terça-feira, 3 de julho de 2012



Existem, penso que sempre foi assim, as espécies que num assunto ou numa ordem ou em variadíssimas outras coisas, ficam a matutar, obcecados, pensam e pensam e filosoficamente angustiam-se, etc., muitas das vezes para comprovarem a solução mais óbvia e assim não evitando as rugas no rosto e o atrofio; e, contra estes, aqueles espécimes que actuam da veemente maneira como em vez de falarem disparam, que, sem tempo, muito menos paciência para derivações, vão directos ao assunto, de corte. Tenham lá a paciência de lerem o que vou contar, coisas decerto conhecidas, coisas que vale a pena não esquecer.

Certo dia contaram-me que a um bem instalado músico classicista lhe encomendaram (ou lhe propuseram, haja respeito!) uma representação faustosa de uma das mais altas áreas de um dos mais altos compositores dos áureos períodos – não vou proporcionar reconhecimentos – todo o crédito, vulgo dinheiro, e todo o tempo. O cliente era o mais famoso, honrado e inaudito para ele e, com tanta pressão, questões metafisicas, indagações revolucionárias e, diz-se, tanta vontade de agradar, o tipo foi ao tapete e enlouqueceu. Fico-me por aqui. Em comparação, eu próprio conheci um músico de rua, um tipo porreiro que além da música, coisa aparentemente inconciliável, era craque e apaixonado por química, pela mais densa e louca química analítica. Personagem que vindo de um país bem distante no mínimo por um oceano, onde aí tocava nos recintos mais famosos e bem frequentados, aquando da chegada a terras lusas e da verificação dos saldos, rapidamente desceu o nível e se atirou às ruas, aos circos e à populaça povo, como um primitivo. Entre mortos e feridos, sobreviveu, e acreditem porque eu o vi, sobreviveu bem.

Diz-se, costuma-se dizer no ofício e na vagabundagem que costumo tratar, o cinema, que os europeus divagam e os americanos bojardam (de bojarda); os primeiros contemplam, os segundos vão ao osso. Uns fazem festas e torcem, os outros antes quebrar do que torcer, aniquilam. Não me apetece ir por aí, pois na minha singela cultura cinematográfica, na minha cinefilia desonesta e impura, calhou de já ter visto filmes do europeu Leos Carax e do americano Frederick Wiseman. O mundo ao contrário…

Mutatis mutandis, quero-vos falar do senhor X, por acaso, realizador de cinema proveniente do mundo das obras, entenda-se, construção civil. Evidentemente, um acaso. Conheci-o em mais um daqueles encontros imediatos de terceiro grau que a capital proporciona por demais frequentemente, quando a noite costuma ir longa e os copos se comprovam como o melhor desinibidor alguma vez fabricado. Deu-se assim: depois de X ter começado por baixo e anos a fio por lá se ter mantido a apanhar cabos, ter ascendido aos guarda-roupas e à decoração, de se ter aproximado da câmara e da assistência ao realizador…uma chamada lá de cima. O dono da casa oferecia-lhe a assinatura principal, mas, nos contos de fada à sempre um mas, sob rígidas condições. Plano: menos de uma semana de filmagens, argumento à primeira vista básico, um pouco mal-amanhado, à beira do incongruente. Corria igualmente o boato pelos bastidores que tudo era abaixo de cão. Restos de estúdio, restos de fita, quanto mais na rua melhor, pouca luz artificial, os técnicos disponíveis fossem quais fossem. Sem estrelas, deixava o cast com ele. Quanto ao orçamento, seriam meros tostões contados, contadíssimos ainda por cima. Obrigatoriedade: entregar tudo pronto nuns quinze dias, máximo. E assim aconteceu, o tal X meteu mãos na massa, às fraquezas chamou forças, e enquanto os da grande arte se levantavam a antidepressivos já ele, em menos do que o custa a contar, estava a pensar no próximo filme. Pelo correio chegava o cartão de realizador profissional. De tal senhor resolvo guardar os mistérios e sigo para outro.

