressoou quando já não se esperaria, essa Gretta Conroy de olhos impenetráveis e letais, se escancara toda ao seu marido certa vez salvador, um Gabriel Conroy que talvez nunca o tenha desconfiado e assim mesmo ficou a saber e reflectir mais um bocadinho sobre o lugar dele e deles neste nosso mundo.
No fundo, estourou-lhes a provisoriedade e fascínio de tudo isto neste nosso, numa reflexão e visão mais clara e ardente, porque olhada pelo filtro do eminente apagão, descobrindo aquilo a que Sophia, tão a Sophia, de Mello Breyner Andresen, definiu como terror, “Terror de te amar num sítio tao frágil como o mundo”. Talvez no mundo nunca se tenha tratado de outra coisa.
Rememoração última e inteira desse marido que tão triste papel pensa ter desempenhado na vida da esposa, que desconfia que nunca foi amado. Escutámos “The Lass of Augrhim”, balada tradicional Irlandesa que de forma mansa e fulminante desperta a consciência irmã ao verso de Sophia, essa que nos diz que um a um, cada coisa cada pessoa, se converterá lentamente em sombra. E se apagará. Essa balada que acordou do eterno túmulo uma paixão de antes dos vinte, um tal rapaz delicado, olhos grandes e escuros, tão expressivos. Esse rapaz presumivelmente inocente e belo, daqueles que só o tempo magoa, Michael Fury, que tão claramente só pode ter morrido de amor, assim como essa sua amada, Gretta Conroy, também aí terá morrido uma metade pelo menos. A visão desse rapaz que cantarolava “The Lass..” há muito muito tempo é o cúmulo lancinante de encontro e sentido entre a beleza e a morte. A inseparabilidade de tais.
“The Dead” é um tratado de beleza inerente, tangente, intrínseco à morte. Sem volta a dar e de certezas perfeitamente pacificadas. Por isso calmo, ninguém grita. Dessa fatal confissão a dois talvez seja então necessário desvelar o novelo, para trás, assim como às portas do fim se diz que tudo se nos passa pela alma de rompante. Acabado esse monólogo maníaco e aceite de Gabriel, essas paisagens aquietadas que se lhe colam à voz e à dicção já celestial, esses pardacentos cemitérios escandidos em linhas e atmosferas conciliadoras, prespectivas liricamente geométricas e contracurvas ao arrepio, ruinas, ramos, pingantes, cadáveres próximos, depois de tudo isso e do indizível, enfim a beleza que abre ferida incicatrizável. A paz, mais do que apagamento, que advém ao vulcão: Gabriel calmo, conformado, fechado. Gabriel, nós.
Vamos aos bailes, aos ditos e aos não ditos, ao bêbado e aos supostos sóbrios, às cantatas e pianadas e à idade que pesa como a juventude inibe. Às danças leves e às danças rasteiras, aos jogos de poder e de emancipação. E do tempo que fere inevitavelmente até ao percurso que o urdiu, talvez possamos entender de que tipo de luz se tratou, nos envolveu, nos machucou de vida e nos machucou de morte. Luz que desde o primeiro manifesto no degrau zero até aos etéreos desmultiplicados, foi tudo o que importou, à matéria e ao pressentimento, à vida sem cinema e ao cinema da vida. À bruteza e ao rumor. Luz concreta, luz violadora à retina, às pupilas, córnea, nervo óptico, ponto cego. Luz desabitual na prática filmante. Como explicá-la, acolhê-la, com ela conviver, simplesmente enfrentá-la, no rosto de uma jovem cândida ou de uma velha acossada, sobre as velas ou sobre os vidros das protectoras janelas, num vão de escada ou no luzente ouro da bebida que embriaga? Luz onde se vê e entrevê morte, trevas, claridade, evanescência, transcendência, enfim, beleza, sublime beleza, ousarei mesmo imprimir o viciado “sublime”?
