quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

 
 
Porque Criss Cross pode ter vários significados e convocar diversas leituras, desde as óbvias linhas cruzadas aos imparáveis atordoantes movimentos para a frente e para trás, até aos simbólicos e ambíguos conflitos, contradições ou profundas traições de que qualquer homem é capaz a um dado momento, nada mais fatal e explicito do que o plano e imagem final do filme que Robert Siodmak fez em 1949 para arrancar à tradução o mais grave dos sentidos.
 
Os corpos mortos de um homem e de uma mulher enroscados em cruz, este cruzamento onde queria chegar. Mas para isso é preciso começar na vida e tentar apanhar a linearidade possível a uma tramada teia. Steve Thompson é um daqueles comoventes autoconvencidos que depois de um ano fora da terra onde amou e se separou regressa certo de que tudo está esquecido e lhe resta deslizar livre e leve pelos locais de sempre. Ultra romântico, sincero, ainda muito novo. Ela, a que ele ainda ama, claro, é dúbia como os ares nublados que correm o filme, hermética, impossível e temerário antro de queda. Ele não quer enganar por nada deste mundo, ela vai conforme o vento. É por aí que nunca se darão a não ser talvez na morte e nessa terrível representação final que já tentei evocar.
 
“Estava nas cartas ou era o destino... ou uma maldição, ou como queiram chamá-lo.” (…) “Estava nas cartas”. Assim se nos vai dirigindo Steve, confessando e suplicando, que não a quer encontrar mas lhe segue o cheiro e a encontra na pior das companhias. Encontram-se, perdem-se, o acaso age, atraem-se, devoram-se, morrem-se, humilham-se, enganam-se, desenganam-se, atiram-se. E precisamente assim tudo se faz e desfaz noir, num filme extremamente frágil como essas pobres casualidades que encontra.
 
Quem nunca por nunca enganaria, ele, por ela vai enganar logo a quem não deveria por nada falhar. Trai-se é a ele próprio e ao seu interior, mata-se. E quem parece que pouco vale, ela, vai cumprir e esperá-lo na barraca à beira lago dos velhos sepultos amantes. Entre os assaltos e as farsas combinadas que correm mal, as hesitações de última hora e o dito por não dito. Nesse ápices, a volta à natureza primitiva do que manda o estomago esquecendo o coração e a inocência de miúdo vidrado, não é preciso especificar identidades, e o terceiro vértice que é vórtice de uma trindade irreconciliável vai encontra-los no ninho e mandá-los para o eterno que ele não pode chegar.
 
Muito se anda por este mundo e de muito dependemos do instante agudíssimo que o tempo opera, dessa dança fátua dos corpos pela grande casca de banana, onde na encruzilhada do milésimo de segundo com a anónima esquina tudo pode ou não pode mudar. A crueza do “Criss Cross” de Siodmak foi levar-nos desse imprevisível abstrato até à frontalidade da chegada final. Entre as voltas uterinas e a calcificação ad eternum está-se por um fio e ainda por cima somos sobretudo o irracional que reage e tanto sobretudo ao que importa. Uma viagem alucinante, intensidades de um tiro até nos estamparmos no termo, cumprido encontro marcado, é este inexorável fundo que enforma a forma. Linhas rectas engelhadas, quadro final, lamento.


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013


Uma das coisas mais entusiasmantes do Fernando Lopes – literalmente – de “Nós por cá Todos Bem” é que rapidamente retira o tapete a quem vai à espera de esquemas, teorias ou discursos etnográficos enlevados. Porque estão lá todas as suas pulsões, obsessões e a assustadora circularidade que volta filme após filme, entrevista após entrevista, trago após trago – entrámos e saímos a fogo, a paralítico plano, com a voz de Sérgio Godinho em diálogo com uma imponente Senhora. E, a par de tudo, as quimeras, utopias e sonhos que nunca escondeu. Igualmente os excessos e os falhanços. Portanto, da mais crua fogueira da mais pobre aldeia portuguesa, a paixão e honestidade autoriza uma Hollywood dos pobres ou Bollywood sem preconceitos. Regressa o tango de sempre, o Belarmino Fragoso de sempre, os cigarros, os retractos sépia ou os filmes dos outros, a procura das origens, o zoom como recurso afectivo. E a falsidade alegre e triste dos musicais de puro papel, os bordeis de Fassbinder, a frontalidade e o gore de Manoel de Oliveira ousados pelo erotismo húmido de Alexandre O'Neill. Uma feroz matança de porco também ela inventada, numa desmultiplicação de pontos de vista que ainda mais dignifica.

E cai a etnografia ou a sociologia ou a pancada nas costas a coitadinhos precisamente pelo posicionamento do realizador e da sua equipa. Nada a ver com recentes exibicionismos ou narcisismos superiores, Tocha ou Tiago Pereira, sim, como sempre pelo imenso coração e saber feito de vida do saudoso Fernando Lopes, uma junção e comemoração conjunta entre quem é filmado e quem filma. Uma não separação que se dá pela abolição de qualquer hierarquia, daí que se filmam as comezainas, a vinhaça tinta, a confraternização, e também um pouco das máquinas e dos processos do cinema, à mesma altura. Um todo orgânico e uma família criada e reunida na Várzea dos Amarelos. Portentosa e felicíssima cena de almoço, onde as tomadas de vista gerais e os closes aos copos e ao tabaco junto aos sorrisos e aos fascínios dos locais pelos bichos filmadores, deixam ver de maneira límpida e inteira, em raccord com as árvores, casas, terra e muros límpidos e inteiros, que ali não há golpes baixos nem aproveitamento de negócio nem metalinguagem, todos se ensinam uns aos outros.

