O “Doctor Bull” filmado em 1933 por John Ford tem muito a ver com o Mayor Frank Skeffington do “The Last Hurrah”. Se Spencer Tracy era ali, no fim de uma era, apenas o homem dos enterros e das mortes, este Will Rogers, igualmente tão apaziguado e sabido, diz-se mais doutor de vacas e objecto de baixas maledicências alheias do que um verdadeiro homem da medicina. Mas, também como em Hurrah, o enquadramento de Ford ao individuo e ao geral, do grande-plano ao de conjunto, paciente e atento, despojado e preciso, vai mostrar a verdade e a essência que as turbulentas vozes pretendem apagar. Tão solitários mesmo que com tanto barulho por de volta. Solitários como hoje o trabalho sobre as escalas e o timing. Solitários como um James Gray, um Pedro Costa, um Oliveira. O cinema também serve para pôr ordem nisto, eterna balburdia clamante.
Se aquele bom homem diz que quem passou mal a noite foi o paciente que ele tratou e não ele por não ter pregado olho, que só parece ter um único remédio para todos os males e não sabe dizer que não, se esse bom homem passa as horas livres na casa de uma viúva a beber o que nem gosta – antidoto para a solidão - a conversar como na paz dos anjos e a citar poesia e bíblia, bíblica poesia, é porque precisa de um porto seguro na eterna balburdia. É ele quem o diz, e a sua rectidão, mais do que inesperada timidez ou pudor de velha guarda, vão sempre retardar uma união acordada algures.
Já se percebeu, como tanto em Ford, que estamos num mundo dentro do mundo, e ali onde o comboio só se detém para largar carga, onde os avanços não chegam e o insignificante ganha proporções devastadoras, vai ser o local propício para esse inigualável documentarista, na linha de Alan Dwan ou de Fred Wiseman, chegar ao cerne e às oposições eternas que desenham e sobrevivem o arco da humanidade. Para cada coração dourado como o da viúva ou o daquela loirinha dos telefones que é gozada por gostar de se efabular, um milhão de trastes que inventam e deduzem todos os males do bem que jamais poderão entender. Bull não vai pedir desculpas porque o seu coração não reconhece causas tais.
Por isso é essencial o fechamento ali de onde não se sai por nada, para ouvirmos todas as vozes e vermos todos os rostos do mundo que falta. O Ford minúsculo ou cerrado costuma ser o mais transbordante e o que tem mais fora dos campos. Da desconhecida New Winton americana até à minha aldeia Bracarense, o olhar e a cadência de Ford, retardamentos e acelerações, a sua altura e a sua respiração, que me parecem naturais e míticas no mesmo sentido do céu e do solo, têm os mesmos ecoares universais e sui-generis. Longa panorâmica que dá a volta à esfera. Fixa para vibrar mais. A noite onde nasceu uma criança e se perdeu um adulto. O dia em que se herdou uns chinelos e se partiu casado. A fama e o respeito de quem se permaneceu a si. Antes quebrar que torcer. John Ford. “Só há uma maneira de chegar ao mundo, mas mil de sair dele.”
Quero repetir-me, para me lembrar de que uma construção erguida no mais geral, essa Hollywood de certos códigos, dinheiros, normas e tradições rígidas, ainda para mais na Fox de Zanuck e companhia, é onde posso melhor ver e perceber, sentir na pele e lá dentro, toda uma nação, a sua complexidade e riqueza, violência e ternura, como todos os limites e respectivas fundações. Neste caso a américa por Ford, como em tantas outras vezes, como depois ou já aqui a África ou uma certa Irlanda, projectando-se assim para infinitos traçados, toda a terra. Claro que existiram os Lumière, que não são grande exemplo pois já ficcionaram como poucos, mas existiu um Jean Rouch, um De Seta, um Kramer. Esses que tentaram apanhar o fogo e a violência do real em primeiro grau, mas que, se chegaram lá perto ou chegaram mesmo, foi porque se aglutinaram firmemente ao que Ford, ou Griffith, ou Hawks, ou Vidor tinham feito com as suas revolucionárias experiências de vivência e descoberta - …complicado ou impossivelmente genuíno tentar discorrer sobre o que se desconhece ou nem se cheirou; igual aos que escrevem ou pensam ou executam no elevado empirismo de pijama ou de Deleuze. Só lá se vai em consonância à paisagem qualquer e à disponibilidade dos Rogers ou Coopers desta vida; esventrar carnes e almas com a máquina, esventrar milagres, terrores, risos e carinhos que tudo encorpam e enformam.
O exacto oposto da pornografia que se quer passar por acto puro, esse meter a câmara (ou a caneta), que serve e sempre serviu para proteger e para meter em ordem ou sentido, a dificultar e a meter mais pressão nas vidas de quem de tudo precisa menos disso. Assim como a vergar e vilipendiar esta crosta onde pisámos e encostamos e sobre a qual não temos a mínima chance contra, esta terra que nos deu tudo, nos amou e engolirá. Por isso, nada de mais certo do que os clarões de Ford em contraluz a um fundo falso na mais ousada das representações da morte. O gesto e a distância. Tudo o que importa.
Por que raio chamaram ou ainda chamam fascista a quem mais nos suportou? Bendita tradição.
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