Só por essa correlação e lógica entre o presumível gregário anfiteatro da mansão, essa correnteza como num rio e o seu contraponto posterior do quarto a dois, num movimento dialéctico entre o festivo e o seco, cortante relação com o privado e o singular, a pequena semente que queima nesse quarto escuro, a consciência na terra, o devir para todos igual e o irregressível, é que será possível entrar no rol destruidor e transformador deste implacável e, sem dúvida, tão esclarecido filme.
*
Todo o acaso trabalha nos cliques do abismo. Predestinação, destino, roda da sorte.
Século XVIII: algures num qualquer castelo shakespeareano de uma Dinamarca de contos de fadas, um jovem também pelos vinte anos, Y, perfecionista das geopolíticas, devorador de calhamaços a esses bastos assuntos dedicados, estudioso à beira da loucura que só para isso respirava, alienado das academias. Além disso, praticamente mais nada. Nunca tinha sonhado alguma jovem bela, jamais sequer entrevisto qualquer rua de um vício como o tabaco ou a boa pinga, nada. Nada além dos tempos livres do violoncelo e dos envolvimentos prematuros em altas tertúlias onde ele era o jovem prodígio, orgulho parental. Sempre tirou as notas máximas em qualquer exame. Elipse: certo dia, certa hora, sem se imaginar o porquê nem como, uma branca dá-se numa das provas máximas, a mais almejada delas, a de uma vida. Realizou-a sofregamente, recebeu-a calado, taciturno, trágico. Quando a sua mãe e o seu pai e demais membros familiares ansiosos por novo record do mundo chegaram ao castelo, para as devidas honras, o rapaz prodígio não saía do quarto. Esperou-se, esperou-se… Porta deitada a baixo. Y jazia morto. Vieram cátedros, sociólogos, psicólogos, cada um tinha o seu relatório. Uma evidência só: Y matou-se ao primeiro falhanço.
*
Afectação de um sobre o outro andamento; das partes a um amplo todo; do todo às partes. Entre os dois actos: mudanças de temperatura, aquecimentos, arrefecimentos. Paletas quentes, paletas geladas. Nunca em sucessão, antes assombramento mutuo, simbiose. Uma luz inexplicável, sem fórmulas. Inexplicável não pelo seu apagamento, mas quase sempre pela sua acentuação. Essas sombras da claridade que tudo calcinam, vacilam, penetram. Não esqueçamos a luz. Luz, revelação, um belo quase terrível, terrível mesmo.
Do lado de ninguém em especial e por cada um de nós, acabou assim o truculento John Huston. Num filme sem personagens principais pois todos estão metidos no mesmo barco ou sobre o mesmo halo, acto último nesta peça imensa onde actuamos incessantemente, eclipse do mundo. Eterno retorno, retorno impossível. Talvez que oblívio cósmico.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Du temps que la Nature en sa verve puissante
Concevait chaque jour des enfants monstrueux,
J'eusse aimé vivre auprès d'une jeune géante,
Comme aux pieds d'une reine un chat voluptueux.