E se estamos longe de Lisboa e se respira ar mais respirável, nem ajustes de contas se dão, todos tem as suas vantagens e defeitos e não se deve ser maniqueísta, tal como a Dona Elvira sua mãe nos explica em relação à politica, daí que se “Nós por cá Todos Bem” é orgulhosamente panteísta e se aí se sente bem, a memória e os afectos tratam o grande centro barulhento tanto como ponto de mapa inescapável, como mundo de possibilidades. Nada de ressabiamentos e todas as promessas de nomadismo ou de regressos.

Lopes dá tudo pela justiça e pela justeza e vai sem medo e sem se esconder puxar o tempo para trás e encenar-se despido. Demolição ao teatro capitalista e a candura e espanto de frente à fé. Ancestralidade e frescura, a medida exacta do som e da imagem aprendida com os sachadores ou com José Cardoso Pires, o sagrado, o sacudir do pó. Pura emoção de um fiel. Deus te tenha.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

No colectivo de 1975 “As Armas e o Povo”, onde Glauber Rocha tudo leva à frente e amplia numa desmontagem apontada ao individuo e ao seu modo de ser secularmente impregnado, circunscrevendo o monumental e o caldeirão em grande plano, ou seja, íntimo teatro ou ainda, como disse Fernando Matos silva: ópera do malandro; no realmente revolucionário enamorado zoom out de lá de uns cimos que Fernando Lopes aplica sobre incontáveis corpos e almas queimando nas suas finalmente catarses, e no justíssimo corte lógico para a bandeira nacional pingada a sangue de cravos, chegando aonde antes só Robert Kramer ou alguns foras-da-lei Russos tinham chegado, o que ainda mais me feriu, num certo sentido, e me lembrou das capacidade que o cinema no seu todo pode almejar, foi aquando do discurso de Mário Soares no 1º de Maio.

Falava ele dos bandidos que se escaparam aquando do golpe de estado, os Caetanos e os Américos, e antes disso, poucas dezenas de segundos antes, a montagem disfere um surpreendente golpe ao para trás, ou, no caso, muito para a frente. Saímos do plano aproximado a Soares e aparece-nos sem aviso o que logo percebemos ser a vista aérea sobre a janela de um avião, um pedaço de terra bem acastanhada e esculpida a cortantes arestas que quem já por lá esteve reconhece como a ilha da Madeira. Quem não a reconhece ainda, maior surpresa. A montagem vai-se aliando cada vez mais aos planos já interiores do arquipélago e a mesma voz em fundo vai-se cuspindo furiosamente até esvaziar tudo o que ainda a castiga. Vemos os manifestantes locais tão exaltados como, planos de um cais sem dúvidas e entrámos numa luxuosa mansão de finas peças a prata e porcelana. E, ainda em cima dos planos madeirenses, Soares dispara denúncias e epítetos sobre os que fugiram para a Madeira, sobre os que segundo ele não se devem deixar escapar. Revelação territorial e criminal e abertura da caça ao homem assim explanada numa confluência coral que amplia sismicamente os propósitos.

Prodigioso efeito teórico que se torna terrível prática vingativa, percebendo-se assim fazer parte das especificidades do cinema e logo nos dando conta do intimidante arsenal deste. O cinema e a mão e a cabeça de quem nele trabalha elisões, distensões, antecipações, retrocessos, cruzamentos, miscelâneas, misseis teleguiados, quer dizer, tal como passar roupa a ferro, pode tornar-se tão letal como os carrascos que capta. Hoje, hoje numa projeção assim fechada sob tão badalada democracia e felicidade lá fora, percebe-se bem em operações destas, ao real e ao surreal, obviamente, que o cinema como arma de fogo e confluir ejaculatório de todas as práticas, da literatura à musica à construção civil, não dá chances quando vai ao cerne e quando tem uma causa. Amor, guerra, mesmas coisas.

..........

Na sessão das nove e meia todos podemos comer pedaços orgânicos do Frankensteiniano Godardiano “Brandos Costumes”, cadáveres inclusos. A lata encenação de Salazar que encena subterraneamente todas as cenas, das actualidades informativas Riefenstahl wannabe aos quadros Brechetianamente distanciados à ficção familiar ao “Chaimite” de Brum do Canto à fotografia do morto, face à encenação de Alberto Seixas Santos, que ao efabular sobre costumes tão reconhecidos chega a uma matrioshka ficcional e, instantaneamente, ao acasalar isso com a farsa do real, provoca todas as faíscas conhecidas e as sempre novas entre o que se apresenta cópia conforme e o que dá asas à imaginação. Entre o oficial e o devaneio. A seriedade e o terrorismo. Tudo o que ainda hoje mexe no filme é como que uma luta de libertação de amarras. E às tantas perde-se a cabeça e a bússola e já não se sabe para que lado se anda. Ficam os ecos, espaços vazios, sentidos, experiência livre-trânsito até ao macabro, que são a coragem na tela de um realizador com tomates, tal como o movimento de câmara inicial em sequência sobre uma cara para a mesma cara no que aparenta ser o mesmo espaço. Ainda e para sempre um ghost film. O mesmo solo, tanto espelho, tanta sentença, tanto encontro. E é aqui ou nada.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013



 “Confusa é a ordem que separa o caos do termo do dia do descanso e esse é o tempo da criação”

JBC, num catálogo que por aí jaz nas cavas amaldiçoadas poeiras de alguns e que é, agora sim, o esperado inferno. 

(Ou então, 2012)