Nesta terra perde-se muito, ganha-se às vezes, talvez nunca se ganhe e nunca se perca verdadeiramente, diz o baladeiro, e agora resolvo falar-vos de alguém que merece muito cuidadinho, alguém de mão de ferro, cabeça resoluta, alma livre, um todo intimidador. Falo dele como lhe sinto os filmes e, reservando as distâncias, não querendo confundir as coisas, de outro modo me é impossível. Vejam-lhe o espólio e com certeza falaremos o mesmo idioma. Conheci-o faz uns anos, húngaro de nascença disseram-me, mas tanto que trabalhou na América, tão secretamente e tão nas sombras como as que lhe invadiram e iluminaram tanto dos filmes; que de pala no olho e de ideias feitas o decidiram não elevar à primeira divisão ou lhe proporcionar a canónica e oscarizavél obra-prima, a tal grande obra do grande mestre onde todos acenam de igual modo.

Nascido Tóth Endre, rebatizado André De Toth aquando do desembarque. Parecia trabalhar de pá e picareta como o outro amigo enunciado. Ou de caneta de tinta afiada, curta, deslizante em rápidos e fulgurantes caracteres. Se recentemente embati de frente com mais dois petardos dele, é de tais que deixarei prova. “Crime Wave”, 1954. “Monkey on My Back”, 1957. Rigor e precisão científica, sentido prático. Instintos voláteis e devoradores, febres alastradoras. Ser clássico e quando for preciso ou os caminhos só a isso permitirem, do punk.

“Crime Wave” tem a lata e a coragem, e a robustez, de durar exactamente setenta e três minutos. Tem Sterling Hayden no preciso ano em que se imortalizou “Guitar”. Uma narrativa mil vezes vista, composta pela caça a evadidos homens por um polícia que num teste tramado à sua recente decisão de largar o tabaco, tudo vai fazer para os recolocar atrás das grades e, às naturais intuições de vale tudo e de auto corrupção, vai descobrir num inocente par feito de juras de amor eterno, uma inteireza, uma inocência, um sopro de justiça que lhe completará decisões vitais. Noventa por cento de estória supérflua, dez por cento de singularíssima e lindíssima história de amor. Mas o que me tira o tapete é verdadeiramente isto: na pobreza de meios e de enfeites, de situações e de suposta originalidade de encher o olho; nos secundaríssimos actores aí tocantes – incluindo Charles Bronson; na rapidez com que tudo teria de ser encenado, rodado, revelado e montado, uma fulminante energia, frescura, destreza, uma forma de levar as coisas para a frente, laconicamente, que jamais a palavra “arte” surge como permitida.

É preciso é que as coisas corram, que o preto e branco se esquadre a claros e escuros viscerais e que as sombras se levantem e vivam aterradoras, iluminem destinos e amarrem males, se façam malditas e traços limpos de redenção. Assombrem o canto da sala do enquadramento, a borda do porco passeio. Tão sujo, tão radiante. E estar a falar assim já é não estar de acordo com o que se passa na tela. Porque ali a pontuação é feita da elisão de adjectivos, absolutismos, distensões. Tudo ali é seco que parte, curtas frases, parágrafos insistentes, virgulas afiadas que cortam e entrecortam, exclamações como os ganchos no boxe, ausência de vestígios dos três pontos a não ser em limados e já negros fades; osso osso. Sem tempo para pensar na tal da “arte”, nem sequer no tal do “cinema”, há é que fazer trabalho limpo que pode e deve ser vertiginoso, como o pedreiro que tem que entregar um muro num prazo acertado. Na urgência do tempo que escoa e das intermitências do caos, sentir e agarrar para a obra esse fluxo estonteante e respectivas dádivas, fazer passar esses olhares, esses pesos, essas pressões, esses precários equilíbrios, a bendita pobreza, o medo e a ousadia. Assim não há coitadinhos e criativozinhos stressados em altas rodas e reuniões, horrendos brainstormings, problemas existenciais, poses de artista. Não há o vício e a peste das intenções catalogáveis nem os conceitos que mascaram a farsa. E assim mesmo “Crime Wave” é electrizante até à ponta dos cabelos, com o final Capriano do anjo-policia que manda os amados para o seu próprio céu. A merecida baforada. Um certo tempo com certas pessoas num certo meio, mas até ao fim, aos fundos, sem dar o passo atrás aquando do abismo aberto, sem passar a correr pelo cemitério; é o que distingue das boas intenções ou da mediocridade, até ao fim com os seres e as coisas, até ao fim com a escritura. Fim.