J'eusse aimé voir son corps fleurir avec son âme
Et grandir librement dans ses terribles jeux;
Deviner si son coeur couve une sombre flamme
Aux humides brouillards qui nagent dans ses yeux;

Parcourir à loisir ses magnifiques formes;
Ramper sur le versant de ses genoux énormes,
Et parfois en été, quand les soleils malsains,

Lasse, la font s'étendre à travers la campagne,
Dormir nonchalamment à l'ombre de ses seins,
Comme un hameau paisible au pied d'une montagne.




"La Géante", Charles Baudelaire / "Pola X", Leos Carax

terça-feira, 3 de julho de 2012



Existem, penso que sempre foi assim, as espécies que num assunto ou numa ordem ou em variadíssimas outras coisas, ficam a matutar, obcecados, pensam e pensam e filosoficamente angustiam-se, etc., muitas das vezes para comprovarem a solução mais óbvia e assim não evitando as rugas no rosto e o atrofio; e, contra estes, aqueles espécimes que actuam da veemente maneira como em vez de falarem disparam, que, sem tempo, muito menos paciência para derivações, vão directos ao assunto, de corte. Tenham lá a paciência de lerem o que vou contar, coisas decerto conhecidas, coisas que vale a pena não esquecer.

Certo dia contaram-me que a um bem instalado músico classicista lhe encomendaram (ou lhe propuseram, haja respeito!) uma representação faustosa de uma das mais altas áreas de um dos mais altos compositores dos áureos períodos – não vou proporcionar reconhecimentos – todo o crédito, vulgo dinheiro, e todo o tempo. O cliente era o mais famoso, honrado e inaudito para ele e, com tanta pressão, questões metafisicas, indagações revolucionárias e, diz-se, tanta vontade de agradar, o tipo foi ao tapete e enlouqueceu. Fico-me por aqui. Em comparação, eu próprio conheci um músico de rua, um tipo porreiro que além da música, coisa aparentemente inconciliável, era craque e apaixonado por química, pela mais densa e louca química analítica. Personagem que vindo de um país bem distante no mínimo por um oceano, onde aí tocava nos recintos mais famosos e bem frequentados, aquando da chegada a terras lusas e da verificação dos saldos, rapidamente desceu o nível e se atirou às ruas, aos circos e à populaça povo, como um primitivo. Entre mortos e feridos, sobreviveu, e acreditem porque eu o vi, sobreviveu bem.

Diz-se, costuma-se dizer no ofício e na vagabundagem que costumo tratar, o cinema, que os europeus divagam e os americanos bojardam (de bojarda); os primeiros contemplam, os segundos vão ao osso. Uns fazem festas e torcem, os outros antes quebrar do que torcer, aniquilam. Não me apetece ir por aí, pois na minha singela cultura cinematográfica, na minha cinefilia desonesta e impura, calhou de já ter visto filmes do europeu Leos Carax e do americano Frederick Wiseman. O mundo ao contrário…

Mutatis mutandis, quero-vos falar do senhor X, por acaso, realizador de cinema proveniente do mundo das obras, entenda-se, construção civil. Evidentemente, um acaso. Conheci-o em mais um daqueles encontros imediatos de terceiro grau que a capital proporciona por demais frequentemente, quando a noite costuma ir longa e os copos se comprovam como o melhor desinibidor alguma vez fabricado. Deu-se assim: depois de X ter começado por baixo e anos a fio por lá se ter mantido a apanhar cabos, ter ascendido aos guarda-roupas e à decoração, de se ter aproximado da câmara e da assistência ao realizador…uma chamada lá de cima. O dono da casa oferecia-lhe a assinatura principal, mas, nos contos de fada à sempre um mas, sob rígidas condições. Plano: menos de uma semana de filmagens, argumento à primeira vista básico, um pouco mal-amanhado, à beira do incongruente. Corria igualmente o boato pelos bastidores que tudo era abaixo de cão. Restos de estúdio, restos de fita, quanto mais na rua melhor, pouca luz artificial, os técnicos disponíveis fossem quais fossem. Sem estrelas, deixava o cast com ele. Quanto ao orçamento, seriam meros tostões contados, contadíssimos ainda por cima. Obrigatoriedade: entregar tudo pronto nuns quinze dias, máximo. E assim aconteceu, o tal X meteu mãos na massa, às fraquezas chamou forças, e enquanto os da grande arte se levantavam a antidepressivos já ele, em menos do que o custa a contar, estava a pensar no próximo filme. Pelo correio chegava o cartão de realizador profissional. De tal senhor resolvo guardar os mistérios e sigo para outro.

Nesta terra perde-se muito, ganha-se às vezes, talvez nunca se ganhe e nunca se perca verdadeiramente, diz o baladeiro, e agora resolvo falar-vos de alguém que merece muito cuidadinho, alguém de mão de ferro, cabeça resoluta, alma livre, um todo intimidador. Falo dele como lhe sinto os filmes e, reservando as distâncias, não querendo confundir as coisas, de outro modo me é impossível. Vejam-lhe o espólio e com certeza falaremos o mesmo idioma. Conheci-o faz uns anos, húngaro de nascença disseram-me, mas tanto que trabalhou na América, tão secretamente e tão nas sombras como as que lhe invadiram e iluminaram tanto dos filmes; que de pala no olho e de ideias feitas o decidiram não elevar à primeira divisão ou lhe proporcionar a canónica e oscarizavél obra-prima, a tal grande obra do grande mestre onde todos acenam de igual modo.

