quinta-feira, 24 de janeiro de 2013


Uma das coisas mais entusiasmantes do Fernando Lopes – literalmente – de “Nós por cá Todos Bem” é que rapidamente retira o tapete a quem vai à espera de esquemas, teorias ou discursos etnográficos enlevados. Porque estão lá todas as suas pulsões, obsessões e a assustadora circularidade que volta filme após filme, entrevista após entrevista, trago após trago – entrámos e saímos a fogo, a paralítico plano, com a voz de Sérgio Godinho em diálogo com uma imponente Senhora. E, a par de tudo, as quimeras, utopias e sonhos que nunca escondeu. Igualmente os excessos e os falhanços. Portanto, da mais crua fogueira da mais pobre aldeia portuguesa, a paixão e honestidade autoriza uma Hollywood dos pobres ou Bollywood sem preconceitos. Regressa o tango de sempre, o Belarmino Fragoso de sempre, os cigarros, os retractos sépia ou os filmes dos outros, a procura das origens, o zoom como recurso afectivo. E a falsidade alegre e triste dos musicais de puro papel, os bordeis de Fassbinder, a frontalidade e o gore de Manoel de Oliveira ousados pelo erotismo húmido de Alexandre O'Neill. Uma feroz matança de porco também ela inventada, numa desmultiplicação de pontos de vista que ainda mais dignifica.

E cai a etnografia ou a sociologia ou a pancada nas costas a coitadinhos precisamente pelo posicionamento do realizador e da sua equipa. Nada a ver com recentes exibicionismos ou narcisismos superiores, Tocha ou Tiago Pereira, sim, como sempre pelo imenso coração e saber feito de vida do saudoso Fernando Lopes, uma junção e comemoração conjunta entre quem é filmado e quem filma. Uma não separação que se dá pela abolição de qualquer hierarquia, daí que se filmam as comezainas, a vinhaça tinta, a confraternização, e também um pouco das máquinas e dos processos do cinema, à mesma altura. Um todo orgânico e uma família criada e reunida na Várzea dos Amarelos. Portentosa e felicíssima cena de almoço, onde as tomadas de vista gerais e os closes aos copos e ao tabaco junto aos sorrisos e aos fascínios dos locais pelos bichos filmadores, deixam ver de maneira límpida e inteira, em raccord com as árvores, casas, terra e muros límpidos e inteiros, que ali não há golpes baixos nem aproveitamento de negócio nem metalinguagem, todos se ensinam uns aos outros.

E se estamos longe de Lisboa e se respira ar mais respirável, nem ajustes de contas se dão, todos tem as suas vantagens e defeitos e não se deve ser maniqueísta, tal como a Dona Elvira sua mãe nos explica em relação à politica, daí que se “Nós por cá Todos Bem” é orgulhosamente panteísta e se aí se sente bem, a memória e os afectos tratam o grande centro barulhento tanto como ponto de mapa inescapável, como mundo de possibilidades. Nada de ressabiamentos e todas as promessas de nomadismo ou de regressos.

Lopes dá tudo pela justiça e pela justeza e vai sem medo e sem se esconder puxar o tempo para trás e encenar-se despido. Demolição ao teatro capitalista e a candura e espanto de frente à fé. Ancestralidade e frescura, a medida exacta do som e da imagem aprendida com os sachadores ou com José Cardoso Pires, o sagrado, o sacudir do pó. Pura emoção de um fiel. Deus te tenha.

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