Uma grade enquadra e abafa um edifício ao fundo separado por uma calçada. Os créditos iniciais correm em cima. A música é como tantas outras. Nada de extraordinário. “Monkey on My Back”, jorra o título. Umas legendas dão conta da pessoa que vamos acompanhar em via-sacra – Barney Ross, campeão do mundo de boxe nos ligeiros, ex-cabo, ex-marinha, medalha de prata pelas prestações em acção…isto num tempo de um fosforo. Continua. Alguém entra em campo, tem que ser o tal Barney. Plano americano contra os fundos descritos, já está igualmente abafado. Os créditos continuam a cortá-lo. Panorâmica para a direita, irrompe um porteiro do lado de lá. O portão abre-se, ele entra, caminha em frente. Nova panorâmica para o mesmo lado, plano de pormenor: “United States, Federal Hospital”.

De 1954 para 1957, o mesmo tipo de gramática e de observar conciso mantêm-se. Onde milhares de outras fitas estariam ainda a descrever personagens, meios e épocas, neste já sabemos que o antigo herói de uma nação caiu em desgraça e lhe espera o inferno da cura. Em flashbacks que não se denunciam vamos ter com ele lá para trás, no período áureo dos combates, na sua propensão maníaca para esbanjar e ver pessoas alegres, o nascimento de uma paixão singular. Continuando, vamos com ele à guerra, ao reconhecimento público, às dores e à respectiva droga que as mata, à queda. Percebemos que ele só sabe viver no fio da navalha e da excitação e que se essa referida paixão por uma mulher não fosse absolutamente incondicional, para a vida e para a morte, teríamos mais um solitário comparável a um desses cães vadios de uma qualquer vila.

De Toth nunca fez as coisas pela metade, é duro e rude como a vida pode ser, e portanto jamais o filme vai pender sobre um dos lados da balança ou moralizar: é tão crua a entrada no hospital como a sua mansa felicidade trágica com que oferece bebidas naquele restaurante de fachada; tão furiosos os golpes de metralhadora como as seringas espetadas a sangue frio; tão cruel um beijo calado de despedida como as paredes que se desfazem em ressacados delírios. Do suado realismo sempre difuso dos campos lamacentos da guerra para os espectáculos provisórios da fama / das rançosas ruas e da emergência da dose / da secura e da sede dos fechados e concêntricos quartos-prisão onde o filme escorrega para as mais alucinantes fantasias, sonhos de um perdido, experimentação em vida de um lado de lá apelidado morte, esse polo norte em gelo cortante que o extingue do tecto, o mar que o afoga, o Fulleriano ruido que o ensurdece, voltas e reviravoltas sem sono, esperneares e revirares desgraçados, amaldiçoados, fustigadelas sanguinárias sem sangue, cabeça sobre trabalhos de enxada, a amada que fantasmaticamente aparece e lhe parece dar o golpe de misericórdia final, todas as trevas por esses escuros do seu magoado rosto, do seu olhar e das ceifantes sombras que o ceifam.

 Do máximo de realismo e de aridez, estoura-se e o filme descola para o máximo de onirismo, sem esforço algum, lógica volta do vórtice cósmico da imprevisibilidade do próximo passo do homem na desordem, felicidade, desgraça, o que quer que seja, a milímetros de distância, entrelaçados, justapostos, emaranhados, afectuosos. Dos pés bem, ou mal assentes na terra, até às estrelas e vias lácteas do fantasioso e do para lá da física ou das crenças, cada um que se denuncie. Quem o não quer ver em “Monkey on My Back”, aceitar, notar que da frase curta e da vírgula cortante se pode conviver em certos casos com arabescas e perniciosas dilatações, torções, pode ser que não esteja muito preparado para cá estar, neste único solo possível, ou então é dos que simplesmente vira a cara no quotidiano da podridão, dos que aceleram o passo ao fedorento banco do jardim alheio ou do hospital. Ontologicamente, humanamente e cinematograficamente, lucido (ou lucidamente desprendido).

Tudo está bem quando acaba bem e logo outro final feliz como em “Crime Wave”? Só se for para tantos inconscientes felizes por sorte ou azar; porque prestar atenção a um dos pensamentos finais de Barney é perceber o perigo do abraço final à mulher e dos esperançosos horizontes. Risco de viver e risco do amor, claro. Mas em contracampo ou a esburacar-lhe a tola vai estar eternidades: “medo de que o desejo regresse…medo de só estar seguro nos lugares onde não há tentação… cada minuto é uma hora, cada hora é um dia…cada dia é uma semana, cada semana é um mês…cada mês é um ano…e tudo o que podes fazer é resistir…e esperar, esperar…ter esperança, rezar…” Medo. Pressão. Amor. Fim.

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