Nascido Tóth Endre, rebatizado André De Toth aquando do desembarque. Parecia trabalhar de pá e picareta como o outro amigo enunciado. Ou de caneta de tinta afiada, curta, deslizante em rápidos e fulgurantes caracteres. Se recentemente embati de frente com mais dois petardos dele, é de tais que deixarei prova. “Crime Wave”, 1954. “Monkey on My Back”, 1957. Rigor e precisão científica, sentido prático. Instintos voláteis e devoradores, febres alastradoras. Ser clássico e quando for preciso ou os caminhos só a isso permitirem, do punk.

“Crime Wave” tem a lata e a coragem, e a robustez, de durar exactamente setenta e três minutos. Tem Sterling Hayden no preciso ano em que se imortalizou “Guitar”. Uma narrativa mil vezes vista, composta pela caça a evadidos homens por um polícia que num teste tramado à sua recente decisão de largar o tabaco, tudo vai fazer para os recolocar atrás das grades e, às naturais intuições de vale tudo e de auto corrupção, vai descobrir num inocente par feito de juras de amor eterno, uma inteireza, uma inocência, um sopro de justiça que lhe completará decisões vitais. Noventa por cento de estória supérflua, dez por cento de singularíssima e lindíssima história de amor. Mas o que me tira o tapete é verdadeiramente isto: na pobreza de meios e de enfeites, de situações e de suposta originalidade de encher o olho; nos secundaríssimos actores aí tocantes – incluindo Charles Bronson; na rapidez com que tudo teria de ser encenado, rodado, revelado e montado, uma fulminante energia, frescura, destreza, uma forma de levar as coisas para a frente, laconicamente, que jamais a palavra “arte” surge como permitida.

É preciso é que as coisas corram, que o preto e branco se esquadre a claros e escuros viscerais e que as sombras se levantem e vivam aterradoras, iluminem destinos e amarrem males, se façam malditas e traços limpos de redenção. Assombrem o canto da sala do enquadramento, a borda do porco passeio. Tão sujo, tão radiante. E estar a falar assim já é não estar de acordo com o que se passa na tela. Porque ali a pontuação é feita da elisão de adjectivos, absolutismos, distensões. Tudo ali é seco que parte, curtas frases, parágrafos insistentes, virgulas afiadas que cortam e entrecortam, exclamações como os ganchos no boxe, ausência de vestígios dos três pontos a não ser em limados e já negros fades; osso osso. Sem tempo para pensar na tal da “arte”, nem sequer no tal do “cinema”, há é que fazer trabalho limpo que pode e deve ser vertiginoso, como o pedreiro que tem que entregar um muro num prazo acertado. Na urgência do tempo que escoa e das intermitências do caos, sentir e agarrar para a obra esse fluxo estonteante e respectivas dádivas, fazer passar esses olhares, esses pesos, essas pressões, esses precários equilíbrios, a bendita pobreza, o medo e a ousadia. Assim não há coitadinhos e criativozinhos stressados em altas rodas e reuniões, horrendos brainstormings, problemas existenciais, poses de artista. Não há o vício e a peste das intenções catalogáveis nem os conceitos que mascaram a farsa. E assim mesmo “Crime Wave” é electrizante até à ponta dos cabelos, com o final Capriano do anjo-policia que manda os amados para o seu próprio céu. A merecida baforada. Um certo tempo com certas pessoas num certo meio, mas até ao fim, aos fundos, sem dar o passo atrás aquando do abismo aberto, sem passar a correr pelo cemitério; é o que distingue das boas intenções ou da mediocridade, até ao fim com os seres e as coisas, até ao fim com a escritura. Fim.

Uma grade enquadra e abafa um edifício ao fundo separado por uma calçada. Os créditos iniciais correm em cima. A música é como tantas outras. Nada de extraordinário. “Monkey on My Back”, jorra o título. Umas legendas dão conta da pessoa que vamos acompanhar em via-sacra – Barney Ross, campeão do mundo de boxe nos ligeiros, ex-cabo, ex-marinha, medalha de prata pelas prestações em acção…isto num tempo de um fosforo. Continua. Alguém entra em campo, tem que ser o tal Barney. Plano americano contra os fundos descritos, já está igualmente abafado. Os créditos continuam a cortá-lo. Panorâmica para a direita, irrompe um porteiro do lado de lá. O portão abre-se, ele entra, caminha em frente. Nova panorâmica para o mesmo lado, plano de pormenor: “United States, Federal Hospital”.

