“Onde Bate o Sol”, segunda longa-metragem de
Joaquim Pinto realizada em 1989, abre com um largo plano do céu rasgado pelos
vapores de um avião, parecidíssimo com um que Fernando Lopes também fez pelos
inícios de “Matar Saudades”. Tanto num como noutro o avião surge-nos longíssimo,
praticamente um risco animado na pelicula, para nos localizar, e para o filme
se localizar, longe dos aeroportos, das capitais e de certas leis.
Assim como no belíssimo e cosmicamente
sussurrado “Uma Pedra no Bolso”, tudo parece e é fragilidade, filigrana,
mínimo, dos meios técnicos aos actores e não-actores, para nos momentos
decisivos onde as coisas acontecem e abanam se tornar extremamente coeso,
forte, físico. Dessa horizontalidade etérea da primeira imagem que logo desce
em panorâmica total para as marcas e cicatrizes de um rosto até à profundidade
em que o filme fecha, com dois seres caminhando verticalmente e mesmo
desvanecendo-se no que pode ser a consumação dos segredos e descobertas de uma
trama igual e logo diferente de todas as outras, tudo se pode passar.
Rodado e vivido em Vouzela e em idênticas
regiões ingremes e agrestes, solares e faiscantes, a cidade e a sua poluição
vão ser um lugar a evitar e o comboio vai teimar em não regressar desde a
severa chegada encantatória e ambígua do protagonista. Quando esse regresso
infame se dá, não pode durar. Protagonista que encontra um mundo que parecendo
tão fora dele é verdadeiramente mundo, tão às avessas como o que deixou e tão
propicio à perdição, efabulação e caos. É
a irmã que parece estar a desperdiçar a vida nas aparências quando podia ter
tudo a seus pés, o ajudante da quinta onde tudo se passa que lhe mostra o que
se calhar nunca esperou, sentimentos abafados e proibições imemoriais, enfim, também
a letargia e desinteresses de que parece padecer a encontrarem terreno fértil
para vingarem. A cena do primeiro almoço é assustadora de espelho e projecção
de um ontem como hoje e assim de um fado muito nosso.
Entre cartas trocadas e queimadas, passeatas elipticamente
sugestivas e detentoras de ramificações que baralham toda a aparente fina linha
narrativa – esse pudor envolto ou enleado em urgente desejo – noutra queimante
batalha, bailes, discotecas ainda suportáveis e vinhos de libertação com
consequentes pagas, destrezas mas igualmente melindres de homens da terra e da
guelra, o trabalho deste grande cineasta artesão volta a pôr tudo em causa, não
se filiando em nenhum partido ou corrente. Nem arte povera, nem amadorismo no
que tanto superficialmente se apreendeu da palavra e do seu modo de fazer, nada
de teorias, desculpas ou cauções.
Joaquim Pinto dá-lhe com tudo do pouco que dispõe,
dá-lhe com o arsenal todo e com a alma que vai sobre o fundamental, que é a
realidade que está à sua frente e que se move da mesma maneira ardente com a
sua humilde câmara ou com a mais sofisticada Panavision. E logo a abrir, quando
Nuno é conduzido da estação para casa. Complicada filmagem dentro de um carro
antigo em que o plano fixo sobre o conjunto de dois varre perfeitamente e
limpidamente a cena? Nada disso, filma-se como se estivéssemos num qualquer
auge da sagrada Hollywood, verdadeira atitude Hawksiana de profissionalismo,
classe e amor, que seria depois levada ao extremo absoluto e ao perigo de “Rabo
de Peixe”. Campo, contra campo, questão dos olhares e das escalas, definição
exemplar do espaço, raccords apurados e
decupagem finíssima, a depuração máxima que se conseguir, e por aí fora. Planos
de pormenores, largos, lateralidades, frontalidades, tudo o que a dramaturgia e
os sentimentos pedem o cineasta capta através da distância certa, da posição
justa, com a duração preciosa. Nem mais nem menos. Poética da verdade. Máxima
restrição – máximo saber – máxima
disponibilidade - máxima liberdade.
Uma necessidade extrema de fazer o filme, captar
ambiências inauditas como arbustos a arderem a vermelho e crepúsculos
desmaiados, e sei lá, confrontar a beleza também muito frágil e jorrante de
Laura Morante com a pronúncia local e a tristeza nos olhos de um amante calado
e também prisioneiro que só parece ser dali e não um actor lisboeta que apanhou
boleia e analisou vídeos de inspiração escolar. Necessidade extrema que não
cede jamais lugar à mediocridade ou ao facilitismo. Em reinos de algodão, antes
quebrar de que torcer, antes almejar do que se camuflar ou acobardar. No fundo,
é aquele jogo de futebol empoeirado e esfolado que por lá se joga, onde entre
bordoadas e magia destilada no jogo de cabeça, se filma mais uma vez o que em
Portugal nunca se filmou, sempre tão preocupados estamos em não sairmos dos
patamares operáticos e das altas culturas vigentes. Joaquim Pinto, seu Clint
Eastwood ou seu Robert Mulligan dum raio, chega-lhes com força e mostra-lhes, eles
merecem!
O que é imenso e abre para respirações, ritmos e
experiências próximas do que Eric Rohmer andou toda a vida a perseguir e que ao
contrário de Pinto o deixaram fazer sempre mais uma vez. Esse caudal que se
surge com a aragem de um naturalismo espraiado é sempre potenciado pelo fogo de
um realismo cru e despido de efeitos da paisagem, dos gestos, do cinema. O que
nada tem a ver com uma ideia inocente de pureza ou de virgindade, para o
contradizer e abismar para terrenos irracionais ou até fantásticos de cada
mente que por lá galga, está a banda sonora sempre a entrar em conflitos,
contradições, porradas violentíssimas com o que está em cena. Sejam tratores
sejam ovelhas. Tal como o corpo de Joaquim Vicente a falar pela voz de Luís Miguel Cintra, numa ilusão
perfeitamente íntegra.
Depois de tanta subida e descida, dito e retraído,
escancarado e aferrolhado, o sol bate lancinante e dorido como um fim
definitivo e percebe-se a tal história de todos os termos serem portas
revolucionárias ou ofertas divinas ou, mais terrenamente, a inexorabilidade da
vida. Nada a fazer, tudo a caminhar. Venha a vida, a morte. O arco ou a grande
coisa continuará a girar imperturbavelmente. Se não se quiser, nada de lá dos
altos.
O porquê de Pinto ter tão curta obra desta em
relação a tantos que muito mais filmaram e não têm nem um pouco do seu talento
e vivência permanecerá um mistério. Ou então pode-se dizer que o seu domínio
superior de coisas como o som ou a montagem ou a fotografia foi útil a outros e
que também nesses aspectos há poucos que se lhe comparem. Na dita debilidade de
quase todas as suas realizações a solo, o que lá está, enquadramento a
enquadramento, suspiro a suspiro, aparece velado e agigantado pela força e
evidência da verdade. Essa desarmante verdade
de quem não quer ser o que não é, de quem se mexe escancarado no reino do
sensível, ali onde a falha pode ter a essencialidade ou a causa do delicado sublime.
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