De 1954 para 1957, o mesmo tipo de gramática e de observar conciso mantêm-se. Onde milhares de outras fitas estariam ainda a descrever personagens, meios e épocas, neste já sabemos que o antigo herói de uma nação caiu em desgraça e lhe espera o inferno da cura. Em flashbacks que não se denunciam vamos ter com ele lá para trás, no período áureo dos combates, na sua propensão maníaca para esbanjar e ver pessoas alegres, o nascimento de uma paixão singular. Continuando, vamos com ele à guerra, ao reconhecimento público, às dores e à respectiva droga que as mata, à queda. Percebemos que ele só sabe viver no fio da navalha e da excitação e que se essa referida paixão por uma mulher não fosse absolutamente incondicional, para a vida e para a morte, teríamos mais um solitário comparável a um desses cães vadios de uma qualquer vila.

De Toth nunca fez as coisas pela metade, é duro e rude como a vida pode ser, e portanto jamais o filme vai pender sobre um dos lados da balança ou moralizar: é tão crua a entrada no hospital como a sua mansa felicidade trágica com que oferece bebidas naquele restaurante de fachada; tão furiosos os golpes de metralhadora como as seringas espetadas a sangue frio; tão cruel um beijo calado de despedida como as paredes que se desfazem em ressacados delírios. Do suado realismo sempre difuso dos campos lamacentos da guerra para os espectáculos provisórios da fama / das rançosas ruas e da emergência da dose / da secura e da sede dos fechados e concêntricos quartos-prisão onde o filme escorrega para as mais alucinantes fantasias, sonhos de um perdido, experimentação em vida de um lado de lá apelidado morte, esse polo norte em gelo cortante que o extingue do tecto, o mar que o afoga, o Fulleriano ruido que o ensurdece, voltas e reviravoltas sem sono, esperneares e revirares desgraçados, amaldiçoados, fustigadelas sanguinárias sem sangue, cabeça sobre trabalhos de enxada, a amada que fantasmaticamente aparece e lhe parece dar o golpe de misericórdia final, todas as trevas por esses escuros do seu magoado rosto, do seu olhar e das ceifantes sombras que o ceifam.

 Do máximo de realismo e de aridez, estoura-se e o filme descola para o máximo de onirismo, sem esforço algum, lógica volta do vórtice cósmico da imprevisibilidade do próximo passo do homem na desordem, felicidade, desgraça, o que quer que seja, a milímetros de distância, entrelaçados, justapostos, emaranhados, afectuosos. Dos pés bem, ou mal assentes na terra, até às estrelas e vias lácteas do fantasioso e do para lá da física ou das crenças, cada um que se denuncie. Quem o não quer ver em “Monkey on My Back”, aceitar, notar que da frase curta e da vírgula cortante se pode conviver em certos casos com arabescas e perniciosas dilatações, torções, pode ser que não esteja muito preparado para cá estar, neste único solo possível, ou então é dos que simplesmente vira a cara no quotidiano da podridão, dos que aceleram o passo ao fedorento banco do jardim alheio ou do hospital. Ontologicamente, humanamente e cinematograficamente, lucido (ou lucidamente desprendido).

Tudo está bem quando acaba bem e logo outro final feliz como em “Crime Wave”? Só se for para tantos inconscientes felizes por sorte ou azar; porque prestar atenção a um dos pensamentos finais de Barney é perceber o perigo do abraço final à mulher e dos esperançosos horizontes. Risco de viver e risco do amor, claro. Mas em contracampo ou a esburacar-lhe a tola vai estar eternidades: “medo de que o desejo regresse…medo de só estar seguro nos lugares onde não há tentação… cada minuto é uma hora, cada hora é um dia…cada dia é uma semana, cada semana é um mês…cada mês é um ano…e tudo o que podes fazer é resistir…e esperar, esperar…ter esperança, rezar…” Medo. Pressão. Amor. Fim.